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    A vida do diretor Sam Mendes é doce

    EMMA BROCKES
    DO "GUARDIAN"

    22/04/2013 16h20

    Foram precisos cinco anos para fazer de "Charlie e a Fábrica de Chocolate" um musical, por motivos tanto logísticos --Sam Mendes, o diretor do projeto, passou três anos ocupado com a direção de "Skyfall"-- quanto práticos: é um livro de adaptação complicada. Há as crianças; os velhos que não saem da cama; a pirotecnia da fábrica de chocolate. Há o caráter ambíguo de Willy Wonka. E há a questão que pende mais pesadamente sobre a produção: o que fazer quanto aos Oompa-Loompas. "É uma tarefa grande", diz Mendes sobre o trabalho que o aguarda. "Muito grande".

    Estamos em um estúdio de ensaio na região sul de Londres, onde a companhia envolvida na peça está se preparando antes da estreia da temporada regular, no teatro Drury Lane. O espetáculo está sendo febrilmente aguardado, graças ao sucesso de "Matilda", outra produção adaptada de um livro de Roald Dahl, e ao brilho nuclear que Mendes adquiriu depois de dirigir um filme de James Bond. O espólio de Dahl rejeitou diversas propostas de adaptação da história para os palcos, ao longo dos anos.

    A de Mendes foi aceita por motivos sólidos: a Neal Street Productions, empresa que ele criou com Caro Newling e Pippa Harris, encenou alguns dos melhores musicais dos últimos 10 anos --especialmente a nova e brilhante produção de "Sunday in the Park With George". Se Mendes conseguir encenar uma bela adaptação, receberá muito amor, por algum tempo, e pode ser perdoado pelos seus demais sucessos.

    E lá estava ele, cercado por um grupo fascinante: Scott Wittman e Marc Shaiman, os compositores norte-americanos da trilha, acompanhados por uma equipe majoritariamente britânica de roteiristas, coreógrafos e diretores de cenografia, alguns dos quais provenientes de origens obscuras --como se fossem crianças contempladas com o bilhete dourado de Wonka. David Greig, que está adaptando o livro para o palco, é um dramaturgo escocês com antecedentes em nada parecido aos dos dois compositores da Broadway envolvidos no projeto, os quais, quando informados de que trabalhariam com ele, procuraram suas peças para ler. "Todas falam de terrorismo", diz Wittman, com ar de certa incompreensão.

    Greig também estranhou o convite. Ele tem um histórico notável nos teatros Royal Court e Royal Shakespeare Company --foi ele que escalou Alan Cummings para a produção de "As Bacantes", de Eurípides, no Lyric-- mas jamais havia trabalhado em um musical. Acha que conseguiu o posto porque, em lugar de tentar impressionar Mendes e de demonstrar interesse exagerado pelo trabalho, disse que "acho muito difícil. Na realidade, quase impossível".

    Há muitos problemas na conversão de "Charlie e a Fábrica de Chocolate" do livro ao palco, já que, ao contrário de outras histórias de Dahl, a desse livro não segue uma narrativa convencional. Charlie Bucket começa como um bom menino e termina como bom menino; não há progressão. E a história tampouco tem um vilão --ou melhor, o vilão é em boa medida Willy Wonka. Nunca surge uma sensação clara de que as crianças estão em perigo na sua visita à fábrica, mas há uma implicação de risco, diz Newling, de que Wonka "pode causar a morte dessas crianças, ele as testa". Isso responde por boa parte da atração que a história exerce, claro; "As pessoas adoram a maldade deliberada, mas a questão tem implicações quanto a definir o que é certo e errado, o que é justo", diz Newling. A história gira em torno de crianças cujos pais as criam bem ou as criam mal.

    Também é uma história sobre a excentricidade do gênio. "Não existe dúvida de que Willy Wonka e Roald Dahl têm muito em comum", diz Mendes. "Quando você ouve o audiobook em que Dahl lê a história, é assustador. Ele não se comporta como um velhinho simpático e professoral. Ele é bem mais que isso". Dahl parece ser visto hoje como um grosseirão de proporções épicas, mas isso não solapa em nada a sua popularidade. E nem deveria: o lado mais áspero de Dahl tem posição central na sua competência como escritor, e dá aos seus livros a personalidade forte que os distingue das produções amenas para crianças que nos acostumamos a ver.

    "De muitas formas, essa é a chave", diz Mendes. "E foi um dos grandes atrativos para que eu aceitasse o projeto. Não sinto que o Willy que li no livro tenha sido retratado corretamente em qualquer dos dois filmes, por mais maravilhosos que Gene Wilder e Johnny Depp sejam."

    Wonka será interpretado por Douglas Hodge, uma decisão de elenco que provavelmente não poderia acontecer na Broadway. O histórico de Hodge está em produções clássicas --ele trabalhou em muitas peças de Harold Pinter e esteve no elenco do "Tito Andrônico" produzido pelo Globe; também interpretou Péricles na montagem do National Theatre. Isso dará a Willy Wonka um peso cultural maior, combinando o pop ao canônico. Já que o livro não fala sobre os antecedentes de Wonka, Hodge o interpretará como se fosse imemorial --"penso em David Bowie, ou Michael Jackson, um desses personagens extraordinários que viveram separados do mundo por muito tempo e apresentam uma estranha inocência".

