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    Opinião

    Com Zé Celso e Renato Borghi, espírito do 'Rei da Vela' aparece e fala

    MARIO VITOR SANTOS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    24/11/2017 09h41

    O que impressiona logo de pronto nesta montagem de "O Rei da Vela" 2017, cuja curta temporada no Sesc Pinheiros se encerra nesta sexta (24), é sua rara ontologia: a coincidência da presença, viva, contínua de José Celso Martinez Corrêa, o fértil corifeu do teatro brasileiro, e seu coro-teatro Oficina liderado de novo, 50 anos depois, por outra presença, a do ator Renato Borghi. Tantas entidades vivas reunidas de novo instaura de início um clima de importância excepcional, no limite do inacreditável.

    O desafio do projeto, porém, ultrapassa a efeméride: trata-se de fazer aflorar de novo, aqui, neste horizonte diverso de eventos, o vigor brutal, corrosivo e gozador do texto escrito em 1933 por Oswald de Andrade e "devorado" em 1967 numa montagem que engendrou o tropicalismo e reverberou tanto que se transformou em vaca sagrada da cultura desde então. Retirar o "Rei da Vela" de Oswald e a montagem do Oficina do altar alcanforado em que a lenda os colocara, fazê-los estar à altura da expectativa criada por essa reaparição, perdido o fetiche da experiência "original" de 67, era a tarefa dessa macumba teatral.

    As personas do escritor modernista Oswald e do diretor-xamã-discípulo Zé Celso se confundem, continuam e desdobram em inúmeros aspectos: os traços oraculares, "imperfeitos", profundamente modernos e pós-modernos, operadores de poéticas do transe, embora, sem engano, também racionais ao extremo. Foi com Oswald que Zé Celso se converteu a adorador da idiossincrasia, do escárnio e da "sujeira", a prosseguir na contramão escandalosa de uma certa São Paulo. Fiel a Oswald, Zé Celso oficia na peça uma meticulosa cerimônia de exibição e purgação das mazelas do Brasil, relacionadas na peça sempre ao sistema internacional -o "imperialismo"- em que elas se inserem. É o exorcismo também das desculpas usadas para justificar essas mazelas, dialogando com o debate sobre a identidade nacional e seu papel no atraso do país.

    Na montagem de 1967, a julgar pelos relatos, o grupo levava ao extremo a tensão com a plateia, identificada com a passividade e a mentalidade conservadora da classe média, e convidada já no cartaz da peça a não comparecer. Nesse mesmo sentido, a ação tensionava a forma engessada do palco italiano e do teatro bem-comportado. Essa agressividade, presente ainda hoje, agora é menos explícita. A tensão é menor, pois a plateia, escaldada, parece mais tolerante.

    Num sentido fortemente político, aquela montagem determinou o fim de um teatro e o advento de um novo, mas também expressou o que, no espírito daquele tempo, fora dos limites do espaço teatral, era uma ânsia revolucionária, de mudar tudo o que devia ser mudado. Havia ainda um sentimento de constrição das liberdades, coisa que o fechamento em prática no Brasil de hoje ameaça atualizar.

    Oswald nessa peça se deixa tomar por uma espécie de possessão. Sua pena escorrega e a obra vai ficando aberta, estilhaçada, cada vez mais pessoal. Deixa o fio da narrativa se contaminar, ser penetrado por outros gêneros do discurso, de-generando, a meio caminho do ensaio e do panfleto, num composto contrário às unidades e estabilidades que expressavam o tacão burguês sobre o teatro.

    *

    Nos anos 60, indiferente de início, Zé Celso releu "O Rei da Vela" e acabou cedendo ao texto, vindo a usá-lo como meio de conversão do Oficina. Como ele mesmo diz, "O Rei da Vela" transformou-se em um texto sobre o texto de Oswald. Intuiu impactos profundos e celebrou-os. Explicitou o rito fúnebre de um capitalista como festa de libertação de um modo de produção: deu vivas ao suicídio, especialmente sendo ele o suicídio do capital. Morra o burguês, viva o capitalista tornado agente da consciência traidora de sua classe, cético, cínico, despido de toda ilusão de justiça. Conversão de um teatro, ou seja, de um país e de seus problemas de identidade, como sintetiza Abelardo 2º: "A burguesia só produziu um teatro de classe. A apresentação da classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração".

    O burguês (Abelardo 1º-Renato Borghi) é enfocado na peça no estado intermediário entre a produção de bens e o estágio da pura financeirização do capital. Em paralelo, a peça encena uma passagem de gerações, com as inseguranças que isso enseja. O capitalista prepara-se para entronizar o filho (Abelardo 2º). O patriarca oficia essa sua morte ritual também como um salto de caráter ideológico, exibindo uma consciência crua da lógica da ordem que comanda. Um tom zombeteiro de quem sabe o que diz, tão adequado à dicção de Borghi, em pronunciamento lapidar:

    "Há um momento em que a burguesia abandona a sua velha máscara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras. E organiza-se como classe. Policialmente. Esse momento já soou no mundo, e implanta-se rapidamente nos países onde o povo está machucado, acovardado e dividido."

