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    Morrer é fácil, difícil é a comédia, diz Jô Soares ao lançar autobiografia

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    24/11/2017 02h01

    O Jô Soares que os brasileiros mais conhecem hoje é aquele do "talk show" na Globo e, antes, no SBT: O Johnny Carson brasileiro, por longos 28 anos, até dezembro de 2016.

    Mas houve outro, que preparou esse personagem tão próximo dos telespectadores. É aquele primeiro Jô Soares que protagoniza "O Livro de Jô - Uma Autobiografia Desautorizada", o primeiro de dois volumes com as suas memórias, escritas junto com o editor Matinas Suzuki Jr., da Companhia das Letras.

    Vai até a virada dos anos 1960 para os 1970 —da infância com a família no Rio, onde ele nasceu em 1938, aos primeiros passos no teatro e na televisão em São Paulo.

    Em entrevista à Folha no seu apartamento paulistano de Higienópolis, José Eugenio Soares, que completa 80 anos no próximo dia 16 de janeiro, fala de comédia e das pressões que ela enfrenta, hoje.

    Não só por questionamentos politicamente corretos, mas pelo que chama de "onda puritana". Por outro lado, defende tratar de forma objetiva as denúncias de assédio sexual feitas contra artistas como o comediante americano Louis C.K.

    E lembra que ele mesmo, Jô, foi uma vítima, quando tinha sete anos. Está no livro.

    *

    Folha - "O Livro de Jô", neste primeiro volume, tem muito de teatro.

    Jô Soares - Teatro é uma paixão minha. Fazer teatro, não assistir. São duas coisas diferentes. Fazer teatro, ensaiar, é uma maravilha. Tenho uma sala de ensaio aqui embaixo.

    Você conviveu com grandes comediantes a partir dos anos 1950. Max Nunes foi seu padrinho. Você fez peça com Agildo Ribeiro, Otello Zeloni e Renata Fronzi, filme com Ankito e Grande Otelo, televisão com Ronald Golias e Chico Anysio. Eles te influenciaram?

    Eu acho que todo mundo influencia todo mundo. Especificamente, não sei dizer. Todos influenciaram, de alguma maneira, mas não tenho ninguém por quem tenha me pautado. Tem o Jerry Lewis. A primeira vez que vi, estava com a minha mãe em Nova York e estreou "That's My Boy" ["O Filhinho do Papai", 1951]. Eu tinha 12 anos e bateu, ficou lá dentro. Eu brincava de imitar o Jerry Lewis.

    Costuma-se dizer que fazer rir é um dos ofícios mais difíceis.

    O humor, acho que digo isso no livro, é uma visão de mundo. José Agrippino de Paula [escritor e cineasta], pode existir uma coisa mais imprevista, como humor? No entanto, ele tinha uma capacidade inerente para a comédia, um senso de observação. Que é coisa muito difícil de se fazer está naquelas últimas palavras atribuídas ao ator Edmund Gwenn, cercado de comediantes: "Dying is easy, comedy is hard". Morrer é fácil, difícil é a comédia.

    Você escreve que Millôr Fernandes, que abre o livro com um texto de 1983 sobre você, foi um dos gênios que conheceu. O que ele representou para você?

    A Theresa [Austregésilo, atriz, primeira mulher de Jô] era muito amiga do Millôr. A gente afinou imediatamente, bateu. Quando fui fazer o meu primeiro show, pensei: "Preciso me apoiar em alguém, que tenha um nome". Já convivia com o Millôr, já havia um entrosamento de alma. Eu ia para o estúdio e lia para ele as coisas que tinha. Ele ria muito e falava: "Está pronto, o que você quer?". "Eu quero você." Ele escreveu alguns números, "Cão que ladra não morde. Enquanto ladra. Depois morde". [risos] Coisas do Millôr.

    Como foi a censura ao show?

    Eu fiz o número da bunda, que na época era a coisa mais censurável. Metade do teatro dizia "bun", a outra metade dizia "dáaa", "bun... dáaa". Depois, "Todo mundo junto! Bunda!". Era para fechar o espetáculo, e o Millôr dizia: "É maluquice, ninguém vai falar". E eu: "Vai, se passar na censura". Quando a gente veio estrear em São Paulo, tinha uma censora na porta do teatro: "Não pode fazer o número da bunda. Ordem de Brasília. A mulher de um coronel estava na primeira fila e ficou ofendidíssima, porque você fez ela dizer 'bunda'".

    Mas vocês no fim conseguiram liberar.

    O chefe da censura era o pai do Wilson Aguiar Filho, que escrevia novelas. Quando a gente chegou a Brasília, um general falou: "Esquece, esse negócio da bunda é uma cagada, é uma bosta, como é que põe palavrão assim, caralho". [risos] Aí eu fui falar com o Wilson Aguiar: "Esse número é o fecho de ouro, se você tira vai ficar capenga". E ele: "Não se preocupe, vem aqui na minha sala e reescreve o número com um monte de palavrão". Inspirado pelo general, botei "cagada, bosta, o que você está fazendo aqui, seu puto". O Wilson pegou o carimbo da censura e marcou o "filho da puta", o "caralho" e deixou exatamente como era. E colocou "Liberado com cortes".

    Você chegou a ser chamado ao Dops [Departamento de Ordem Política e Social], quando fez o cartaz da "Feira Paulista de Opinião" [espetáculo de 1968, direção de Augusto Boal].

    Ele empapelou a cidade. Fiz também o quadro do general no espetáculo, "O Repouso do Guerreiro".

