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    Putin vai mesmo enfrentar o Pussy Riot?

    CAROLE CADWALLADR
    DO "OBSERVER"

    08/08/2012 14h00

    O coletivo feminista conquistou manchetes quando três de suas integrantes foram detidas depois de um protesto contra Putin. Agora, podem ser condenadas a até sete anos de prisão, uma perspectiva que indignou e radicalizou muitos russos. Na véspera de seu julgamento, elas falam com exclusividade ao "Observer".

    Passei dois dias muito longos e muito ocupados em Moscou conversando constantemente com as pessoas sobre o Pussy Riot. Sobre como três jovens integrantes da banda de punk feminista cantaram uma canção de protesto na catedral de Cristo Salvador, em Moscou.

    De como foram detidas, encarceradas, tiveram seus pedidos de fiança recusados e agora podem sofrer sentença de até sete anos de prisão. De como as ordens para tudo isso parecem ter vindo do topo do governo russo. E de como seu julgamento --que começou na segunda (30)-- parece destinado a se tornar um momento de definição na carreira política de Putin.

    E muita gente (praticamente todo mundo, na verdade) diz que o julgamento é o momento em o futuro da Rússia começa a ser decidido, de uma maneira por enquanto indeterminada.

    Às 21h da quinta-feira (26), participei de uma manifestação de cerca de 2.000 oposicionistas. A multidão gritava o nome do Pussy Riot, e eu achei que tinha conseguido compreender a história.

    É um relato espantoso de como três jovens causaram a maior dor de cabeça política que Putin já sofreu. Uma história de arte versus poder. De sociedade civil versus igreja e estado. Ou, como disse um documentarista que está registrando os acontecimentos, de "punk versus Putin". (Ele acrescenta que "estamos falando de 'Crime e Castigo', mas como há uma banda na prisão, temos também um pouco dos Monkees. Ou uma versão distorcida de um filme dos Beatles".)

    Eu imaginava que tinha chegado a conclusões claras sobre o caso, e três horas depois fui conduzida ao porão de um espaço industrial de arte e a história começou a se emaranhar. Tornou-se não só espantosa mas absurda. Mas lá estava o Pussy Riot: com suas balaclavas, vestidos coloridos e collants, sentadas de pernas cruzadas em um estúdio de ensaio minúsculo, quente e fortemente iluminado.

    Não são as três jovens que estão na cadeia: Nadezhda Tolokonnikova, 22; Maria Alekhina, 24; e Yekaterina Samutsevich, 29 --ou Nadia, Masha e Katya, como são conhecidas. Ninguém foi autorizado a visitá-las --nem os maridos, familiares e amigos. Mas o Pussy Riot não é formado apenas pelas três.

    É um coletivo de "mais de dez" mulheres, entre as quais duas outras que participaram do protesto na catedral e escaparam. E todas as integrantes fugiram depois das detenções. Estão vivendo na clandestinidade. Não surpreende, dado o perigo que correm. Passaram cinco meses escondidas, para saber se seriam ou não detidas. E esta é sua primeira entrevista à mídia ocidental.

    Ainda que eu não esteja diante das prisioneiras, isso não importa. É essa a intenção das balaclavas --elas querem ficar anônimas, indivisíveis, representativas. Não importa que integrantes do grupo foram presas. É esse o ponto --elas não são indivíduos, mas uma ideia. E é isso que capturou a atenção da Rússia e também do resto do mundo: que o governo russo tenha decidido deter uma ideia, e a esteja processando no tribunal com um grau de fúria vingativa ao qual o povo russo estava acostumado no passado. Uma ideia perpetrada por três mulheres jovens, de classe média e de bom nível de educação --as "devushki" ("garotas"), como os russos as chamam.

    E é esse o choque de entrar naquele estúdio. São tão jovens. Tão sorridentes. Estão tão nervosas, e sem jeito, e embaraçadas pela atenção; não sabem bem onde sentar, ou o que deveriam --e não deveriam-- dizer.

