No final de setembro, no evento de internet YouPix Con, em São Paulo, na mesa "E aí, a TV morreu ou não?", o youtuber Felipe Neto, que tem 16,7 milhões de seguidores, atacava a Rede Globo.
"É triste ver o país com o maior consumo por usuário do YouTube ter uma receita tão pífia no digital, por um fator determinante, que não está sentado aqui, que é a Globo."
"Como a audiência cai e a receita cresce? Não há matemática no mundo que explique o aumento de receita da Globo em relação à queda de audiência dos últimos anos. Como?!? Como?!?"
Do meio da plateia, levantou-se Paulo Marinho, neto de Roberto Marinho e responsável por parte das iniciativas do Grupo Globo no ambiente digital, da plataforma VIU Hub à parceria com a Vice Media.
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Felipe Neto (esq.) e Paulo Marinho (de costas, à dir.) na mesa 'E aí, a TV morreu ou não?' do YouPix Con |
"Não é verdade", começou ele. "A audiência não está caindo. Quer dizer, dentro do universo da televisão, não está caindo. Você tem uma divisão com o digital, que obviamente vem crescendo."
Marinho falou mais, defendendo as práticas na relação da Globo com agências, como o bônus por volume (BV), até sair para não perder um voo:
"E só para deixar uma informação, são 100 milhões de pessoas que passam pela TV Globo por dia, que é um número que o Google [YouTube] demora um mês para chegar. 100 milhões."
YOUTUBE
Mais do que a Felipe Neto, segundo maior youtuber do país, Marinho havia respondido ao próprio YouTube, o site de vídeos do Google, concorrente da Globo por publicidade.
Duas semanas antes, o YouTube havia aberto a temporada de encontros de fim de ano —de emissoras e plataformas com agências e anunciantes— levando números milionários.
Este é o momento em que se projetam os orçamentos publicitários para 2018, daí a concorrência que, no Brasil, ocorre a portas fechadas. A Folha teve acesso aos dados apresentados pelo YouTube.
No encontro, disse ter audiência de 103 milhões (julho/17), "estimativa baseada no cruzamento de dados populacionais do IBGE com pesquisas de penetração como Ibope TGI".
Divulgou pesquisa Video Viewers, do Instituto Provokers, "apoiada pelo Google", mostrando que o consumo de vídeos digitais cresceu 90,1% em três anos, enquanto o tempo gasto em TV ficou estável.
No relatório, frases como "86% dos brasileiros assistem vídeos on-line ao menos uma vez por mês", "99% destes usam o YouTube" e "83% dizem preferir assistir na internet".
GLOBO
Daí a reação de Marinho, dizendo que o YouTube tem 100 milhões por mês, enquanto a Globo tem 100 milhões por dia. Ambas as estimativas apontam uma novidade: as métricas mudaram.
Assim como o YouTube, a Globo precisou fazer "cruzamento de dados" para apresentar o número redondo ao mercado publicitário, em campanha aberta um mês após a discussão com Felipe Neto.
A rede passou a divulgar, segundo Willy Haas, diretor geral de Negócios da Globo até dias atrás, "as milhares de informações que temos sobre quem consome nossos conteúdos todos os dias, nas nossas diversas plataformas".
O ibope médio diário, de janeiro a setembro, foi de 98 milhões. Acrescentaram-se então os 14 milhões que a comScore apurou para sites como G1 e Globo Play —sem precisar se há duplicidade de usuários.
"Ou seja, mais de 100 milhões", disse a Globo, ao anunciar eventos "com marcas, agências e parceiros para compartilhar o que conhece sobre quem a assiste em todas as suas telas".
[Leia esclarecimentos da Globo no Painel do Leitor, sob o título "Audiência".]
No rastro dos milhões de YouTube e Globo, a Record também saiu com um número redondo, num anúncio em veículos voltados ao mercado publicitário: "Nada contra os 100 milhões de uns. Mas, se sua marca precisar falar com mais 50 milhões de outros, fale com a gente".
Em seguida veio o SBT, com uma campanha de comerciais e notas para a imprensa, com coisas como "Você e mais de 190 milhões estiveram com a gente" em 2018, sem identificar a origem do dado, ou "Vídeos vistos já passam dos 20 trilhões".
INEVITÁVEL
O "cruzamento de dados" evidenciado nas centenas de milhões e agora até mesmo "trilhões" divulgados por emissoras e plataformas pode soar algo questionável, neste momento, mas veio para ficar. É o que afirma o consultor Flávio Ferrari, ex-presidente-executivo do Ibope Mídia e ex-gerente-geral das operações brasileiras dos institutos Ipsos e GfK.
"A gente vai ter que se acostumar ao longo dos próximos anos, já começando agora, a contar com estimativas baseadas em fontes diferentes, a combinar métricas para fazer estimativas de desempenho", diz ele.
"É inevitável e é positivo, na medida em que você usa os recursos que já estão disponíveis, que de alguma maneira estão sendo financiados pela indústria, para obter as respostas que não estão presentes ainda."
Editoria de Arte/Folhapress | ||
Por outro lado, João Pedro Paes Leme, sócio-diretor da curadora digital Take4 Content, afirma que misturar métricas cria "um nó que impede a percepção clara do alcance dos conteúdos em múltiplas plataformas".
Ele questiona a "precisão" resultante: "No momento em que já aferimos a resposta a qualquer vídeo publicado, qualquer que seja a plataforma, não é compreensível conviver com métricas que usem ponto de audiência".
Ex-diretor-executivo de esportes na Globo, hoje administrando conteúdos digitais como o perfil de Felipe Neto no YouTube, Leme diz que "a resposta da audiência no digital é muito mais confiável".
FATORES DE CORREÇÃO
Mas não se trata só de comScore e do painel de TV do Ibope, diz Ferrari, citando vários outros levantamentos reconhecidos e que entram na mistura, como o TGI (Target Group Index, também do Ibope) e o EGM (Estudo Geral de Meios, da Ipsos).
Ele alerta que reunir métricas "demanda atenção grande, para que você possa estar informando melhor e não desinformando".
"Todas essas coisas foram pensadas, metodologicamente, para apresentar determinado universo, com uma determinada forma de medir, seja por pergunta, por aparelho, cookie", diz ele.
"Há muitos cuidados que precisam ser tomados, para você não estar contando as pessoas em duplicidade, para não estar fazendo projeções de universos que não são adequados para aquela métrica em particular."
Ele detalha que, "embasadas por estudos estatísticos e metodológicos", existiriam diversas formas de projetar, por exemplo, a audiência de uma cidade para outra, mesmo num país com a diversidade do Brasil, aplicando fatores de correção.