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    A desconfortável culpa branca de George Clooney em 'Suburbicon'

    WESLEY MORRIS
    DO 'NEW YORK TIMES'

    27/12/2017 02h00

    Divulgação
    Julianne Moore e Matt Damon em cena de 'Suburbicon', de George Clooney
    Julianne Moore e Matt Damon em cena de 'Suburbicon', de George Clooney

    Reserve espaço em seus pensamentos para "Suburbicon".

    É um filme de George Clooney sobre... bem, não sei ao certo. A ideia era que fosse um daqueles que não são mais feitos: repleto de estrelas, não muito caro, intelectualizado mas não demais.

    Não deveria surpreender que esse tipo de filme continue a ser feito, mas eu, pelo menos, sempre me surpreendo: é um filme de princípios, radiativamente repleto de princípios.

    Se o cinema está em dificuldade (as coisas não vão lá tão bem nas bilheterias dos Estados Unidos, e esse filme, especialmente, foi um enorme fiasco), é porque o vasto meio do caminho desapareceu dos filmes norte-americanos, e com ele os personagens memoráveis, o talento dos roteiros, a diversão e o risco —bem como aquela forma de seriedade moderada que não se prostra diante dos eleitores do Oscar.

    "Suburbicon" parece ser o último suspiro desse meio do caminho desaparecido. O filme se encara como frívolo e sério a um só tempo.

    Mas, para isso, é preciso um toque que George Clooney jamais teve. Ele parece determinado a aplicar sua mistura de seriedade sincera e humor quadradíssimo ao que vê como um retrato da era da luta pelos direitos civis.

    O filme se passa nos anos 50, em um enclave da Pensilvânia, e o casal interpretado por Matt Damon e Julianne Moore tenta ignorar as dezenas de brancos que estão causando arruaça na casa de uma família negra cujo quintal é adjacente ao deles. (É justo esclarecer que a arruaça acontece na frente da casa e não nos fundos.)

    Damon interpreta Gardner Lodge, um daqueles sujeitos brandos e comuns - gordinho, com óculos de armações escuras, engomado em toda parte —que se veem envolvidos em situações que excedem de longe os seus recursos, e o ator não parece ter compreendido o que o personagem deve representar.

    Moore interpreta a mulher de Gardner, Patricia, e também sua cunhada, Maggie, injetando quantidades diferentes de ar nos diálogos de cada personagem.

    Certa noite, uma dupla de assaltantes invade a casa deles. Alguém morre. E o filho dos Lodge, Nicky —um menino de 10,11, 12 anos?— passa o filme tentando compreender o que está acontecendo. Ele é o centro moral da história. E parece representar também a audiência-alvo.

    Joel e Ethan Cohen escreveram o roteiro, com participação de Clooney e Grant Heslov. Assim, estamos vendo "Fargo" mas refeito por pessoas que chegaram à conclusão de que faltava culpa branca a "Fargo".

    A história tem os gordos, o humor e a loquacidade insincera dos Coen, acompanhados pela moralismo pio de Clooney. De vez em quando o filme deixa de lado o que está acontecendo na casa dos Lodge e mostra a loucura que não para diante da casa dos vizinhos negros.

    As cenas em geral envolvem um monte de extras brancos marchando e gritando na direção da fachada da casa.

    Alguém sobe em um carro, e posiciona uma bandeira confederada em uma janela quebrada.

    Em dado momento, Oscar Isaac, fácil como sempre, aparece como um perito de seguros que faz questão de explicitar a situação: "Nossa, parece até que estamos no Mississipi".

    Tente de novo, Oscar. Estamos na velha e cansada Hollywood, isso sim, para a qual expor um problema equivale a resolvê-lo.

    Tudo que sabemos sobre a família vizinha - os Mayers - é que eles acabam de comprar a casa e são negros. E eles são negros com perfeito autocontrole, rapaz.

    Quando racistas gritam com ela, a Sra. Mayers não grita de volta. Continua a pendurar roupas no varal.

    Quando ela vai à mercearia local e o vendedor aumenta o preço dos produtos que ela quer comprar (todos os produtos passam a custar US$ 20), ela não insiste e sai, demonstrando a espécie de estoicismo de que um filme como esse precisa como substituto para o triunfo da dignidade.

    Já o Sr. Mayers praticamente não tem diálogos. Mas ele é ótimo no cortador de grama. Os filhos do casal passam o filme brincando com Nicky, que é ordenado por sua tia a fazê-lo —uma ordem que também parece se aplicar a Clooney.

    A forma pela qual a família Mayers é retratada não é muito diferente da participação de Dianne Reeves, cantando jazz, e do uso do depoimento real de Annie Lee Moss em "Boa Noite e Boa Sorte", docudrama que Clooney dirigiu em 2005.

    Clooney já dirigiu seis filmes. Cinco se passam na metade do século passado. E "Suburbicon" explica o motivo. As questões raciais são um ponto cego para ele. Nenhuma das cenas com os Mayers dura mais de 90 segundos; a maioria delas mal chega aos 15 segundos.

    E todas servem apenas como contraponto moral à frivolidade cada vez mais sombria que acontece na casa dos Lodge.

    Manohla Dargis percebeu essa desigualdade em sua crítica ao filme no "New York Times". O elenco telegrafa as prioridades de "Suburbicon".

    Assista ao trailer de 'Suburbicon'

    Trailer de 'Suburbicon'

    Os atores negros —Karimah Westbrook, Tony Espinosa e Leith Burke— podem não ser tão famosos quanto seus colegas brancos de elenco, mas Clooney não lhes dá a oportunidade de demonstrar se são igualmente bons.

    Em setembro, depois da estreia de "Suburbicon" no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Clooney disse a David Sims, da revista "Atlantic", que está ciente de que sua abordagem é imperfeita.

    "Seria muito justo dizer que há muita gente mais qualificada do que eu para contar a história dos negros nos subúrbios de classe média", disse Clooney.

    "Existe uma versão desse filme que eu gostaria de ver pelo outro lado, que poderia ser mais bem representado por alguém mais capacitado do que eu para falar sobre isso, e que provavelmente deveria fazê-lo". Clooney prosseguiu: "Creio que minha versão fala daquilo que eu sei, a angústia branca e o medo de perder o lugar para as minorias".

    Ele também declarou que gostaria de ver uma versão da mesma história dirigida por outro cineasta - por exemplo Ava DuVernay ou Steve McQueen.

    Pode bem ser que a arruaça branca que é mostrada em "Suburbicon" sirva para representar os eventos que os nacionalistas brancos vêm promovendo pelo país.

    E talvez dentro desse filme viva uma farsa que leva em conta a indiferença dos brancos diante de uma catástrofe nacional. Mas ninguém teve a audácia de encontrá-la. O filme é a catástrofe, em lugar disso.

    Na era em que a história se passa, havia dramas como "No Way Out" (1950), de Joseph Mankiewicz, e "Pressure Point" (1962), produzido por Stanley Kramer.

    Os dois filmes foram estrelados por Sidney Poitier, e nenhum teme pelo menos tentar encarar a questão racial "pelo outro lado". O retrato violento e implacável do racismo em "No Way Out", que inclui cenas de arruaça e agressão contra os negros, continua a chocar ainda hoje.

    São filmes tão quadrados quanto aqueles que Clooney tende a realizar, mas também são trabalhos ousados, por tentarem contemplar o presente, ainda que de modo imperfeito, em lugar de se refugiarem no passado.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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