    MAIS DO QUE COOL

    O Pussy Riot não é apenas o movimento revolucionário mais cool que existe. É também o mais cortês. São filhas de que qualquer pai se orgulharia. Inteligentes, divertidas, sensíveis, e não têm medo de defender aquilo que acreditam. Uma delas faz questão de me dizer que a "gentileza" é parte importante de sua ideologia. E fizeram mais para expor a falência moral do regime de Putin do que provavelmente qualquer outro grupo.

    Nenhum político, jornalista, líder oposicionista ou personalidade pública criou tanto ruído. E tampouco deflagrou debates potencialmente tão significativos. O mais impressionante de tudo, talvez, seja o fato de que tudo que elas realizaram foi feito via arte.

    Qual é a sensação? "A posição que ocupamos é única, mas também assusta porque é uma grande responsabilidade. Não estamos trabalhando apenas por nós, mas pela sociedade", diz a Pussy Riot conhecida como "Esquilo".

    O trabalho do grupo envolve essencialmente arte e rock. A arma que escolheram para enfrentar o imenso poderio do Estado russo? Talvez sejam as roupas coloridas que vestem, ou a maneira pela qual saltavam no palco, suas letras irreverentes, o volume alto de seus instrumentos. O nome do grupo --brilhante, engraçado, arrasador.

    As roupas têm cara de desenho animado, com cores primárias, fortes, mas as máscaras não servem apenas para que não sejam reconhecidas. O anonimato é tanto simbólico quanto parte essencial de sua visão artística. Todas têm apelidos, que dizem trocar aleatoriamente. "Andorinha", 22; "Balaclava", 33, a mais velha do grupo por margem considerável; e Esquilo, 20.

    "Isso quer dizer que todo mundo pode ser o Pussy Riot... só estamos mostrando o que as pessoas podem fazer", diz Andorinha.

    "Mostramos o lado brutal e cruel do governo", diz Esquilo. "Não fazemos coisa alguma de ilegal. Cantar e dizer o que você pensa nada tem de ilegal."

    Andorinha é muito tímida, e começa a conversa hesitante. Está preocupada que seu inglês não seja bom o bastante e não permita que se expresse corretamente --e em seguida explica o que sente ao colocar a balaclava.

    "Quando estou mascarada, me sinto um pouco super-heroína, e talvez mais poderosa. Sinto mais coragem. Acredito que sou capaz de qualquer coisa, e que posso mudar a situação."

    Balaclava interrompe: "Discordo. Não somos supermulheres --somos mulheres bastante comuns e nosso objetivo é que todas as mulheres da Rússia possam ser como nós mas sem as máscaras".

    A bateria da filmadora acaba. E enquanto Khristina Narizhnaya, a jornalista moscovita que está gravando a entrevista em vídeo, troca a bateria, elas desabam dramaticamente ao chão, rindo e suspirando pesadamente, mostrando alívio. "É tão estranho", diz Andorinha. "Ver o Pussy Riot nos jornais, na TV, na Internet. Ter amigos que perguntam se assistimos à última ação. E você tem de responder que sim, que viu na TV".

    Os pais delas sabem?

    "Não!", exclama Esquilo. "Meu pai me mataria!"

    Os detalhes são brilhantes. Alguém telefona quando vocês saíram para fazer compras, e vocês voltam correndo para casa para colocar a balaclava? "Não", diz Andorinha. "Somos como o Batman: sempre as levamos conosco, em caso de necessidade."

    Pouco antes de minha conversa com o Pussy Riot, eu estava ouvindo uma entrevista que fiz com Ilya Oskolkov-Tsentsiper, cofundador do Instituto Strelka de Mídia, Arquitetura e Design, um homem culto e sofisticado que trabalhou com Rem Koolhas no desenvolvimento de um programa de treinamento de jovens para que mudem o panorama físico e social da cidade, e cuja conversação vem carregada de referências à história russa.

    Vivemos um momento de ansiedade, ele diz. "Não consigo pensar em ninguém mais. Penso no assunto o tempo todo, literalmente. É interessante que em um país tão repleto de coisas horríveis --más, e injustas e desiguais-- o simbolismo do que elas fazem se destaque tanto."

