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    crítica

    Simbiose entre poesia e realidade, 'A Margem' chega novo aos 50

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    07/12/2017 02h00

    A MARGEM (ótimo)
    DIREÇÃO Ozualdo Ribeiro Candeias
    ELENCO Mário Benvenutti, Valeria Vidal, Bentinho
    PRODUÇÃO Brasil, 1967, 12 anos

    *

    "A Margem" nunca foi um filme do cinema novo. Nem poderia ser. O cinema novo foi um movimento de jovens intelectuais, não raro saídos de famílias de ilustres intelectuais. Eles pretenderam e não raro souberam, é verdade, abrir as câmeras para essas parcelas da população brasileira até então excluídas pelo cinema: os pobres, os negros, desdentados, aleijados etc.

    O que Ozualdo Candeias trouxe em "A Margem" era de outra ordem. Falava-se dos pobres, sim, mas a partir de outra perspectiva. Candeias conhecia aquelas pessoas por outro viés que não o ideológico. Ele as conhecia, ponto. Daí ser capaz de explorar tão profundamente a sua estranha poesia.

    Tudo começa com um barco que passa pelo rio Tietê e aproxima-se da margem, onde se vê, primeiro, um mendigo com seu terno puído (Mario Benvenuti); logo depois surge uma bela moça negra (Valeria Vidal), que olha surpresa, talvez fascinada, para o bote.

    Junto a uma ponte, enquanto o barco prossegue em seu suave caminho, surge o segundo casal do filme: a moça que serve cafezinho em algum escritório (Lucy Rangel) e o retardado do lugar (Bentinho).

    Serão esses quatro os protagonistas do filme. Candeias opera quase sempre com uma câmera subjetiva. Mas não se trata de buscar um efeito estético original. É como se desejasse estar dentro de seus personagens, partilhar cada um de seus sonhos, de suas aspirações, ao mesmo tempo em que capta seus corpos, suas existências à margem.

    Talvez os sonhos sejam, no entanto, os mesmos: o mendigo de terno aspira à dignidade; a moça negra, ao casamento; a moça branca, a uma vida melhor; o rapaz retardado, ao amor (da moça branca).

    Simples como viver e morrer. Morrer, por sinal, é uma perspectiva que se abre desde o início, quando o bote atravessa a tela (lembra um pouco a atmosfera do "Limite", de Mario Peixoto). Não será difícil associá-la à barca de Caronte, até porque a morte estará sempre à espreita desses personagens.

    Talvez se possa ir um pouco adiante: desde o início talvez essas pessoas já estejam mortas. Elas não pertencem a esse mundo, um pouco como os personagens do "Vampiro" de Dreyer. Não que sejam vampiros: simplesmente não há lugar para eles.

    É esse o estofo de "A Margem": não um filme de preocupação social, mas social. Um filme que abdica do realismo em nome da poesia, e depois troca a poesia pelo real. Quer dizer: para deixar em nós uma impressão mais exata da realidade de seus personagens, da vida à margem, é que busca a poesia que existe em cada um deles.

    "A Margem" chega aos 50 anos novo em folha. Não apenas pela atualidade e pelo interesse que preserva, mas por estar em forma melhor do que quase todos o conhecemos: restaurado.

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