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    crítica

    Tradução ousada traz à luz texto grego protossurealista 'obscuro'

    GUILHERME GONTIJO FLORES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    13/12/2017 02h15

    ALEXANDRA (muito bom)
    AUTOR Lícofron
    TRADUÇÃO Trajano Vieira
    EDITORA 34
    QUANTO R$ 49,90 (216 págs.)

    *

    "Vejo o tição alado apressurar-se ao rapto / de uma columba, perra da ínsula de Pfenos / que um abutre aquícola concede à luz / na carapaça sob o cone de um invólucro."

    Essa imagem protossurrealista é o que lemos nos versos 86-89 da "Alexandra" de Lícofron (séc. 3º a.C.), traduzido pela primeira vez ao português por Trajano Vieira. Trata-se de um poema famoso, desde a Antiguidade, como "obscuro", e com razão.

    Como lembra o próprio Vieira, ao longo de seus 1.474 versos, temos 310 palavras que aparecem exclusivamente nesta obra, além de outras 104 que ali aparecem pela primeira vez na língua grega.

    O que lemos neste poema complexo é o relato da profecia da troiana Cassandra (também chamada Alexandra), filha do rei Príamo, uma vidente condenada por Apolo a nunca ser compreendida em seus vaticínios; ela, presa, anuncia a um mensageiro todo o destino de Troia e dos gregos e, mais, também os acontecimentos futuros do mundo antigo, até a fundação de Roma e os feitos de Alexandre, o Grande.

    Portanto o que vemos é o relato do relato, o modo como o mensageiro leva a Príamo o que acabou de ouvir.

    Temos então um longo monólogo trágico, escrito em trímetros iâmbicos (o principal metro do teatro grego), porém com uma narratividade épica atravessada por uma linguagem obscura e oracular. Mas ela fracassa no sentido, e é nesse fracasso que está o sucesso de Lícofron.

    PRECISÃO NA OBSCURIDADE

    O mais notável é que o texto tem precisão em sua obscuridade, porque precisa remeter aos eventos míticos da guerra e da história, porém de modo a manter a incompreensibilidade original do mensageiro e do rei Príamo, ele cria um futuro do pretérito que, para o leitor, se torna prova do passado, elo entre a narratividade do mito distante e da história próxima.

    Assim Lícofron refaz o percurso do sentido turvo em duas lâminas: o presente de Cassandra e Príamo aponta para um futuro absolutamente incompreensível, e o presente do leitor que reconfigura o contexto passado e, portanto, tem uma chance de revisar o labirinto hermético da escrita, desde que disposto a cair num abismo do sentido.

    Na leitura de "Alexandra", é a radicalidade poética que ganha a cena, entre neologismos, arcaísmos, rasgos sintáticos, metáforas inesperadas, imagens aparentemente surreais, referências pouco conhecidas, num enviesamento generalizado, numa recusa da clareza imediata.

    Diante de tal desafio de interpretação e tradução, Trajano Vieira talvez tenha realizado o seu melhor trabalho até o presente.

    Como herdeiro da poética tradutória de Haroldo de Campos, Vieira sempre primou pela experimentação lexical e sintática, seja em Homero, Eurípides ou mesmo Cafávis, por isso em Lícofron parece ter achado a obra exemplar para que sua tradução encontre um original que faça pleno jus ao seu jogo.

    INVENÇÕES INUSITADAS

    Toda ousadia aqui merece louvor, como na invenção de termos os mais inusitados, tal como "dionisalinígena" para verter "xeinobákhes".

    Para além disso, o livro vem acompanhado de uma introdução cuidada, de um índice dos –muitos– nomes citados na obra, de uma série de excertos da crítica mais moderna acerca de Lícofron e de um aparato de notas que permite ao leitor escapar do protossurrealismo anunciado à primeira vista.

    Como último exemplo, dou integralmente a nota que elucida os versos que iniciam esta resenha: "Alexandra retoma as ações que estão prestes a ocorrer: a viagem de Páris ('tição alado') a Esparta, de onde trará Helena ('columba', 'perra').

    "Hécuba sonhou que daria à luz uma rocha responsável pelo incêndio de Troia (Páris), sequestrador da cadela (Helena) num navio (as asas de Páris remetem às velas de sua nau) em Pfenos, na Lacônia. Helena foi concebida de um ovo ('invólucro') após Zeus, metamorfoseado em cisne, ter seduzido Leda", donde podemos concluir que o "abutre aquícola" é o próprio Zeus na forma de cisne: a imagem, pela informação erudita de narrativas em torno deste episódio, torna-se ao fim clara, precisa em sua obscuridade.

    Disse Mallarmé que Lícofron era "um verdadeiro lírico; mas pouco obscuro, senão pelos fatos esquecidos aos quais faz contínua alusão"; no entanto, Mallarmé parecia pensar apenas no grupo de eruditos da Biblioteca de Alexandria como os possíveis leitores da obra, o que seria uma má avaliação da duração da Alexandra ao longo dos séculos, para além do entendimento daqueles "fatos esquecidos".

    Na verdade, a mesma obra pode se desdobrar em múltiplas leituras, como são múltiplos os leitores e intérpretes. Agora o leitor brasileiro pode enveredar por essa trama com ou sem as notas, radicalizando a experiência poética na tradução de Trajano, ou desvelando os enigmas em suas notas.

    GUILHERME GONTIJO FLORES é poeta, tradutor e professor de latim na UFPR.

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