    "Elas são tão jovens, têm filhos, as coisas que fazem são triviais e tolas e de repente se tornam tão significativas devido à reação desproporcional que causam. Elas tocam em tantas coisas, estranhamente, e com isso o que fazem se torna um evento de proporções quase históricas. Tudo está envolvido: a igreja e o Estado, os religiosos e os laicos, o juiz e o czar, e essa coisa russa que nunca acaba."

    AÇÃO

    Há tanta história em Moscou. As ruas levam os nomes de escritores, as estações de metrô, os de revolucionários. Há uma estátua em cada esquina, praticamente. Mais cedo, eu havia me encontrado com Pyotr Verzilov, o marido de Nadia, diante de uma estátua de Engels, perto da estação de metrô que leva o nome do anarquista Kropotkin.

    Natalia Kolesnikova - 20.jul.12/France Presse
    Da esq. para dir.: Yekaterina Samutsevich Nadezhda Tolokonnikova e Maria Alyokhina em tribunal de Moscou
    Da esq. para dir.: Yekaterina Samutsevich Nadezhda Tolokonnikova e Maria Alyokhina em tribunal de Moscou

    Um dia antes, meu encontro com o mais influente crítico de arte aconteceu diante de um Pushkin de bronze. Conversando na entrada da estação de metrô de Kurskaya, a caminho do meu encontro com o grupo, olhei para cima e vi o antigo nome da estação ainda inscrito no teto: "Estação Metropolitana VI Lênin". É uma cidade de fantasmas e ecos, onde o corpo mumificado de um revolucionário jaz em uma casamata sem janelas ao lado de um palácio rococó construído pelos czares que ele planejava derrubar. E que agora é a residência de um homem que um dia trabalhou para o KGB.

    Os líderes russos sempre compreenderam a força das imagens de poder. Das foices e martelos. Das ogivas nucleares e dos homens musculosos envolvidos em másculas atividades ao ar livre, de peito nu. E, no mais recente exemplo: a de cinco jovens em balaclavas coloridas pulando sem parar no coração simbólico do Estado russo, a Praça Vermelha.

    Foi essa "ação", em janeiro --a quarta das cinco que o grupo realizou até agora-- que primeiro atraiu a atenção mundial. O grupo foi formado pouco depois que Dmitri Medvedev anunciou que Vladimir Putin retornaria como presidente em novembro. E as pessoas perceberam que, para todos os efeitos, a Rússia estava se transformando em uma ditadura.

    Miriam Elder, correspondente do "Guardian" em Moscou, que vem cobrindo o caso assiduamente, se reuniu com algumas das integrantes pouco depois, e foi uma das poucas jornalistas a entrevistá-las. "Elas pareciam muito determinadas. Muito decididas. Todo mundo estava zangado, naquele momento. Mas o que transparecia era sua educação. Suas ideias ponderadas. Elas citaram todo mundo, de Simone de Beauvoir aos Ramones. Não era só uma brincadeira. Havia uma mensagem real por trás daquilo".

    O show na Praça Vermelha, que aconteceu em meio a imensas manifestações públicas que abalaram Moscou no começo do ano, antes das eleições, foi brilhante, visualmente notável, absurdamente provocante. E envolvia imensos riscos pessoais. Esse risco só cresceu depois que elas tocaram na catedral.

    A apresentação resultou na detenção de três mulheres, que podem ser condenadas a até sete anos de prisão. Duas delas --Nadia e Masha-- têm filhos pequenos que talvez não os vejam crescer.

    Perguntei a Elder se as integrantes do grupo faziam ideia dos problemas que poderiam encontrar.

    "Não, acho que não", ela respondeu. "Ainda que algumas das coisas que disseram me incomodassem, nesse sentido. Uma das minhas últimas perguntas foi sobre elas terem medo de uma possível detenção. Naquele período, centenas de pessoas estavam sendo detidas. E uma delas respondeu que as autoridades eram mais gentis com as mulheres e era sempre possível conhecer gente bacana no camburão".

