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    Não queremos a volta das burcas, dizem mulheres afegãs

    TRACY MCVEIGH
    DO "OBSERVER"

    21/01/2013 15h00

    O dia ainda não nasceu em Cabul. Em cada rua escura, uma fileira curta de grandes lâmpadas se acendem, vermelhas, verdes e brancas, identificando as padarias onde o pão dourado, que acaba de sair do forno, é entregue pelas janelas frontais recém-abertas a meninos sonolentos em túnicas brancas e homens protegidos contra o frio por cobertores posicionados sobre os ombros, que param para comprar o almoço antes de irem para o trabalho.

    "Esse é pão para homens", diz o jovem padeiro Hamil Fareed. O pão das mulheres é diferente, ele explica, feito com massa preparada em casa pelas mães e cozida em fornos de barro nos becos da cidade, e depois servido às famílias.

    A segregação do pão de cada dia em Cabul não é uma tradição cultural; ela surgiu durante o governo do Taleban, nos anos 90. Diante de uma cidade faminta, habitada por viúvas de guerra proibidas de trabalhar fora, estudar ou sair de casa, alguém criou uma fornalha comunitária na qual as mulheres podiam fazer pão para seus filhos e ganhar algumas moedas vendendo as sobras.

    A ONU, que não era capaz de conter a cruel guerra que assolava o país, encorajava esse tipo de programa e, quando os soldados do Taleban que percorriam as ruas deram indicações de que tolerariam as figuras vestidas em burcas que iam às padarias clandestinas para preparar pão, passou a descrever a situação como "um passo adiante" nos direitos da mulher.

    A comunidade internacional afirmou que a queda do Taleban, em 2001, criaria uma nova era de direitos mais amplos. As mulheres e meninas afegãs voltariam às escolas e ao trabalho e seriam libertadas das infames e ferozes restrições que sofriam em suas vidas.

    Essa foi uma das justificativas políticas mais importantes usadas pelos norte-americanos e britânicos para justificar sua presença militar no país. Naquele ano, o secretário de Estado norte-americano Colin Powell declarou que a restauração dos direitos humanos das mulheres era uma demanda "inegociável".

    O então primeiro-ministro britânico Tony Blair prometeu que "o conflito não será o fim. Não nos retiraremos, como o mundo externo fez tantas vezes no passado". Agora, com a retirada das forças internacionais de ocupação e a parada de agências assistenciais, consultores e empreiteiros que acompanha sua presença, marcada para 2014, há indicações claras de que as mulheres afegãs não viram muitas das mudanças prometidas, e que continuam aterrorizadas quanto ao futuro.

    O mundo externo vem usando o Afeganistão como peão em seu "grande jogo" geopolítico desde o século 19, e o país se viu aprisionado em um labirinto de interesses estratégicos e econômicos. Desde 2001, o Afeganistão recebeu cerca de US$ 60 bilhões em assistência.

    Houve melhoras tangíveis na educação, mortalidade materna, emprego e na representação feminina no governo. Mas existem sinais de que esses ganhos são frágeis demais para sobreviver à partida das forças e organizações internacionais.

    Kamal Kishore - 13.jul.10/Reuters
    Mulheres afegãs aguardam, com seus filhos no colo, transporte em ponto de ônibus de Cabul
    Mulheres afegãs aguardam, com seus filhos no colo, transporte em ponto de ônibus de Cabul

    Uma pesquisa conduzida em 2012 com mulheres afegãs, pela organização assistencial ActionAid, constatou que 9 entre 10 mulheres temiam a partida das forças internacionais, acreditando que isso causaria significativa deterioração em sua vida. E a violência contra as mulheres jamais esteve tão alta: 87% delas reportam sofrer abusos domésticos.

    O retorno de 2,2 milhões de meninas às escolas, depois de 2011, era visto como o grande triunfo da comunidade internacional, mas nos últimos anos vem acontecendo fechamentos de escolas, especialmente nas regiões onde as forças internacionais já se retiraram como parte do processo gradual de saída.

    Há informações sobre alunas envenenadas e agredidas, dirigentes de escolas femininas assassinados e salas de aula atacadas com coquetéis Molotov. A maioria das meninas estuda só até a quinta série, e 90% das meninas afegãs de 15 anos de idade são analfabetas. Há meninas que, embora matriculadas na escola, não frequentam as aulas.

    As forças britânicas e de outros países construíram dezenas de escolas rurais, que o governo afegão não terá dinheiro para manter em funcionamento depois de 2014, e o mesmo vale para as clínicas de saúde. Dos 5,8 milhões de afegãos que não têm acesso a serviços de saúde, 4,4 milhões são mulheres.

