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    crítica

    Júlio Verne transforma EUA em um gigantesco tabuleiro de jogo

    ALCINO LEITE NETO
    ARTICULISTA DA FOLHA

    20/12/2017 02h00

    Library of Congress/Divulgação
    Registro da cidade de nova Orleans, feito entre1880 e 1897 e incluído no volume de Jules Verne
    Registro da cidade de nova Orleans, feito entre1880 e 1897 e incluído no volume de Júlio Verne

    TESTAMENTO DE UM EXCÊNTRICO (muito bom)
    AUTOR Júlio Verne
    TRADUÇÃO Mauro Baladi e Regina Schöpke
    EDITORA Carambaia
    QUANTO R$ 134,90 (676 págs.)

    *

    Em 1899, na França, os leitores da "Magasin d'Éducation et de Récreation" ("Revista de Educação e Recreação") acompanharam, de janeiro a dezembro, o desenrolar de um novo folhetim de Júlio Verne, "O Testamento de um Excêntrico".

    Não precisaram esperar muito tempo pela publicação em livro, lançado em agosto do mesmo ano pelo grande editor Pierre-Jules Hetzel, patrono de Verne (1828-1905).

    Mais de um século depois, a obra ganha, enfim, tradução no Brasil, feita por Regina Schöpke e Mauro Baladi para a editora Carambaia. Antes tarde do que nunca.

    As principais aventuras do genial escritor, mil vezes reeditadas, infelizmente ofuscaram "O Testamento de um Excêntrico", uma de suas últimas "Viagens Extraordinárias" –essa coleção de mais de 60 romances escritos ao longo de 40 anos, um Himalaia da imaginação literária.

    É certo que o livro não tem a inventividade visionária de "Da Terra à Lua" (1865) e "Vinte Mil Léguas Submarinas" (1870). Também deixa a desejar quando nos lembramos das magnéticas peripécias narradas em "A Volta ao Mundo em 80 Dias" (1873) e "Miguel Strogoff" (1876). Contudo, esbanja humor e ousadia.

    Ou não é motivo de espanto (e riso) que alguém tenha tido a ideia de transformar os Estados Unidos num gigantesco tabuleiro de jogo, cujas casas são os 49 Estados (à época) e cujas peças são sete personagens que deveriam saltar, ao acaso dos sorteios, para lá e para cá, atravessando todo o território norte-americano?

    É o que faz Verne, ou melhor, seu protagonista William J. Hypperbone (o sobrenome não é fortuito), excêntrico milionário que deixa de herança uma descomunal fortuna a ser entregue ao vencedor da partida do jogo do ganso, que, disposto assim, no plano federal, passa a ser chamado de "Nobre Jogo dos Estados Unidos".

    Enquanto os dados empurram os concorrentes pelas vastidões americanas, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, o próprio país vai se transformando em principal "personagem" desse livro, no qual Verne coloca em ação seu assombroso "savoir-faire" –o gosto por geografia, história e técnica, a meticulosidade documental, a observação irônica, os arroubos teatrais e os incidentes inauditos.

    Ao sabor da sorte, o leitor é conduzido por quase todo canto nos Estados Unidos, que vive o início de sua glória: a pujante Chicago, as multidões incalculáveis, a comunicação de massa, a natureza estonteante, a euforia trazida pelo progresso econômico, a atração exercida pelo desafio e pela conquista, e a confiança na vitória sobre o destino (e a morte).

    Para o francês provinciano da belle époque, quando Hollywood ainda não existia, "O Testamento de um Excêntrico" equivalia a um caudaloso guia turístico protocinemático de um país que, pressentia-se, sabia-se, era a imagem do futuro.

    Para o leitor contemporâneo, porém, certa consternação é inevitável. Com o livro, descobre-se, sem querer, como a história esmaeceu esse retrato da vibrante juventude dos Estados Unidos.

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