    "Em retrospecto, parece claro que algo aconteceria a elas". Peço que Elder esclareça. "Não era só uma performance. As coisas foram levadas a outro nível", ela disse.

    E é esse outro nível que assusta, que assustou tanta gente na Rússia. "O julgamento de [Mikhail] Khodorkovsky [o ex-magnata do petróleo, que está preso] demonstrou que Putin estava disposto a atacar os oligarcas", diz Verzilov. "Isso foi uma mensagem muito clara aos oligarcas. E o que o julgamento do Pussy Riot está demonstrando é que eles estão dispostos a perseguir todo mundo. Ninguém está seguro".

    Verzilov se tornou, na prática, o porta-voz do grupo, uma posição razoavelmente difícil porque elas decidiram não designar cargos e porque o cerne de seu trabalho é uma mensagem fortemente feminista (e quase desconhecida na Rússia). Ele também desempenha papel chave na criação dos eventos, e me contou sobre a manhã em que ele e sua mulher, Nadia, foram detidos. "Homens armados, de terno, vieram correndo e gritando em nossa direção. Havia 25 ou 30 deles, e disseram que eram do FSB [a polícia secreta russa]; fomos derrubados no chão".

    "Eles estavam usando ternos caros. Policiais em geral não são sofisticados assim. E depois nos carregaram para um esportivo utilitário que parecia bem caro, e nele nos conduziram a uma delegacia de polícia, onde fomos separados. Oito investigadores chegaram, e ficamos esperando durante horas. Depois, fui interrogado das 3h às 8h."

    Pyotr --ou Peter, como ele se apresenta a estrangeiros-- foi libertado. Nadia, não. Muita gente sugere que isso se deve ao fato de que Verzilov tem dupla nacionalidade, russa e canadense (ele fez o segundo grau em um colégio do Canadá), e detê-lo criaria um problema internacional que o governo russo prefere não enfrentar.

    "Mas não creio que seja isso", diz. "É mais uma questão de determinar onde parar. Se julgarem as outras meninas, se me julgarem, quantas pessoais mais teriam de julgar? O operador de câmera que estava lá? O jornalista da [agência de notícias] France Presse? Como decidir onde parar? Quando você começa a deter pessoas inocentes --e a polícia esteve na igreja depois que elas cantaram e determinou que não havia acontecido crime, como saber qual o limite? Será que todo mundo deveria ir para a cadeia?"

    "O DIABO RIU DE NÓS"

    O crime em questão aconteceu em 21 de fevereiro e durou exatos 51 segundos. As cinco mulheres e uma equipe de filmagem, acompanhadas por diversos simpatizantes e um par de jornalistas, entraram na catedral ortodoxa do Cristo Salvador, saltaram por sobre uma grade dourada, se posicionaram nos degraus do púlpito (um espaço que só homens podem ocupar) e tocaram os primeiros compassos de uma canção punk.

    A cena pode ser vista no YouTube. A canção começa como hino religioso e depois se torna parecida com o Sex Pistols. As mulheres se ajoelham, fazem o sinal da cruz, pulam freneticamente e, depois de alguns segundos, são retiradas do local por seguranças.

    Meninas do Pussy Riot em catedral moscovita

    Não é difícil ver por que os religiosos podem ter se ofendido. Há uma freira idosa e visivelmente chocada que o vídeo mostra, e mesmo que você não seja religioso a falta de respeito para com um local de culto é mesmo assim chocante.

    Depois que foram expulsas pelos seguranças da catedral, "a polícia veio e nem mesmo iniciou uma investigação", diz Verzilov. "Foi só depois que o vídeo foi divulgado no YouTube sob o título de 'Virgem Maria, nos Livre de Putin', que as autoridades decidiram que ele constituía alguma forma de crime. Parece que o patriarca Cirilo o assistiu e ligou para Putin e para o chefe da polícia de Moscou, pelo que os investigadores nos disseram."