    RETÓRICA E REALIDADE

    Há a retórica. E há a realidade. No ano passado, o comitê internacional de desenvolvimento britânico não encontrou "provas consistentes" que comprovassem as alegações do governo britânico quanto ao seu compromisso de promover os direitos da mulher no Afeganistão.

    Entre os projetos que recebem os 178 milhões de libras em assistência anual concedidos pelo Reino Unido ao Afeganistão, apenas dois são destinados a beneficiar as mulheres.

    Uma lei de eliminação da violência contra a mulher foi aprovada em 2009 no Afeganistão, mas os tribunais em geral a ignoram, os líderes religiosos a definem como contrária ao islamismo e em 2012 o governo do presidente Hamid Karzai, que conta com o apoio dos Estados Unidos, solapou sua fundação ao sustentar o direito do marido a bater na mulher.

    Metade da população carcerária feminina foi condenada por "crimes morais" --entre os quais fugir de maridos, pais ou parentes violentos. A lei nacional é universalmente ignorada pelos tribunais locais, que respondem pelo julgamento de 90% das disputas criminais e civis, e nos quais meninas são usadas como instrumento de pagamento em processos familiares e um homem que assassina a mulher pode escapar com apenas o pagamento de uma multa.

    Estima-se que o governo afegão tenha investido US$ 15 milhões no apoio ao sistema de "justiça informal" no ano passado, o que ajuda a firmar a mentalidade repressiva. Em abril de 2011, o governo tentou reimplementar as leis de moralidade pública.

    Surgiram regulamentos para garantir que as noivas se vestissem pudicamente no casamento, para proibir música em cerimônias de casamento e impedir o contato entre os convidados e as convidadas. Lojas que vendam roupas inapropriadas para uso em casamentos serão punidas.

    Isso causou consternação entre os proprietários dos imensos e cafonas bufês de casamento em Cabul. Mas os ricos do Afeganistão não devem ficar no país por muito mais tempo. Na capital, a poeira das construções ainda toma o ar, e homens continuam a trabalhar nos terrenos baldios que ladeiam as ruas irregulares e marcadas por tiros, mas as obras estão se desacelerando.

    Há casas grandes abandonadas antes que as obras estejam concluídas, e canteiros de obras desertos. O boom chegou ao fim, o êxodo começou, e os preços dos imóveis estão caindo, com a partida das agências assistenciais e dos afegãos mais ricos.

    Fora de Cabul, na província de Balkh, onde o Taleban vem ganhando força, sinais da influência do movimento islâmico são visíveis em toda parte. Poucas mulheres saem às ruas sem burca na cidade de Mazar-i-Sharif; no ano passado, o conselho religioso da Mesquita Azul da cidade, um dos poucos lugares em que as mulheres podiam conviver socialmente em público, proibiu a presença delas em suas reuniões semanais.

    As mulheres com quem conversei no Afeganistão tinham medo terrível do futuro, e a precariedade de suas vidas, ainda expostas a ataques por bombas e foguetes, é exaustiva. Em 2014, haverá eleições que levarão ao poder uma poderosa rede de líderes conservadores, todos homens.

    O Taleban e os líderes de milícias estão se posicionando para ocupar a lacuna que será deixada pela partida das instituições internacionais. E os pequenos fornos de barro continuam a preparar o pão dos homens e o pão das mulheres, enquanto o país espera pelo retorno do passado.

    FAWZIA KOOFI, A LEGISLADORA

    Fawzia Koofi, 36, é mãe de duas adolescentes e representa a província de Badakhstan no Legislativo há sete anos; ela recentemente anunciou sua intenção de disputar a Presidência em 2014. O marido de Koofi morreu em uma prisão do Taleban. O pai dela foi morto por rebeldes durante a guerra civil.

    Sétima filha de sua família, quando nasceu ela foi deixada ao sol para que morresse, mas seus pais mudaram de ideia.

    Kevin Lamarque - 20.out.2011/Reuters
    Hillary Clinton encontra Fowzia Koofi(a terceira da esq. para a dir.) em evento na embaixada dos EUA em Cabul
    Hillary Clinton encontra Fowzia Koofi(a terceira da esq. para a dir.) em evento na embaixada dos EUA em Cabul

    Se não fosse pelo Taleban, Koofi seria médica agora. "Eu estava estudando medicina quando o Taleban chegou, em 1996. Foi meu último dia como aluna. De repente fui relegada à minha casa. Você vê tudo pela janela, mas não pode sentir o sabor, tocar. A sensação era de que eu tinha morrido".

