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    Crítica

    Espetáculo discute desumanização e impasses da civilização

    PAULO BIO TOLEDO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    16/12/2017 02h00

    Cacá Bernardes/Divulgação
    Peça 'Canto para Rinocerontes e Homens', do grupo Teatro do Osso, com direção de Rogério Tarifa
    Peça 'Canto para Rinocerontes e Homens', do grupo Teatro do Osso, com direção de Rogério Tarifa

    CANTO PARA RINOCERONTES E HOMENS (muito bom)
    QUANDO sáb. e seg., às 20h, dom., às 19h; até 18/12
    ONDE Galpão do Folias, r. Ana Cintra, 213, tel. (11) 3361-2223
    QUANTO R$ 10 a R$ 30
    CLASSIFICAÇÃO 16 anos

    *

    O espetáculo "Canto para Rinocerontes e Homens" faz com que os fundamentos da peça "O Rinoceronte", de Eugène Ionesco (1909-94), alcancem reverberações críticas mais impactantes do que as sugeridas na obra original.

    O grupo dirigido por Rogério Tarifa desconfia da metáfora abstrata sobre o totalitarismo que organiza a peça de 1959 e a projeta sobre o mundo embrutecedor do capitalismo.

    Nesta adaptação, o movimento central da peça, a transformação de seres humanos em rinocerontes, é associado a uma espécie de estrago social do homem no cotidiano regulado pelo trabalho.

    "Que humanidade é essa que você fala e eu não conheço? (...) Eu só sei trabalhar", afirma o personagem Jean enquanto sua pele endurece e lhe nascem chifres.

    Embora tornar-se rinoceronte signifique a adesão plena a essa lógica desumanizada, na mutação aparece também a revolta contra tal sistema.

    "Eu preciso descobrir que eu tenho sangue", grita Jean enquanto renuncia a ser humano. Um paradoxo bastante revelador sobre o fascínio de saídas totalitárias para os impasses da civilização.

    A montagem musical é uma espécie de ópera popular que ressalta a enunciação da palavra. E tudo acontece em uma arena. Nessa estrutura circular, o público passa a fazer parte dos dilemas apresentados e do exame crítico e coletivo sobre o tema. É uma atitude avançada de grande implicação política.

    Mas o espetáculo não se contenta com a adaptação da peça de Ionesco. É constituído também por uma série de comentários e reverberações líricas sobre os temas. O resultado para o público é uma estrutura dissonante.

    A montagem apresenta uma abordagem concreta, organizada a partir de uma perspectiva crítica sobre o mundo do trabalho.

    É uma encenação pensada de forma coral e materialista que atravessa a peça e apresenta força reflexiva sobre a atualidade. Entretanto, as aberturas líricas vão, pouco a pouco, se sobrepondo à objetividade crítica até tornarem-se centrais no quarto ato.

    A atuação coral e coletiva, por exemplo, é suplantada por uma sequência de monólogos de cada um dos atores no momento em que se transformam em rinocerontes.

    A forma épica de representar os temas da peça é encerrada e substituída pela elaboração individual e subjetiva sobre o discurso.

    Essa atitude que ganha terreno ecoa aquela ênfase no individualismo defendida por Ionesco em "O Rinoceronte" como a única possibilidade de resistir ao fascínio da massificação.

    Mas não seria esse individualismo também o fundamento ideológico da sociedade desumanizadora em que nos encerramos? Embora o grupo cante: "eu só não quero virar/ rinoceronte", a peça flerta com uma forma de capitulação lírica.

    E, surpreendentemente, o bruto paquiderme passa a ser visto com simpatia poética na imagem final do último rinoceronte branco.

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