    Na imprensa, o patriarca Cirilo, o líder da Igreja Ortodoxa russa, classificou o episódio como "blasfemo", afirmando que a igreja estava sob ataque e que "o diabo riu de nós".

    Vsevolod Chaplin, o porta-voz da Igreja Ortodoxa, disse que "Deus condena o que elas fizeram. Estou convencido de que esse pecado será punido nesta vida e na próxima. Deus assim revelou para mim, como revelou os evangelhos à igreja. A única escapatória é o arrependimento".

    Foi emitido um mandado de prisão por "arruaça", e duas semanas mais tarde as três mulheres e Verzilov foram detidos. O caso nada tem de comum. Nikolai Polozov, um dos advogados do grupo, diz que as regras processuais foram gritantemente desrespeitadas: encarceramento sem julgamento; recusa de fiança; falta de tempo para que a defesa preparasse seu caso.

    A Anistia Internacional as declarou prisioneiras de consciência. E Polozov diz que "diversos eventos importantes apontam para um envolvimento do Kremlin", entre os quais a forte cobertura do incidente pelos canais federais de TV, concebida para "arruinar a reputação dos meus clientes. Só uma pessoa, ou alguém próximo a ele, tem poder para isso".

    Em outra medida extrema, o julgamento está sendo transmitido ao vivo pela internet. É uma decisão que visa a criar uma impressão de transparência, diz Polozov, mas que na prática tem o efeito o oposto, permitindo que as autoridades excluam a imprensa da pequena câmara de julgamento e, em momentos contenciosos, "simplesmente afirmem que a rede caiu".

    O que não está em disputa é o fato de que o Pussy Riot causou ofensa. E era exatamente esse o objetivo. "A igreja do Cristo Salvador foi escolhida por razões simbólicas muito específicas", diz Verzilov. "Ela foi implodida por Stálin que queria demonstrar à igreja quão grande era o seu poder, e em 1960 o espaço foi transformado em uma piscina pública."

    E então veio o colapso da União Soviética. "O primeiro prefeito pós-soviético de Moscou, Yury Luzhkov, decidiu reconstruir a capital. Naquele momento, o começo dos anos 90, o empreendimento comercial de maior sucesso no país era o crime organizado, e ele disse que precisava de US$ 1 bilhão e quem não pagasse iria para a cadeia", diz Verzilov.

    "A igreja se tornou um símbolo muito importante para o governo, e é supostamente o lugar mais sagrado da Rússia. Mas é um espaço muito comercializado. O subsolo abriga um imenso estacionamento, e também salões de festas que podem ser alugados por US$ 10 mil ao dia", acrescenta.

    "Mais que isso, porém, a igreja começou a agir como se fosse o departamento de propaganda do governo. Antes da eleição, o patriarca Cirilo declarou que manifestações eram 'anticristãs', e em seguida que Putin havia sido colocado na chefia do governo por Deus. Ninguém falava disso antes. Agora, todo mundo fala".

    Todos falam sobre isso. Andrei Yerofeyev, um dos mais respeitados curadores russos de arte moderna, que em 2010 foi julgado (e condenado) por incitação ao ódio religioso e étnico pela realização de uma exposição chamada "Arte Proibida", compara a situação russa à do Irã ou à da Arábia Saudita.

    Ele, e muitos outros, veem a situação como o início de um fundamentalismo cristão. "Eles desejam controlar a cultura. Querem controlar tudo. As pessoas têm grande respeito pela igreja, que combateu os comunistas. Os sacerdotes foram perseguidos. Mas esse julgamento serve para mostrar que a igreja é intocável".

    Outros definem a questão como o caso Dreyfus russo. A propaganda contrária ao Pussy Riot nos principais canais estatais de TV (ou seja, todos eles) não para. A opinião expressa por um dos promotores envolvidos no caso ilustra precisamente a maneira pela qual as acusadas vêm sendo retratadas. Ele afirmou que as mulheres estavam sob o controle do "governo mundial", o qual, por sua vez, está sob o controle "de Satanás".