    Hoje ela teme pela segurança das mulheres cuja imagem é conhecida do público. "Quando a oportunidade surgiu, em 2001, muitas de nós começamos a pensar em realizar grandes coisas, contribuir. Criamos programas de saúde e educação. Fomos informadas de que a comunidade internacional nos apoiava --era como a se vida houvesse recomeçado depois de termos passado tanto tempo soterradas".

    "Mas a realidade era diferente das promessas. Os governos dos Estados Unidos e do Afeganistão fazem promessas vazias. Projetos de benefício às mulheres são criados, mas não temos acesso a verbas", afirma.

    "Algumas pessoas neste país vieram a compreender que interromper a educação das meninas paralisa o progresso de uma família. Minha esperança é que não precisemos recomeçar do zero. Mas também sei que sofreremos, que as principais vítimas dos jogos políticos serão as mulheres e crianças", diz.

    Koofi acredita que as mulheres do Afeganistão se tornaram "mais fortes", e acrescenta que "elas sabem como usar redes sociais, e se uma mulher for espancada nas ruas espero que alguém tenha um celular com câmera para que o mundo saiba". Mas para as mulheres ativistas, "o dia a dia se torna mais difícil. Quantas mulheres se fazem ouvir? Posso contar o total nos dedos. Há 18 comissões em nosso Legislativo, e eu sou a única mulher a presidir uma delas".

    "Quando falamos sobre direitos, sobre os tabus que enfrentamos, eles solapam nossa ação. Usam todas as técnicas que conhecem, fazem críticas --comentar sobre suas roupas, sua aparência, o jeito que você fala, tudo que puderem fazer para nos colocar para baixo", diz.

    QUMAR FRAHMAND, A MÉDICA

    A dra. Qumar Frahmand, 40, é diretora de uma movimentada clínica para mulheres e crianças na província de Balkh. Ela atende a entre 35 e 40 pacientes por dia. "A situação vinha melhorando o tempo todo por conta da presença das ONGs internacionais e do acesso a planejamento familiar; a vacinação das crianças melhorou. Mas ainda temos um grande problema de subnutrição causado pela pobreza e ignorância".

    "Nos últimos 10 anos, as mulheres começaram a sair de suas casas e perceber que ter menos filhos poderia significar uma vida melhor. Antes, se uma mulher não tivesse um menino, continuava a ter bebês até conseguir um".

    "Agora, será que as coisas voltarão ao que eram? Existe tanta incerteza, insegurança e desemprego crescente, e o que mais vejo é a ascensão da violência doméstica. Na semana passada, uma mulher que estava grávida de cinco meses chegou à clínica depois de sofrer sério espancamento, e o feto morreu. Ela voltou ao marido porque não tinha outra oportunidade", diz.

    "Estamos preocupados --de onde vamos obter verbas para a clínica quando as tropas partirem? Não consigo nem imaginar o que vai acontecer se as portas da clínica se fecharem. É terrível demais para pensar na hipótese. A situação de segurança é pior para as mulheres nas regiões rurais, e se elas não puderem vir até aqui... Fico aterrorizada em pensar sobre como serão suas vidas".

    ZARGHONA WALIZADA, A EMPRESÁRIA

    Uma grande escrivaninha cria uma separação entre Zarghona Walizada e seus visitantes. Embaixo de sua cadeira, há duas grandes pedras, sua segunda linha de defesa. "Eu as tenho sempre à mão", diz. O escritório dela em um subúrbio de Cabul --Walizada dirige uma transportadora-- já não é um lugar seguro.

    "Eles vieram em carros com janelas escuras", conta. "Minha assistente tentou trancar as portas, mas homens armados, com os rostos ocultos por lenços, subiram as escadas e derrubaram a porta. Fiquei sentada à minha mesa e mantive a calma. Ofereci chá, mas tinha as pedras à mão".

    "Eles me ameaçaram, queriam saber por que eu não estava em casa. Discutimos por muito tempo. Eles diziam que não era certo uma mulher dirigir uma empresa. Achei que fossem atirar em mim, mas por fim foram embora. Sei que voltarão, porém", diz.

    Na parede há um recorte de jornal, uma reportagem sobre um discurso de um dirigente da ONU que menciona Walizada como exemplo dos avanços das mulheres no Afeganistão. Mas ela não representa a regra, e sim a exceção. "As mulheres são encorajadas pelos Estados Unidos, a ONU e o Reino Unido a fazer artesanato, não a abrir negócios. O exército dos Estados Unidos tem contratos a oferecer, mas os concede apenas a políticos corruptos".

