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    O método perigoso de David Cronenberg

    STEVE ROSE
    DO "GUARDIAN"

    10/02/2012 17h03

    Sempre é tentador imaginar que se pode analisar psicologicamente um cineasta com base em seus filmes, especialmente quando se trata de David Cronenberg.

    Divulgação
    O ator Viggo Mortensen em cena de "Um Método Perigoso"
    O ator Viggo Mortensen em cena de "Um Método Perigoso"

    Como devemos interpretar um diretor que gravou indelevelmente em nosso inconsciente coletivo imagens de cabeças explodindo, vermes estupradores subindo pelo ralo da pia, videocassetes sendo inseridos em aberturas abdominais vaginais, instrumentos ginecológicos de vanguarda? O fato de seu novo filme ser sobre Sigmund Freud, Carl Jung e os primórdios do movimento psicanalítico apenas intensifica a ânsia.

    Cronenberg está sentado à minha frente, sobre um divã confortável, mas as chances de persuadi-lo a se deitar nele são escassas. É muito mais o caso de ele me fazer deitar no divã. Digo ao diretor de 67 anos que "Scanners - Sua Mente Pode Destruir" (e em especial a cabeça que explode nesse filme) foi uma experiência formadora para mim, um filme ilicitamente visto e revisto em câmera lenta em VHS uns bons seis anos antes de eu chegar à idade em que poderia vê-lo legalmente. "Meu Deus, espero que não tenha feito muito mal a você", ele responde, rindo.

    GEEK E COOL

    Nos anos 1970, Cronenberg era o geek científico típico: cabelos pretos oleosos, óculos de fundo de garrafa. Hoje em dia a aparência dele é cool --como o irmão mais inteligente de Ted Danson.

    Multidões de fãs do horror vêm manifestando consternação e até raiva pelo fato de Cronenberg aparentemente ter abandonado os filmes repletos de efeitos especiais e imagens que viram o estômago, com os quais fez seu nome. Para eles, Cronenberg se vendeu, aderindo ao "mainstream" com trabalhos como "Marcas da Violência" e "Senhores do Crime".

    "Sim, sim, mas ignoro isso porque eles não têm direito de ficarem indignados", diz Cronenberg. "Essa é a desvantagem de ter fãs. Freud chamaria a isso a compulsão pela repetição: eles querem que você continue a fazer sempre a mesma coisa. Querem ter 10 anos de idade outra vez e assistir a 'Scanners' quando não deveriam. Mas esse é o projeto deles. O meu é explorar coisas e me conservar interessado e instigado pelos filmes que faço. São duas coisas diferentes."

    À primeira vista, "Um Método Perigoso" talvez seja seu filme mais convencional até agora: elenco de grandes nomes, personagens históricos e ambientação de época. Adaptado da peça "A Dangerous Method", de Christopher Hampton, é baseado na história aparentemente verídica da aliança de curta duração entre o jovem Jung (Michael Fassbender) e seu mentor, Freud (Viggo Mortensen), e o papel crucial representado por Sabina Spielrein (Keira Knightley), que começou sendo paciente de Jung, depois tornou-se sua amante e, finalmente, sua aluna.

    Mas "Um Método Perigoso" subverte seus cenários de época. Impulsos bestiais aparecem por trás das fachadas decorosas da Viena do século 19 e de vez em quando explodem de maneira espetacular. Na ausência de sangue, a visão de Keira Knightley primeiro delirando histericamente e depois levando palmadas de Jung, para seu prazer masoquista, fornece as imagens mais marcantes do filme.

    "É claro que Keira estava um pouco preocupada com as cenas das palmadas, mas isso é normal", diz Cronenberg. "Muitas vezes o medo do ator é de não poder dar a você o que você procura. Mas Keira é muito pé no chão, e pudemos discutir a questão muito francamente. Falei a ela: 'Não se reprima'." Alguns críticos avaliaram a performance da atriz como exagerada, mas, segundo Cronenberg, o caso de Spielrein foi bem documentado, e a versão que Knightley apresenta é "absolutamente fiel à realidade".

    REPRESSÃO E LIBERTAÇÃO

    Mais do que apresentar um triângulo amoroso excepcionalmente bem articulado, "Um Método Perigoso" apresenta uma paisagem de repressão e libertação, de civilidades forçadas e neuroses profundas, detendo-se quando a Primeira Guerra Mundial estava prestes a começar --como que para sugerir que essas questões moldariam a Europa pelo resto do século. "Freud nunca foi mais relevante que hoje", diz Cronenberg.

    "Graças a sua compreensão do que são os seres humanos e sua insistência sobre a realidade do corpo humano. Não escapamos disso. Jung partiu para uma espécie de misticismo ariano, enquanto Freud insistia nos humanos como realmente somos, não como gostaríamos de ser. Isso muitas vezes é duro de aceitar, mas não para de colocar-se novamente para nós. A possibilidade de mergulhar na barbárie tribal era muito chocante para os europeus da época. Serem repentinamente mergulhados em chamas e barbárie foi algo que despedaçou seus ideais. E nós tivemos Kosovo e os Bálcãs para nos recordar que isso pode acontecer de novo."

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    A atriz Keira Knightley em cena de "Um Método Perigoso"
    A atriz Keira Knightley em cena de "Um Método Perigoso"

    Cronenberg tem alguma experiência direta da terapia freudiana? "Não. Isso é algo que você utiliza como ferramenta em sua vida se sente que precisa dela, e eu nunca senti que precisei. Seria como tomar um antibiótico se você não tem uma infecção."