    Mas a maré está virando. É a severidade da pena que causou choque a muitos russos, mesmo os religiosos e conservadores que veem o ato como tolo ou ofensivo. Pouquíssimos réus são encarcerados antes do julgamento, e certamente nenhum que não tenha sido acusado de crimes violentos e tenha filhos pequenos. Mais de 200 pessoas conhecidas assinaram uma carta aberta condenando o julgamento, entre as quais muitos partidários de Putin, e 41 mil russos comuns acrescentaram suas assinaturas à carta.

    Quando fui conhecer a catedral e seus arredores e conversei com algumas mulheres de meia-idade que tinham os cabelos protegidos por lenço e estavam saindo da catedral depois de orar, todas consideraram que a ação havia sido lastimável, desrespeitosa, inapropriada e merecedora de punição, mas mesmo a mais rigorosa delas, que acredita que as acusadas merecem punição por seus outros "crimes" (suas performances anteriores), fez uma careta e meneou a cabeça quando falei sobre a possível sentença de sete anos. E bastou o pouco russo que conheço para que eu entendesse a resposta: "Trudna", ela repete. "Ne znayo". (É difícil. Eu não sei.)

    Algumas horas antes do meu encontro com o Pussy Riot, vi um pequeno exemplo do aparato estatal de repressão russo. Os furgões e veículos blindados da polícia estacionados nas ruas em torno da área da manifestação. As falanges de policiais marchando em uma praça vizinha.

    Horas antes, eu havia marcado encontro com Verzilov em um café. Ele não apareceu. Enviei uma mensagem de texto. Liguei. Ele usa dois celulares e passa o tempo todo atendendo a telefonemas de estações de TV, jornalistas e ativistas. Um dia antes, ele me disse que "estamos tentando convencer Sting a usar uma camiseta do Pussy Riot em seu show de hoje". (Sting não usou a camiseta mas pediu a libertação da banda.) O Franz Ferdinand e o Red Hot Chili Peppers já expressaram seu apoio.

    E o grupo estava tentando contatar Madonna, que vai tocar em Moscou este mês. [De fato conseguiram. Madonna demonstrou apoio ao Pussy Riot e disse ser "contra a censura. Por isso, espero que o juiz seja leniente com elas".]

    Verzilov está envolvido em todos os aspectos de uma campanha política moderna: monitorando mensagens no Twitter, usando a rede social para divulgar notícias, atualizando o site da causa no Facebook. Imagino que algo deva ter acontecido. Antes de partir para Moscou, conversei durante horas com dois documentaristas britânicos que estavam filmando o julgamento e um me aconselhou a estar preparada para "longas esperas. Eles estão sob imensa pressão".

    SIMONE DE BEAUVOIR RUSSA

    E também me disse que Verzilov "vai te impressionar. É fenomenal que ele só tenha 25 anos. É uma história incrível. Muito rock'n'roll. Muito punk. O que elas fizeram foi tão chocante quanto qualquer coisa que o Sex Pistols tenha feito. Talvez ainda mais porque foi contra a ditadura. Punks contra Putin".

    "E o visual é incrível: as mulheres ficam em uma jaula no meio do tribunal. São todas bem atraentes, mas Nadia parece estar em um anúncio de perfume. São todas lindas, mas você precisava ver Nadia chegando ao tribunal algemada. Uma visão incrível. Ela é como Simone de Beauvoir. Estou romantizando um pouco, mas ela é Simone de Beauvoir. E Peter é o Sartre russo", ele disse.

    E de fato existe motivo para que Verzilov tenha faltado ao nosso encontro. Uma hora mais tarde recebo uma mensagem de texto. "Carole! Fui subitamente levado ao comitê de investigação, hoje às 8h30, por agentes, e eles confiscaram meu celular e meus objetos pessoais."

