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    Consentimento sexual faz parte de zona cinzenta, mostra 'Cat Person'

    JESSICA BENNETT
    DO "NEW YORK TIMES"

    19/12/2017 02h00

    Arquivo Pessoal
    Kristen Roupenian, autora do conto 'Cat Person', que viralizou após publicação na 'New Yorker
    Kristen Roupenian, autora do conto 'Cat Person', que viralizou após publicação na 'New Yorker'

    Há anos minhas amigas e eu conversamos sobre uma interação sexual que chamamos de "o ponto sem volta", e todas parecemos compreender tacitamente o que isso significa.

    É uma espécie de nuança sexual que a maioria das mulheres compreende instintivamente: uma situação que você achava que queria, ou talvez nunca quisesse, mas que havia surgido, e da qual deseja muito cair fora, mas sabe que, àquela altura, seria mais difícil abandonar do que ficar deitada lá e esperar que acabe.

    Em outras palavras: dizer sim quando na verdade queremos dizer não. Tive muitos encontros assim, mas é um deles ainda me causa repulsa.

    Tinha 19 anos e ele, mais de 30. Era o irmão mais velho de um colega de escola a quem minhas amigas e eu cultuávamos, quando adolescentes.

    Logo aconteceu e, àquela altura, eu tinha bastante certeza de que não queria que acontecesse, mas uma combinação entre medo (de ele me achar imatura), vergonha (por ter deixado a situação chegar àquele ponto) e culpa (será que eu o magoaria?) me levou a permitir que ele continuasse.

    Existem outros nomes: sexo em zona cinzenta, em referência aos aspectos menos nítidos sobre consentimento; sexo consensual relutante, porque sabe que na verdade preferiria não fazer sexo mas será mais fácil deixar rolar; sexo morno, porque não está muito aí com a coisa; e sexo ruim, com o "ruim" se referindo não à percepção do prazer da experiência, mas ao sentimento posterior.

    'SEXO CAT PERSON'

    E desde a semana passada, essa forma de sexo também passou a ser conhecida como "sexo Cat Person", em referência ao título de um conto publicado pela "New Yorker".

    O texto pode ser interpretado como uma história completamente corriqueira sobre um encontro sexual entre uma mulher e um homem, que começa por mensagens de texto e resulta em sexo sem graça.

    Não é um conto que trate de consentimento em si. Mas serve como janela para a desconfortável realidade que cerca o conceito. A história provavelmente ecoaria junto às mulheres jovens, de qualquer jeito.

    Mas no atual momento de acerto de contas cultural, trata de uma nuança crucial que por muito tempo parece ter sido ignorada no debate sobre assédio e agressão sexual: o fato de que consentimento nem sempre é branco e preto.

    Leia trechos do conto

    Às vezes "sim" significa "não", só porque é mais fácil fazer a coisa do que explicar por que queremos encerrar a situação. Às vezes "não" significa "sim", porque você quer fazer sexo, mas sabe que seria melhor não, para não ser chamada de vagabunda.

    E, se você é homem, aquele "não" muitas vezes significa "tente de novo" –porque, como todo mundo sabe, persuasão é parte do jogo.

    "Muito do que os homens jovens aprendem como sedução na verdade é só treinamento preparatório para agressão sexual", diz o sociólogo Harry Brod. (Ou, como definiu um amigo de 37 anos, "na mente de um homem, 'não' é sempre negociável".)

    Nos anos 1970 e 1980, um lema de combate ao estupro emergiu: "Não significa não". Quatro décadas depois, foi praticamente substituído por um novo padrão de consentimento, centrado no "sim", conhecido como modelo do "consentimento afirmativo".

    MOMENTO

    A linguagem corporal pode ser um fator pouco confiável, nos cenários sexuais. Assim, a questão da comunicação –dizer "sim" claramente– se torna crucial. A resposta padrão, portanto, é não.

    O que parece fazer muito sentido, dado o fato de que, ao menos em relacionamentos heterossexuais, homens e mulheres compreendem o termo "consentimento" de maneiras fortemente divergentes.

    Em um estudo, 61% dos homens disseram confiar em indicadores não verbais para captar o consentimento da parceira, e 10% das mulheres disseram expressar consentimento só por linguagem corporal.

    Estamos desconsiderando algo mais profundo: nossa ideia sobre aquilo que queremos está vinculada ao que pensamos que devemos querer, ao que a sociedade nos diz que deveríamos querer.

    E a maior parte daquilo que a sociedade nos diz –ao menos no que tange a mulheres e sexo– ainda está envolto em normas de gênero perigosamente obsoletas.

    JESSICA BENNETT é editora de gênero do jornal americano 'New York Times'

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Edição impressa

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