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    Curta com cantores evangélicos bambeia entre respeito e deboche

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE SÃO PAULO

    21/11/2017 02h00

    Barbara Wagner/Divulgação
    Cena do curta-metragem "Terremoto Santo"
    Cena do curta-metragem "Terremoto Santo"

    "É errado se gabar, mas no início meu plano era perfeito. O vocalista viria com a conversa de que toda música glorifica o Senhor quando é tocada com espírito amoroso, e eu rabiscaria cada vírgula sorrindo por dentro", escreve o ensaísta americano John Jeremiah Sullivan ao narrar sua experiência num festival cristão onde encontrou pessoas como o ex-atleta de luta livre que "conseguia estourar um abacaxi no sovaco gargalhando".

    A tentação de debochar do outro não é pequena quando nos dispomos a escrutiná-lo –sobretudo quando tantos signos de seu universo, traduzidos para o do observador, ganham reflexos picarescos.

    A questão, em "Terremoto Santo", em exibição no Instituto Moreira Salles em São Paulo, não é saber se esse risco existe.

    Ele está lá, tão discreto quanto a câmera que treme enquanto a jovem de vestido azul abaixo do joelho e coletinho dourado canta um hino sobre o abalo sísmico coberto de glórias, no púlpito implantado no meio da natureza que lembra descansos de tela do Windows.

    Mais premente, no curta-metragem da brasiliense Barbara Wagner e do alemão Benjamin de Burca, é entender:

    1) Ao retratar cantores de uma gravadora gospel da zona da mata pernambucana, a dupla tonificou características dos evangélicos pentecostais e neopentecostais que soam kitsch aos olhos de um público-alvo majoritariamente secular (festivais de cinema, exposição no IMS), que tende a usar suas lentes estéticas para estigmatizar o segmento?

    Os artistas rechaçam essa possibilidade. "Não consideramos a decoração das igrejas uma expressão do kitsch (originalmente ligado a um gosto da burguesia europeia). O povo nunca é kitsch, como já disse a Lina Bo Bardi nos anos 1980", afirmam em e-mail.

    2) Supondo que sim, ainda que sem intenção, Barbara e Benjamin expuseram ao ridículo as garotas que, na beira do rio, fazem uma coreografia em que espalmam as mãos metidas em luvas brancas à la Michael Jackson. E a plateia, cúmplice, se refastela ante aquele espetáculo do cafona, como evidenciam as gargalhadas de espectadores que viram a obra dias atrás, na Janela Internacional de Cinema do Recife.

    Mas cafona para quem, cara-pálida? Enviei o teaser de "Terremoto" para cinco evangélicos. Nenhum viu ali vestígios de ironia. "Achei até que fosse um [diretor] evangélico", disse o pastor Luciano Luna.

    "Fomos muito respeitados por todos da equipe", disse o evangélico Carlos Sá, produtor musical do curta. Afinal, cabe a quem tutelar o outro sobre um papel de vítima no qual ele não se reconhece?

    Alternativa: o preconceito está em quem vê, e não necessariamente no que é visto –como projetar maldade no homem nu que interagiu com uma criança no MAM. "Preconceitos do espectador com a igreja evangélica (sejam de classe, raça, orientação religiosa) inevitavelmente o farão se perturbar mais ou menos com os mecanismos dramáticos presentes no filme", dizem os artistas.

    A ideia sempre foi construir uma parceria com os religiosos, afirmam. Mas escolhas autorais, como a câmera trêmula no "tremor santo", assemelham-se a quem dá um tapinha nas costas enquanto cola um cartaz de "chute-me".

    Eis o paradoxo: empatia e desprezo pelo diferente nem sempre se anulam. Prepondera a primeira opção em "Terremoto Santo", embora a segunda provoque seus estragos.

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