    Quando enfim nos encontramos, ele minimiza o acontecido, mas come como um boi quando o levo a um café. Digo que ele parece cansado. "Bem, você sabe como é... Quatro horas de interrogatório". Pergunto sobre as questões que ele teve de responder. "Você sabe. Queriam saber sobre meus encontros com agentes estrangeiros". Pergunto se o governo russo realmente acredita nisso. "Eles tentam com afinco fazer com que o público russo acredite", ele diz.

    Verzilov quer saber o que todos estão me dizendo. Pergunta o que disse Ekaterina Degot, possivelmente a mais influente crítica de arte russa. "Ela disse que o que vocês estão fazendo é incrível. Que vai mudar a história russa. Que o que vocês estão fazendo sem dúvida é arte e nenhum artista russo causou tamanha mudança", respondo.

    E Artemy Troitsky, o mais famoso crítico russo de rock? "Que as três garotas podem ser aquilo que vai quebrar a espinha do tirano". Ele parece contente. É bom lembrar que o Pussy Riot é formado por músicos e artistas, alguns dos quais membros do Voina, o mais ousado dos grupos russos de arte performática, cujos trabalhos incluem pintar um pênis imenso em uma ponte diante da sede do FSB em São Petersburgo ("FSB captura Pinto"), e realizar uma orgia em um museu na noite anterior à eleição de Medvedev em 2008 ("Foda para o Filhotinho de Urso Herdeiro").

    As ações do Voina atraíram a atenção de Banksy e outros; o artista britânico doou 80 mil libras ao grupo para ajudá-los a se sustentar quando dois de seus membros foram aprisionados. Mas acima de tudo, eles são ativistas.

    "Como Peter está?", Ekaterina Degot me perguntou. Preocupado com Nadia, respondi, e com Gera, 4, a filha do casal. Mas não insatisfeito com a situação. "Compreendo bem. Eles pensam como ativistas. Quanto mais atenção receberem, melhor, mais efetivos estão sendo".

    Degot fez parte do júri que concedeu ao Voina o maior prêmio de arte russa. E Katya, uma das prisioneiras, foi sua aluna. Pergunto o que ela acha que vai acontecer. "Não sei. Mas não pode continuar. Putin não pode continuar. Estou certa de que em um ano veremos um país diferente, mas não sei se um país melhor".

    Mas são as palavras de Oskolkov-Tsentsiper, cofundador do Strelka, que ficam em minha memória. Na história russa, ele disse, há uma longa tradição de santos alucinados. "A ideia é que apenas o tolo, o louco, o insensato, é capaz de dizer a verdade ao país e ao poder. Isso é algo que todos os russos sabem, ainda que não estejam conscientes do fato. Na Rússia, ninguém diz 'catedral de São Basílio', mas sim de Vasily Blazhenny, Vassily, o louco. E é isso que essas garotas são: as vozes da verdade da nação russa".

    Estamos no Strelka quando ele me diz isso, um espaço bonito que fica diante da catedral do Cristo Salvador, a cena do crime. "Lembro de que nadava naquela piscina, quando criança. Minha sensação é de que em mais 70 anos a piscina estará de volta. E viveremos esse ciclo infinito de destruir igrejas e recriá-las".

    FALÊNCIA MORAL

    O que o Pussy Riot fez é extraordinário. A forma pela qual levaram o feminismo a um dos países mais machistas do planeta. Como revelaram as fissuras no coração do Estado russo, a falência moral do regime de Putin.

    É difícil conciliar essa avaliação com as moças que conheci, com seus ombros estreitos, pulsos finos e falta de qualquer armamento exceto humor e coragem. A palavra "absurdo" foi usada até perder o sentido, mas não existe outro termo para descrever o que está acontecendo na Rússia hoje.

    "Putin tem medo de nós, você consegue imaginar?", diz Esquilo. "Com medo de garotas".

    "Foi só uma oração", diz Andorinha. "Uma oração muito especial".

    "O mais importante ditador, Putin, tem muito medo do povo", diz Esquilo. "Tem medo do Pussy Riot, especificamente. Medo de um grupo de mulheres jovens, positivas e otimistas que não temem dizer o que pensam".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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