    Viúva, ela confia apenas em "meu motorista, meu irmão e minha irmã. E é só. Não posso me preocupar com o que as pessoas dizem. No Afeganistão, duas pessoas me aceitam e 20 não. As pessoas falam mal de mim. Até os meninos pequenos fazem ameaças e jogam pedras".

    Ela teme que a retirada das tropas em 2014 seja o fim da empresa que construiu. Os motoristas dos seus caminhões enfrentam cada vez mais ameaças de bandidos, e três deles foram assassinados nos três últimos anos. Os preços dos combustíveis estão em alta, e as empresas que têm contratos com a ONU e os Estados Unidos os perderão no final da retirada e tentarão disputar contratos de transporte de menor porte, como os que a companhia de Walizada cumpre. "Mas meu filho está estudando em Paris, e pelo menos isso eu consegui [educar o filho]".

    MARYAM FARID, A ESTUDANTE DE MEDICINA

    Maryam Farid, 20, estudante de medicina, perdeu a voz depois de ser vítima de um atentado a bomba quando tinha seis anos de idade, e ainda fala com dificuldade. O pai dela, professor universitário, é um liberal que permitiu que as sete filhas fossem educadas --a mãe operava uma escola clandestina para meninas durante o domínio do Taleban--, mas ele escolheu sua futura especialização, ginecologia, para que a filha só trabalhe com mulheres.

    "Se é o que eu quero fazer?", Farid questiona. "Talvez não. Mas não há escolha, e aceitei o fato". Ela estuda com afinco, e parece cansada. Divide um laptop com as irmãs, mas o acesso à Internet é proibitivamente dispendioso para a maioria dos jovens afegãos, e o computador é usado principalmente para executar CDs educativos.

    "Os meninos da minha idade são os piores --acham que mulheres não deveriam estudar", ela diz. "Dizem que é inútil, porque depois de 2014 teremos de voltar para casa. Dizem que é contra o Islã. Eu sei que não é. Amo o Islã. Tenho orgulho de minha religião".

    "Todas as meninas se preocupam --pensamos sobre isso o tempo todo, que depois de 2014 as mulheres não poderão mais estudar e as mulheres que trabalharam para ajudar as demais mulheres na sociedade serão mortas", diz.

    "Quando vou às aulas, apenas metade da minha energia é dedicada aos estudos, porque o resto dedico a enfrentar o assédio dos estudantes homens. Os professores não interferem porque preferem não se envolver. Não se pode fazer queixas ao diretor porque eles dizem que esse problema não existe em nossa universidade, e eu muitas vezes tenho vontade de desistir. Estou muito cansada disso".

    Shahla, a mãe de Farid, foi juíza e leciona na escola de Direito e ciência política da Universidade de Cabul. Ela trabalha em defesa de mulheres agredidas e está escrevendo um livro sobre os direitos da mulher no Afeganistão. Um quinto de seus alunos são mulheres. Ela foi a primeira mulher em sua região, a província de Faryab, a estudar Direito.

    "Na época, havia mais mulheres estudando do que hoje", ela me conta.

    "Eu mesma tenho medo quanto a 2014. Tenho sete filhas --duas são casadas, cinco estão estudando. Temo que as duas mais novas não possam ir à universidade, ainda que sejam as melhores alunas em suas classes. A mais nova, Mahaba, ainda nem entende, mas minha filha de 13 anos sente muita desesperança com a situação".

    Ela afirma que, quando os soldados estrangeiros se forem, os homens afegãos voltarão à guerra. "Nosso governo não pensa nas mulheres. Se eu soubesse que isso aconteceria, teria tomado outro caminho e não seria uma ativista. Por isso estou zangada. Temo pelas minhas filhas, que podem ser sequestradas ou punidas pelo trabalho político que realizei".

    "As mulheres começaram a reduzir suas atividades, porque quanto mais perto chegamos de 2014, mais as leis criadas para apoiar as mulheres perdem força. Minhas alunas que podem deixar o país estão indo embora", conta.

    "Tenho uma filha que nos pede para partir a cada dia, mas meu marido recusa. Ele diz que todos devemos amar nosso país", ela afirma.

    RAIHANA KARIMI, A ENGENHEIRA

    Raihana Karimi é engenheira, como o marido. "Mas neste pais é vergonhoso para um homem saber o nome da mulher de um colega, e por isso não posso trabalhar com meu marido Ele está feliz agora que trabalho entre mulheres".,

    Em 2008, ela aderiu a um programa que treinava mulheres para trabalho jurídico. Agora, dirige um abrigo para mulheres em Mazar-i-Sharif, com verbas da embaixada norte-americana. "Em geral atendo a meninas que fogem da violência ou casamentos forçados. E se elas fogem, podem ser detidas e parar na cadeia. Os efeitos da guerra são claros, e as mulheres arcam com os piores deles. Converso com as famílias para ver se é possível fazer alguma coisa para ajudar a resolver os problemas e garantir o retorno de suas filhas. Mas as famílias muitas vezes estão furiosas, e querem encontrar e incendiar o abrigo".

