• Ilustrada

    Monday, 06-May-2024 04:00:40 -03

    Coletânea de contos da uruguaia Cristina Peri Rossi é lançada no Brasil

    SYLVIA COLOMBO
    DE BUENOS AIRES

    25/11/2017 02h00

    "Os críticos literários ainda acham que literatura é coisa de homem, como o uísque", diz a provocativa escritora uruguaia Cristina Peri Rossi, 76.

    Uma das principais autoras latino-americanas desde a época do "boom" dos anos 1960 e 1970, a romancista tem só agora seu trabalho —que já saiu até no Japão e na Coreia— editado no Brasil, com o lançamento de "Espaços Íntimos", coletânea de contos que ganhou o Prêmio Vargas Llosa de 2010.

    Nascida em Montevidéu, desde os anos 1970 vive na Espanha, país onde trabalhou como jornalista e publicou mais de 40 títulos até hoje. De lá, respondeu as perguntas da Folha, por e-mail.

    Elisa Cabot
    A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi em 1986
    A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi em 1986

    *

    Folha - Os contos de "Espaços Íntimos" misturam erotismo, amor e frustrações humanas, principalmente sob o olhar feminino. Por quê?

    Cristina Peri Rossi - No mundo hispano-americano, sempre houve mais leitoras mulheres do que homens. Numa livraria de Barcelona, Madri ou Montevidéu, sempre há uma média de quatro ou cinco mulheres para cada homem, apesar de a maioria dos livros serem escritos por homens. Os homens, quando leem, leem principalmente autores masculinos. Há um desprezo injustificado pela literatura escrita por mulheres. É algo que forma parte de um machismo intrínseco da sociedade.

    Durante muitos anos, fui a única escritora mulher latino-americana que se publicava na Espanha e meus livros foram e são lidos por homens e mulheres, especialmente por jovens. Os relatos de "Espaços Íntimos" pedem um leitor aberto, contemporâneo, que não leia somente para buscar-se no espelho, mas, sim, para conhecer ao outro ou à outra.

    Um dos contos, sobre a mulher que se ilude com uma parceira virtual, é uma crítica à intromissão da tecnologia nas relações humanas?

    Meu tema são as relações humanas, que são diversas, conflitivas, emocionantes e, nos dias de hoje, sujeitas às circunstâncias e aos meios de comunicação.

    Quando não existia o correio postal, as cartas eram enviadas por meio de mensageiros. Portanto, só os ricos podiam fazê-lo, porque eram os únicos que podiam pagar para que uma missiva fosse de Paris a Marselha, por exemplo. Eu cheguei aos meus 30 anos, em Montevidéu, sem ter telefone, algo muito caro naquela época para uma professora de literatura como eu. Hoje, a internet oferece uma possibilidade de comunicação imediata e global.

    É um grande recurso, mas impede o contato visual direto, o tato, os sentidos mais importantes para a comunicação. E pode servir a um uso perverso e pernicioso, que dá espaço à mentira, ao acosso, à falsificação.

    No conto que você menciona, por meio de uma anedota, faço uma denúncia sobre a manipulação por parte de certos programas de televisão muito populares.

    Creio que é fácil enganar as pessoas porque elas tendem a acreditar que tudo o que sai de uma tela de televisão ou de um celular está sacralizado, é esse engendro perverso chamado de pós-verdade.

    Outro conto de impacto é o da mulher que, por sentir-se melancólica no ocaso, é internada numa clínica, como se o humor feminino especificamente fosse uma doença, algo a ser medicado. Foi isso que quis explorar?

    Sim, é um dos relatos mais sutis do livro e exige toda a empatia do leitor. Eu escrevo para não dizer de maneira direta meus pensamentos e emoções. Isso exige de quem lê uma participação.

    Creio que se aprende melhor pela emoção do que pela razão. Se eu dissesse "creio que a sociedade, e em especial as mulheres, estamos excessivamente medicadas psicologicamente, e isso gera grandes benefícios econômicos aos laboratórios", seria uma opinião, discutível ou acertada.

    Mas, se escrevo um relato como o da senhora Olson, deixo a porta aberta para uma quantidade de interpretações ou emoções: a empatia, a ironia e, sempre, a dor humana pela qual, por meio da literatura, tento suscitar simpatia e compreensão.

    Seu nome é relacionado ao dos autores do "boom", ainda que este seja usado mais para identificar escritores homens. Havia então e há hoje machismo no mercado literário?

    Os mercados literários, como quaisquer outros, estão muito atentos a qualquer moda. Em certo sentido, muito limitado, as mulheres estão na moda, ainda que se continue estuprando, escravizando, maltratando e matando.

    George Sand e outras mulheres escreveram com pseudônimo masculino para não serem desprezadas. Colette escreveu todas as obras que assinava seu marido e, quando Simone de Beauvoir publicou "O Segundo Sexo", foi ignorada e menosprezada por seus colegas masculinos, os mesmos que eram amigos de Jean-Paul Sartre. O texto teve êxito graças à sua publicação nos EUA e por conta da divulgação que lhe deram as feministas norte-americanas.

