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    Crítica

    Suspense e repulsa dão cores, mas longa brasileiro não surpreende

    LÚCIA MONTEIRO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    23/11/2017 01h00

    Divulgação
    Cena do filme 'Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe'
    Cena do filme 'Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe'

    QUANDO O GALO CANTAR PELA TERCEIRA VEZ RENEGARÁS TUA MÃE (ruim)
    DIREÇÃO Aaron Salles Torres
    ELENCO Fernando Alves Pinto, Catarina Abdalla
    PRODUÇÃO Brasil, 2017; 16 anos
    QUANDO estreia nesta quinta (23)
    Veja salas e horários de exibição

    *

    O filme se inicia com uma tomada em câmera subjetiva, ao rés do chão, de um saco de lixo sendo levado até o elevador por um senhor cambaleante (Tião d'Ávila). Na sequência, vemos a cozinha onde sua mulher, Zaira (Catarina Abdalla), devora de facão em punho uma manga, ao mesmo tempo em que acaricia seu galo de estimação sobre a pia.

    Suspense e repulsa dão o tom de "Quando o Galo Cantar pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe". Com enquadramentos fechados e carregados de informação, o longa de estreia do sul-mato-grossense Aaron Salles Torres ressalta, do início ao fim, a estreiteza do apartamento de zelador de um edifício a zona sul do Rio onde também vive o filho do casal, Inácio (Fernando Alves Pinto), porteiro no mesmo prédio.

    O didatismo da mise-en-scène não deixa dúvidas sobre a dureza daquele cotidiano. Atuações exaltadas explicitam a violência das relações familiares. Defenderia o filme a hipótese (determinista) de que tal agressividade é reflexo de condições de vida precárias?

    Apesar de seguir a cartilha visual e sonora do thriller, nada surpreende. O pai, cardíaco, morre logo. A mãe, frustrada, inferniza Inácio. Some-se a isso a visita de assistente social e psicóloga despreparadas e a hiper-vigilância de condomínios de classe média, convidando àquilo que, na obra, aparece como voyeurismo de classe.

    Inácio bisbilhota os patrões, em Antônio (Lucas Malvacini), morador jovem e fitness. Quando lava o carro do garoto, ele encontra uma foto e uma roupa de ginástica. Guarda-os em seu armário, como fetiche sexual. A mãe bisbilhota o quarto do filho, e tudo indica que o denunciará.

    Se a intenção era contribuir para minimizar a incompreensão sofrida por doentes mentais e homossexuais, a realização ajuda pouco: falta complexidade aos personagens, encerrados em visões estereotipadas sem possibilidade de transformação.

    Num breve respiro, Inácio, sufocado por mais uma discussão com a mãe, sobe na laje para fumar um cigarro: descortina-se um belo plano sobre o horizonte de antenas, com o mar ao fundo.

    E, se alguma ambiguidade subsiste, está no mistério acerca do sexo da ave. Zaira diz ser um galo; Inácio, uma galinha. A frase do título, extraída do conto "Feliz Aniversário", de Clarice Lispector, fornece uma resposta, mas as referências a "Uma Galinha", também da autora, complicam o jogo.

    Mas tais lances de poesia não bastam para compensar o perverso movimento do filme, a um só tempo reflexo e reforço da paranoia que acompanha relações de trabalho desiguais e hierárquicas.

    Salles Torres o dedica a antigos vizinhos. Resta saber qual benefício pode trazer-lhes a imaginação voyeurista do que fazem empregados longe da vista dos patrões.

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