    Karimi diz que agora enfrenta "muitas ameaças. Sei que não só perderei meu emprego mas me tornarei o primeiro alvo depois que as forças internacionais se retirarem, em 2014. O abrigo fechará, e ainda que algumas ONGs digam que permanecerão, todo mundo estará trabalhando separadamente. Não haverá objetivo único. Nosso governo é fraco".

    "Queimei minha burca quando o Taleban caiu, e não quero uma nova. Imploro que os Estados Unidos e o Reino Unido não nos deixem. Por favor, fiquem. Estamos muito vulneráveis, temos muito medo".

    SHEKIBA AZIZI, A PROFESSORA

    Shekiba Azizi, 28, é professora em uma escola de segundo grau para meninos em Mazar-i-Sharif, e tem três filhos. Ela sente que a incerteza está permitindo que o conservadorismo avance e volte a dominar a vida das mulheres afegãs. "A maioria das demais professoras usa a burca, agora. Mas eu a odeio. Não consigo enxergar, e é claustrofóbico. `Para caminhar até o ponto de ônibus, passo pelas casas de alguns líderes de milícias, e os guardas armados gritam comigo e me xingam, e por isso tenho de ir de táxi ao trabalho, o que custa caro. Agora tenho até de levar uma burca na bolsa, caso precise", ela me diz, mostrando o tecido azul de nylon na bolsa.

    "A comunidade internacional gastou muito dinheiro no Afeganistão, é o que dizem, mas não vejo efeitos benéficos para os pobres. Agora eles vão embora, e temos o direito de saber sobre o nosso futuro. Eles precisam ser claros quanto ao que vai acontecer conosco --é algo que eles nos devem", diz.

    MONIZA SHERZADA HASSAN, MÉDICA

    A dra. Moniza Sherzada Hassan, 53, atende à porta de seu edifício, em Cabul. Dois menininhos que estão brincando na rua a contemplam com os olhos arregalados. A cabeça dela está coberta por um véu, mas ela usa sapatos de salto alto e maquiagem.; "Sou mulher, e em minha casa me permito ser mulher, mesmo que do lado de fora eu não possa", ela diz, enquanto me conduz à modesta sala de estar de seu apartamento, cujas mesas estão todas ocupadas por pratos repletos de frutas secas para receber as visitas; Hassan escapou do Taleban em 1994, carregando a filha pequena pelas montanhas, montada em uma mula. Seu filho e filho estão estudando medicina na Alemanha. Hassan voltou em 2001 e faz parte de uma comissão que o governo estabeleceu por insistência da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) para debater paz e reconciliação.

    "Há 70 membros, nove dos quais mulheres. A presença das mulheres é apenas simbólica. Nada é conseguido por voto. A função da comissão é ouvir, não se pronunciar. No caso das mulheres, não lhes falta seriedade ou competência, mas suas posições não são iguais. Vejo progresso quando um homem encara uma mulher e a cumprimenta, porque eles costumam olhar por sobre a cabeça delas como se não estivessem presentes".

    "As mulheres mais jovens parecem ser as mais deprimidas e sofridas. Tentamos mostrar a elas que estamos com elas, mas elas não veem um futuro. Dependem financeiramente de suas famílias", diz.

    "Se os Estados Unidos e no Reino Unido quisessem poderiam eliminar o Taleban em dois dias. Eles os trouxeram, e eles podem se livrar disso. Agora, estão tentando isolar o Afeganistão", diz.

    "Não compreendo por que as forças estrangeiras sairão agora, porque isso garante que a próxima crise afegã seja maior. Nossos jovens nunca viveram sem violência, e a fome dos jovens é uma grande arma para os fundamentalistas".

    "Quando os conservadores voltarem, fuzilarão todas as mulheres que lutaram por justiça. Os fundamentalistas sabem onde moram os que defendem os direitos da mulher. A comunidade internacional deveria apoiar e proteger essas mulheres, mas só pensa em tirar suas tropas daqui. Essas mulheres pensam no que acontecerá quando as portas das embaixadas forem batidas em suas caras e ninguém mais se incomodar com elas", diz.

    "Tenho sorte por ter passaporte alemão e poder partir quando quiser, mas imploro aos políticos britânicos e americanos, que tantas promessas fizeram: por favor, tornem mais leve ao menos uma página da história afegã. Antes que seja tarde demais".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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