    Apesar de todas as perversões que já apresentou na tela, ele se considerada totalmente normal --e, por mais que tentem, os críticos não têm encontrado elementos para contradizer essa avaliação própria feita pelo diretor. Falando sobre sua infância em Toronto, Cronenberg diz que seus pais eram "amorosos e doces e não exigentes". Morreram relativamente jovens, antes de ele ter realmente encontrado seu lugar como cineasta.

    Cronenberg não acha que eles ficariam chocados com qualquer coisa que ele fez mais tarde. "Eles nunca me pressionaram a arrumar um emprego de verdade ou qualquer coisa assim. Entendiam a arte." Na universidade, ele desistiu de estudar ciências para estudar inglês. Fumou maconha, mas não muito, porque fazia sua garganta doer. Tomou LSD uma vez. "Achei uma experiência muito forte e reveladora. Tive a certeza de que voltaria a tomar muitas outras vezes, mas não tomei." Ele curte andar de bicicleta no campo.

    O PIOR DA INGLATERRA

    Os filmes de Cronenberg revelam mais sobre seu público que sobre o diretor. Tome-se o caso da maneira como o Reino Unido perdeu a cabeça em torno de "Crash, Estranhos Prazeres", em 1996: a reação da imprensa britânica ao erotismo veicular do filme foi tão desproporcionalmente histérica que, vista em retrospectiva, parece cômica.

    "Proíbam este filme sobre sexo e acidentes de carro", vociferou o "Daily Mail", até que a questão passou a ser tratada por políticos. "A recepção dada a 'Crash' me surpreendeu totalmente", diz Cronenberg hoje. "Era um romance publicado 20 anos antes e bem aceito como parte do cânone de J.G. Ballard. Realmente não imaginei que esse filme, que foi bastante fiel ao tom do livro, seria tão chocante para as pessoas aqui."

    Ballard descreveu o furor como "a pequena Inglaterra no que ela tem de pior", algo sintomático de "uma nação estranha, nervosa". Cronenberg observa que não houve controvérsia em torno de "Crash" na França ou no Canadá. "Países diferentes têm reações diferentes. Alguns filmes fazem sucesso em certos lugares, outros, não. Se não me engano, 'Calafrios' foi exibido em Glasgow por três anos ininterruptamente. Por que isso? Não faço ideia."

    Ele sugere que "Um Método Perigoso" o tenha levado a completar um círculo. Seu primeiro filme, um curta de sete minutos, "Transfer", foi um esquete surrealista sobre um psiquiatra e sua paciente. Cronenberg já tratou desse assunto desde então, mais notavelmente em "The Brood", de 1979, em que Oliver Reed representou um psiquiatra renegado cujas técnicas experimentais consistiam em ele fazer de conta que era os pais abusivos ou filhos ignorados de seus pacientes. (A história não termina bem para ele, e uma Samantha Eggar demoníaca pare crianças mutantes homicidas no sótão.)

    Mais tarde Cronenberg admitiu que a história, que adota uma visão altamente negativa da psiquiatria, foi inspirada pela separação de sua primeira mulher e a briga com ela pela guarda da filha deles.

    TRANSFORMAÇÃO

    Como é o caso com várias outras coisas, a posição do diretor em relação à terapia parece ter mudado muito desde então. Se existe alguma constante em seu trabalho, é a mudança. Ou, melhor dizendo, a transformação --do corpo, da alma e geralmente da sociedade, também.

    Seus personagens geralmente são mergulhados em uma existência radicalmente nova graças a alguma força externa, e não é necessariamente uma experiência negativa: as transmissões televisivas tóxicas de "Videodrome" geram "a nova carne; os acidentes de carro de "Crash" são descritos como "fertilizadores". "Um Método Perigoso também se enquadra nesse molde. Não há mais necessidade de horror corporal; são simplesmente ideias que infectam o hospedeiro e catalisam a transformação.

    "Seria fácil enxergar o círculo psicanalítico de Viena como o grupinho de 'Crash'", diz Cronenberg. "Ou seja, um grupo subversivo que tem uma visão da realidade que não é acessível à sociedade como um todo e que se une para explorar essa visão. Eu me interesso por pessoas que não aceitam a visão oficial da realidade, mas procuram descobrir o que está realmente acontecendo por baixo do capô."

    Depois de "Um Método Perigoso", Cronenberg seguiu diretamente para fazer outro filme, o que não é característico dele: uma adaptação de "Cosmopolis", de Don De Lillo, estrelado por Robert Pattison, de "Crepúsculo". A história inteira acontece dentro da limusine de um bilionário que percorre Nova York.

    Cronenberg parece tão surpreso quanto outras pessoas pelo fato de ter passado de um filme a outro em tão pouco tempo. "Geralmente tiro três a quatro anos entre filmes, mas, de repente, a ideia estava ali e eu quis fazer. Não dei as costas ao meu passado, mas, quando estou fazendo um filme novo, meus outros filmes se tornam irrelevantes. Os críticos pensam na característica que você tem, em sua sensibilidade. "Isso é 'cronenberguiano' ou não? Criativamente, porém, isso não me ajuda em nada. Ser um adjetivo é agradável, mas pode também ser uma armadilha."

    Tradução de CLARA ALLAIN.

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