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    crítica

    Romance de Richard Adams é como a 'Eneida' com coelhinhos

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    09/12/2017 02h00

    AFP/Arquivo da família
    Autor britânico Richard Adams
    Autor britânico Richard Adams

    EM BUSCA DE WATERSHIP DOWN (ótimo)
    AUTOR Richard Adams
    TRADUÇÃO Rogério Galindo
    EDITORA Planeta
    QUANTO R$ 41,90 (464 págs.)

    *

    É mais ou menos como a "Eneida", só que com coelhinhos no lugar dos guerreiros troianos que tentam escapar da destruição anunciada de seu antigo lar.

    Colocando as coisas nesses termos, aventurar-se a ler "Em Busca de Watership Down" pode parecer coisa de doido de pedra. Não se deixe enganar pela aparente incongruência, porém: os heróis felpudos criados pelo britânico Richard Adams (1920-2016) são, à sua maneira, tão épicos quanto Eneias.

    Ou quanto Cassandra, a princesa de Troia condenada a profetizar o fim de sua cidade e não ser ouvida por ninguém.

    Na saga de Adams, Cassandra se metamorfoseia em Quinto, um coelho pequenino e assustadiço cujas visões lhe mostram o viveiro de Sandleford (onde o bichinho mora ao lado de seu irmão Avelã) transformado num campo de sangue.

    Ao contrário da profetisa troiana, Quinto consegue convencer Avelã e um punhado de outros jovens coelhos da verdade de suas visões, e esse grupo de desajustados tem de abrir caminho à força para deixar o viveiro natal.

    Eles saem então à procura de uma nova morada na zona rural inglesa –o pequeno monte conhecido como Watership Down (todos os lugares da história podem ser identificados no mapa do Reino Unido do mundo real).

    MAIS DO QUE HOBBITS

    Sim, estamos falando de uma "jornada do herói" clássica, em certo sentido –a situação que descrevi no último parágrafo poderia ser aplicada, em grande medida, ao hobbit Bilbo Bolseiro, ou ao "caipira espacial" Luke Skywalker nos primeiros minutos da série "Star Wars".

    Mas Adams acrescenta alguns ingredientes especiais a essa receita aparentemente comum. O mais importante deles é –para usar uma palavra que anda perdendo conteúdo semântico de um jeito alarmante nos últimos tempos– "empatia".

    Empatia em doses cavalares, aliás, o que confere ao autor (e, de carona, ao leitor) a capacidade de enxergar o mundo pelos olhos de um bando de coelhos.

    É verdade que os aventureiros orelhudos de Adams, quando estão entre si, pensam e falam como seres humanos, mas não conseguem manipular objetos com destreza, construir ferramentas ou entender a linguagem do Homo sapiens.

    Sabem que podem ser presas de quase qualquer predador, de duas ou quatro pernas, se não utilizarem ao máximo a astúcia e a coesão social que o Senhor Frith lhes deu.

    Divulgação
    Poster da série "Watership Down", da Netflix, baseada no romance de Richard Adams
    Poster da série "Watership Down", da Netflix, baseada no romance de Richard Adams

    "Senhor Frith", o Sol, é o Criador na mitologia dos coelhos e um dos personagens lendários das histórias primordiais que interrompem a narrativa em momentos estratégicos, ajudando não só a entender o universo mental dos heróis como também a lançar luz sobre cenas e motivos da ação vindoura.

    É como se cada ponto de virada da vida dos coelhos de carne e osso fosse transfigurado por um comentário mítico –frequentemente cômico e, ao mesmo tempo, mortalmente sério.

    O grande astro desses mitos não é Frith, mas El-ahrairah, o Príncipe dos Mil Inimigos, patriarca e protetor dos coelhos que é uma figura clássica de "trickster", ou trapaceiro (no romance, Adams o compara a Robin Hood).

    Tratado com humor indulgente pelo Criador, El-ahrairah é dono de astúcia invencível, mas carrega em seu próprio nome o perigo que paira o tempo todo sobre as cabeças de qualquer coelho, cujos predadores são conhecidos como "Elil" –"os Mil", ou seja, os de número infinito na língua lapina, ou "coelhês", esboçada pelo escritor britânico.

    Profundamente enraizada na cultura e na história natural da Inglaterra rural, num universo linguístico em que o folclore e a tradição clássica viram parceiras, essa narrativa aparentemente despretensiosa tem um poder transcendente difícil de explicar.

    Leia –e, se possível, aproveite para ler Homero e Virgílio logo depois.

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