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    crítica

    Autora aborda arrependimento materno de forma inestimável

    VERA IACONELLI
    COLUNISTA DA FOLHA

    13/12/2017 02h00

    MÃES ARREPENDIDAS (muito bom)
    AUTORA Orna Donath
    TRADUÇÃO Mariana Vargas
    EDITORA Civilização Brasileira
    QUANTO R$ 49,90 (252 págs.)

    *

    O que mais surpreende no livro "Mães Arrependidas", da israelense Orna Donath, talvez seja o fato de que ele tenha precisado ser feito.

    É revelador que uma antropóloga tivesse que desenvolver uma pesquisa de quase uma década, baseada em ampla bibliografia e dezenas de entrevistas para explicar e justificar que muitas mulheres se arrependem de terem sido mães.

    O arrependimento materno é tão comum quanto sua negação é assustadora, causando escândalo nos fóruns de redes sociais –um dos principais locais onde se debate esse tema. E haja peneira para tapar esse sol, que brilha incessantemente nas mazelas individuais e sociais.

    A autora dá voz a essas mulheres, enfrentando todo tipo de incredulidade. Arrependimento materno? Não pode ser! Como se nós humanos pudéssemos pensar o arrependimento para todos os atos, menos para a maternidade.

    Espécie de rincão de todas as fantasias de idealização e execração humana, a maternidade é ainda o lugar do impensável.

    Aliás, no já clássico texto "As Erínias de uma Mãe: Ensaio sobre o Ódio" (ed. Escuta, 1997), Conrad Stein não se furta a apontar a dificuldade do próprio Sigmund Freud (1856-1939) de enxergar a capitulação materna.

    Embora o criador da psicanálise tenha podido falar da sexualidade dos bebês, o que o tornou um herege para alguns de seus leitores, falar da ambivalência materna foi demais até para ele.

    Orna Donath vai além e desmonta o subterfúgio tranquilizador de que as mães arrependidas seriam aquelas que odeiam os filhos e nos coloca diante da irrecusável constatação de que não se trata de ódio aos filhos (que pode existir ou não).

    Nesse ponto, o texto ganha mais força e importância. Arrepender-se de ser mãe é diferente de não amar os filhos. Parece impossível reconhecer que por mais que se ame os filhos, o desejo de não ser mãe é preponderante em muitos casos.

    Difícil pensar sobre essa aparente contradição? E que tal imaginar que podemos amar nosso marido, por exemplo, mas desejamos a vida de solteira a ponto nos arrependermos de ter casado?

    Homens abandonam seus filhos com alarmante frequência. Embora seja um ato socialmente condenado, ele é inteligível, enquanto que a mulher, quando passa pela mesma situação, é considerada totalmente louca.

    CONSTRUÇÃO

    O que nos faz acreditar, contra todas as evidências, que a maternidade seja um outro departamento para além do desejo humano comum? Nunca é demais lembrar que foram séculos de argumentação tentando convencer as mulheres ocidentais a se anularem em função dos filhos.

    É vasta a literatura histórico-sociológica que revela essa passagem do século 17 ao século 19, na qual se constrói o mito de que o vínculo da mulher com a maternidade é instintual (contribuição da biologia), prova de saúde psíquica (deslize da psicologia) e de moralidade (segundo a religião e a boa sociedade).

    Os instintos em humanos existem, mas, diferentemente dos outros mamíferos que só fazem sexo no período fértil da fêmea, somos obcecados por driblar a fertilidade em favor do prazer.

    Quanto à patologia e à moralidade sabemos que estão à serviço de imputar à mulher uma tarefa que é coletiva, como bem demonstrou a francesa Elizabeth Badinter na década de 1980.

    Parece que mais algumas décadas (ou séculos!?) serão necessárias para reverter essas ideias construídas. Nesse sentido, a contribuição de Donath com a obra "Mães Arrependidas" é inestimável.

    É na contingência que o amor humano pode ter valor. Se fosse um simples instinto, que valor poderia haver no amor materno? Que nossas mães, ainda que nos amem, possam desejar outra vida além da maternidade, somente revela que antes de tudo elas são pessoas.

    Talvez aí resida nossa maior dificuldade em lidar com o tema da capitulação materna: a ferida narcísica decorrente da descoberta de não sermos suficientes para elas.

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