    Era o Dops da Luz, onde fica o Memorial da Resistência?

    É, perto da estação, a rua de paralelepípedos. Entrei numa saleta junto com o jornalista Luiz Lobo, da "Cláudia". Ele estava da cor da tua camisa [amarelo], eu também. Os dois com um medo físico. E toca a passar o tempo. Na véspera, o Juca de Oliveira foi lá em casa, eu contei que havia sido chamado e perguntei o que devia fazer. Ele falou: "Você eu não sei, eu por muito menos fugi para a Bolívia", e saiu batendo a porta. [risos] Hoje ele morre de rir disso.

    Quando deu umas dez da noite, primeiro saiu o Luiz, não sei para onde. Eu fiquei com um delegado. "O senhor sabe por que está aqui, né?" "Desculpa, mas eu não sei". "Está aqui, 'artista', 'intelectual'. Essas palavras vieram de Brasília entre aspas. Tudo o que nos chega entre aspas é que é de comunista. Sabe quem é comunista também?" "Cacilda Becker." "A Cacilda é comunista?" "Comunista."

    E você era comunista?

    [risos] Muuuito comunista!

    Você escreve no livro que tinha simpatia por Trótski.

    Tinha. E joguei os livros todos do Trótski num lago. [risos] Sabe qual era o maior perigo? É que eu era amigo do Zé Celso. A Theresinha trabalhava no Oficina. A gente saía bastante. Ele era louco pela Dercy Gonçalves, eu também. A gente ia ver tudo dela.

    No livro, você fala sobre trabalhar ao mesmo tempo na "Família Trapo" e no cinema udigrudi, um lado popular e outro de vanguarda. De onde vêm esses dois lados seus?

    Não é conflitante. Eu sou um artista. Artista não pode ter preconceito, precisa estar aberto. Bom, quem frequentava a minha casa era o Zé Agrippino [que dirigiu "Hitler 3º Mundo", de 1969, com Jô].

    Fiz o samurai louco, que era o detentor do monopólio de mendigos de São Paulo. Tinha uma porrada de mendigos, anões na maioria, que moravam no meu quintal. Acordava [gesticula], pegava um balde cheio de lavagem de porco [risos], abria a porta, atirava e os mendigos brigavam para comer aquilo. "Está na hora de trabalhar!" Tinha uma Kombi, empurrava os anões para dentro e ia distribuindo mendigos pela cidade. [risos]

    O livro não é um tratado sobre a comédia, mas aborda alguns temas. Você cita, a certa altura, que a fazenda que frequentava na infância tinha um antigo "escravo garanhão".

    Que horror, né.

    A partir da menção aos anões e ao "escravo garanhão", você vê limites para a comédia?

    O negócio do "escravo garanhão" não tinha nenhuma intenção de humor.

    Achei provocativo.

    É capaz de ser. Para mim, não. Um ser humano usado como reprodutor é uma coisa brutal. E ele ficava contentíssimo, porque era muito bem alimentado, muito bem tratado e fodia. "Eu ficava aqui cobrindo as mocinha do nhô filho, no inverno ia para a fazenda do nhô pai e cobria as moça de lá. Na volta, eu ia repontando as que faiava." [O repórter ri] É uma coisa de uma brutalidade, mas essa é a história do Brasil.

    Mas o humor tem limite?

    Respondendo à sua pergunta, não tem. Daqui a pouco não se pode falar de nada. É como diz o [comediante] Marrom, que é contra ser chamado de pardo. "Eu não sou envelope." [risos] Antigamente tinha um humor, aí sim brutal, do Chocolate. Era todo em cima de racismo, botando para baixo, e todo mundo achava engraçado. Na realidade, não era. Ele fazia sem consciência. Tanto que era casado com uma descendente de russos, teve um filho branco e chamava o filho de Galak. [risos] "É o chocolate branco." [risos]

    A gente não consegue segurar.

    [risos] A gente não consegue não rir. Aí vão dizer, "Mas como você riu?". O cara chamava o próprio filho de Galak! [sério:] Até parece que não tem racismo no Brasil.

    Louis C.K. está sendo muito questionado, por assédio sexual a fãs. É o primeiro comediante, nisso que vem acontecendo nos EUA. Perdeu todos os contratos que tinha. Questionam se ainda é possível rir do que ele produziu. Você acha que a onda conservadora pode estar chegando a extremos?

    Sempre. Ao mesmo tempo, não é pelo fato de os EUA estarem passando por essa onda, mais do que conservadora, puritana... É preciso saber realmente o que aconteceu. O caso do [comediante] Bill Cosby, por exemplo, é realmente um absurdo. Ele botava droga nas bebidas.

    Também é preciso saber se é assédio sexual a menor de idade. Aliás, eu falo no livro sobre o cara do cinema que passou a mão na minha coxa. Eu tinha sete anos. Mas não sei dizer até que ponto é assédio sexual entre dois adultos, se um tem 18 anos, o que é menor de idade em alguns Estados, em outros, não. Tenho a impressão de que cada caso é um caso. O negócio do Louis C.K. eu nem tenho muita noção. Agora, deixar de lado as coisas de talento que as pessoas já fizeram... Como é que você apaga?

    Você pode falar da sua experiência, quando era criança?

    O cara sentou do lado e começou a me bolinar. A pessoa que me acompanhava não podia ver o filme de perto e ficava afastada. O cara se aproveitou disso e ficava passando a mão na minha coxa. Aquilo me dava uma sensação horrível.

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