    No Uruguai, a poeta emblemática do modernismo, Delmira Agustini, foi assassinada por seu marido. Sylvia Plath se suicidou por conta do desprezo de seu marido poeta, e poderíamos fazer uma lista muito longa das dificuldades das escritoras para publicar.

    Mesmo os escritores do "boom latino-americano", como meu amigo Julio Cortázar, só evoluíram e deixaram de ser machistas depois dos 50 anos.

    A sociedade também mudou por causa da luta das feministas. Os editores eram mais machistas ainda que os autores, mas, quando notaram que havia um grande filão de vendas na literatura de mulheres, começaram a publicá-las.

    Mas a crítica segue sendo, na imensa maioria dos casos, escrita por homens, e eles, sim, são muito machistas, são os últimos defensores da ideia de que a literatura é coisa de homens, igual ao uísque.

    Se hoje se estuda e se conhece a obra das mulheres escritoras, não é graças à crítica, mas às estudiosas feministas das universidades e ao trabalho de tradutoras.

    Não me cabe a menor dúvida de que, se eu tivesse nascido homem e escrito os mesmo livros que escrevi como mulher, teriam me dado o Prêmio Cervantes.

    A senhora menciona Maria Bethânia em um dos contos, e há críticos que relacionam aspectos de seu trabalho com Clarice Lispector. De que modo se sente vinculada à cultura brasileira?

    Sou a introdutora da obra de Clarice Lispector na Espanha. Levei mais de 20 anos para convencer uma editora espanhola a publicar a tradução de um de seus livros de contos e escrevi vários artigos sobre ela. Considero Clarice a escritora mais importante do Brasil, justamente porque é universal, não tem nada de pitoresca ou de folclórica.

    Em geral, sinto rejeição pelos regionalismos literários, salvo quando se trata de um grande escritor como Graciliano Ramos, a quem também traduzi. Prefiro a literatura psicológica ao realismo, por mágico que seja, ainda que "Cem Anos de Solidão" me pareça um romance extraordinário.

    Gosto muito da música brasileira. Conheci Maysa quando cantou em Punta del Este. Sua versão de "Ne Me Quittes Pas" continua sendo minha preferida. Maria Bethânia é uma grande intérprete, que estudou e afinou muito sua voz.

    A sra. teve um problema com uma rádio de Barcelona graças a um debate sobre o uso do idioma catalão. Como vê a atual crise política na região e as tentativas de independência por parte dos catalães?

    Minha expulsão da rádio catalã por insistir em falar apenas em castelhano foi em 2007 e considero uma ponta do iceberg do que vem ocorrendo desde então.

    Na Catalunha há duas línguas oficiais e, em princípio, favorecer o catalão foi um ato político, que na atualidade não é necessário. O ensino em geral é em catalão e há muita subvenção à criação literária nessa língua, enquanto não há nenhuma em castelhano. Rivalizar por um idioma é uma das piores formas de dividir uma sociedade, e de maneira tortuosa, porque na rua se falam os dois idiomas com naturalidade.

    É um revanchismo injusto: a maioria dos escritores em castelhano também lutamos a favor do catalão durante o franquismo. Cada um é livre para ter seus desejos, mas os atos políticos estão sujeitos a normas e leis e quando não o são, viram delitos. A Catalunha tem uma autonomia quase absoluta, de maneira que não pode reclamar mais além do que já tem.

    Os nacionalismos são uma forma de narcisismo coletivo. De dizer: "Somos os melhores". Assim faziam os arianos contra os que não o eram e assim inventaram a caça aos judeus. Não há nada mais egoísta e menos solidário que o independentismo catalão. Qualquer nacionalismo que coloque a identidade de nascimento por cima da solidariedade de classe é de direita.

    Os catalães seduziram parte da sociedade com a ideia de que "a Espanha nos rouba", e o resultado é que empobreceram a Catalunha, criando um conflito desnecessário.

    *

    Lil Castagnet/Divulgação
    A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi
    A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi

    RAIO-X

    Nascimento
    Montevidéu, 12.nov.1941

    Vida e obra
    Estreou na literatura com a coletânea de contos 'Viviendo' em 1963.
    Autora premiada e professora de literatura sob a ditadura uruguaia, teve de exilar-se em 1972, mudando-se para Barcelona
    Autora de mais de 40 títulos entre poesia, romance, contos e não ficção variada, traduziu para o espanhol Clarice Lispector e outros autores brasileiros

    *

    ESPAÇOS ÍNTIMOS
    AUTORA Cristina Peri Rossi
    EDITORA Gradiva
    TRADUÇÃO Adriana Carina Camacho Álvarez
    QUANTO R$ 35 (238 págs.), à venda em gradivaeditorial.com.br

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024