    Como alternativa, Oswald aponta o caminho em forte tensão com a chamada civilização e seus descontentes: a "ordem" do mangue, ou seja, da putrefação, do vigor inaudito da lama, dos detritos e, por extensão no plano humano, das prostitutas e seus clientes. É claro que diante dessa radicalidade, as hierarquias, as autoridades e sua expressão teatral estruturada, dividido em palco e plateia, são testadas no limite. Sem falar que, em 1967, sobressaía no teatro ainda a figura do artista empreendedor, não havendo o domínio da cultura de São Paulo pelas instituições de classe. Nem o capital financeiro, que a peça retrata, havia se hipertrofiado a ponto de hegemonizar vastas áreas das artes criativas. A bilheteria tinha uma importância maior na ausência das leis de incentivo.

    "O Rei da Vela" é uma peça sobre a morte e o império da vela, que é produto indispensável no ritual religioso e que também é expressão de um capitalismo rudimentar, precariamente industrial, sem tecnologia, num sistema mais ligado à monarquia do que à modernidade tecnológica. Muita fé e pouco conhecimento é a vela. Abelardo 1º porém é um capitalista que se liberta de sua origem mercantil e industrial, para viver do rentismo. É um híbrido, que aspira à transcendência do capitalismo para um além, para a "pura" moeda, libertando-se das rotinas e dos ritmos ligados à dinâmica do excedente gerado na produção de mercadorias.

    A peça pede que a vela, em si, morra. Ou seja, que junto com ela escorram para o lodo o ritual que a vela encena. São muitas subversões superpostas. Com a vela, morre, portanto, a possibilidade de salvação, sectária, fervorosa e, em mais de um sentido, iluminada.

    Zé Celso é senhor do imenso arco de potências presentes no texto de Oswald e as desenvolve realimentando a tradição brechtiana do Oficina. Quase congela a ação, para privilegiar a reflexão crítica e expor meticulosamente o retrato desesperançado, desdramatizado, da falência do capital, do país e do teatro. Devora o desfile de baianas malcriadas de turistas, americanos de teatro de revista, índios de embalagem de biscoito, prostitutas, uma galeria de tipos ironizados como modelos para o consumo, mas deglutidos mesmo assim. Combate o culto às personalidades das estrelas, como ele e Borghi e o Oficina, ao mesmo tempo em que surge como um vitorioso, símbolo de um triunfo impossível da paixão contra a decrepitude trazida pelo tempo, mostra de que é possível viver muito com paixão e ir ainda mais longe, mesmo depois do tanto que se andou.

    Cria distanciamento, com fundo musical "sobreposto" às falas. Deplora, assim, o teatro e seus recursos que "contam uma história", feito de encomenda para nossos ouvidos treinados a decifrar e "entender". Isso ele dificulta, para abalar o conforto do espectador. Faz o mesmo nos imensos trechos explicativos "marxistas" do segundo e terceiro atos da peça, quando o que existe de drama se mistura ao ensaio e ao manifesto.

    Como a ação, que "escorre" de seu fio condutor na peça, o derretimento da vela sugere o derretimento e a permeabilidade da ordem do capital, da imagem iluminista, nítida e equilibrada, do arte e da razão. Isso é sublime, pois mostrado como sacrifício ritual e oco.

    Emerge inesperadamente, neste momento, um teatro vital, à altura da situação devastadora em que o país mais uma vez se encontra, de cujo enfrentamento o Oficina, como conseguiu, não recuou ontem nem evita hoje. Se Oswald anunciava este "Rei da Vela" como o primeiro texto socialista do teatro nacional, a encenação do Oficina se apresenta como a primeira a encarar Temer, o golpe e seus beneficiários.

    Bem antes de Zygmunt Bauman, Oswald desnudava a modernidade liquefeita da vela, o desmanche de tudo o que é sólido, a começar pelo teatro aristotélico, moralista e burguês. Da mesma forma, o painel de Hélio Eichbauer com letras aquosas (esperma ou espermacete?) desce ao final da ação, como estandarte e bandeira, tragédia sem choro, hecatombe da ordem nacional da vela. Mostra-se como índice do caos do país, aterradora consciência do estupro expresso no empalamento do capitalista Abelardo com a própria vela, o sacrifício sublime, pleno de arte cruel, mas oco de drama e de apoteose, pedindo à "respeitável" plateia repressão e lenitivo:

    "Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar as vossas tradições e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai nossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo!"

    Como se vê, muitas vidas tem "O Rei da Vela". Resta estar à altura das camadas que ele agita.

    Mario Vitor Santos é mestre em drama antigo pela Universidade de Exeter (Inglaterra) e doutor em letras clássicas pela USP

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