    Essa é a primeira vez que Wonka não será interpretado por um norte-americano, e Hodge se baseou nas tradições de Gilbert & Sullivan, Noël Coward e Rex Harrison, para o papel "Ainda que o Wonka gentil, transcendental e ligeiramente drogado de Gene Wilder fosse maravilhoso, não entendi a versão Anna Wintour que Johnny Depp criou. Minha ideia é muito diferente. Estou adorando que o texto seja tão inglês". Brincalhão e risonho é o tom que ele deseja encontrar, mas Hodge também pretende mostrar uma ponta de desilusão, no começo. "Creio que, no começo da história, ele tenhas perdido a fé na inocência. Penso que talvez eu deva interpretá-lo de um modo mais sombrio do que em passadas versões".

    Se existe um antídoto para a pressão de um espetáculo que terá de lotar os 2,2 mil lugares do teatro Drury Lane a cada noite, para a reinterpretação de um livro amado por milhões de pessoas e para a condução do relacionamento com a Warner Bros., co-produtora do novo espetáculo, com certeza dirigir um filme de James Bond logo antes de iniciar o trabalho de adaptação serve muito bem.

    Mendes está de volta às origens. Nos anos 80, dirigiu suas primeiras peças enquanto estudava letras na Universidade de Cambridge; logo que terminou a faculdade, conseguiu trabalho dirigindo Judi Dench em uma produção de "O Jardim das Cerejeiras", de Tchekov, no West End. (Ela fala da produção em suas memórias, mencionando as ousadias de iniciante de Mendes.)

    Depois disso, ele passou a trabalhar para a Royal Shakespeare Company, encenando produções de "A Tempestade", "Ricardo 3°" e "Troilus e Cressida". Suas maiores produções aconteceram no teatro musical. Musicais tendem a ficar datados rapidamente, mas quando funcionam, diz Mendes, "são a melhor e mais pura forma de teatro", e seu histórico é brilhante. A produção de "Cabaret" que ele dirigiu em 1993 é uma das melhores coisas que já vi no palco.

    Já sua carreira no cinema causa menos unanimidade. "Beleza Americana", o primeiro filme de Mendes nos Estados Unidos, ganhou o Oscar de melhor filme em 1999, e foi tanto amado quanto odiado pela crítica. Ele conquistou mais seis indicações ao Oscar com "Estrada para Perdição", e dirigiu uma boa adaptação de "Revolutionary Road" ["Foi Apenas um Sonho"], de Richard Yates, com Kate Winslet, sua ex-mulher.

    "Skyfall" é seu maior filme até hoje, e o maior sucesso da longa série Bond, com faturamento mundial de US$ 1 bilhão. "O maior filme que já fiz", diz Mendes, "seguido pelo maior espetáculo que já dirigi no palco, e quase sem pausa --não posso dizer que planejei sensatamente".

    Para alguns de seus pares em Hollywood, a carreira dele tampouco pode ser definida como sensata, já que Mendes costuma recusar convites para dirigir grandes filmes e prefere trabalhar no teatro londrino em projetos a que número relativamente modesto de pessoas poderão assistir, o que é visto como excêntrico a quase o ponto da insanidade, em Los Angeles. No entanto, para Mendes isso é uma necessidade psicológica. Logo que concluiu o filme de Bond, os produtores lhe ofereceram a direção de mais um trabalho na série, mas não se sentiu tentado a aceitar.

    "Eu estaria disposto a me trancar com um roteirista em uma sala e começar a trabalhar nos mesmos personagens e situações com os quais estive envolvido por três anos? Não. A ideia me causava enjoo". Ele ri. "O mundo do cinema em geral não reconhece o mundo do teatro como entidade séria. E por isso há sempre gente me perguntando por que motivo eu quero fazer mais uma peça".

    Outra pergunta que costumam fazer a ele é "o que você gostaria de dizer a todos os fãs de Bond que você decepcionou?", o que faz Mendes rir. "Respondo que minha vida não é uma democracia. Não está em discussão. O que esperam, que eu vá a um fórum online de fãs de Bond e mude de ideia? Duvido que isso venha a acontecer".

    Se existe uma conexão entre Bond e Charlie, seria possível dizer que ela gira em torno daquilo que os torna peculiarmente ingleses. (Nas cenas iniciais, na choupana da família Bucket, o cenário de Mark Thompson para o musical tem um estilo meio Lowry, adequado a um musical da era da recessão.) Na produção de "Skyfall", Mendes acreditava que estivesse sendo esotérico com os temas.

    "Sob a superfície, o filme é uma meditação sobre o envelhecimento, a perda e a Inglaterra. E sobre o que é ser inglês, e se isso ainda tem algum significado hoje". É a história, diz ele, "de alguém que desaparece por algum tempo, volta à Inglaterra e descobre que tudo mudou mas tudo continua igual. E era mais ou menos isso o que eu estava vivendo".

    Depois do final de seu casamento com Winslet, Mendes voltou de Nova York para Londres. (A separação, até onde se sabe, foi amigável, e ele não sente falta de fazer parte de um casal de grandes celebridades. "Tenho imensa admiração por Kate --como ela lidou com o assunto, e continua a lidar", diz Mendes. "Melhor que eu. Eu não gostei nem um pouco do processo". Mendes agora namora Rebecca Hall.)

    De qualquer forma, voltar à Inglaterra foi bom para ele. "Tentei me tornar um pouco mais americano quando estava fazendo filmes, mas há certas coisas essenciais que nunca consegui dominar. Não sabia como conversar com a equipe técnica sobre os resultados do esporte na noite anterior. Enquanto aqui, sei. Não sei como ler um jornal norte-americano da maneira devida, e aqui eu sei. Não consigo assistir ao noticiário do começo ao fim nos Estados Unidos, mas aqui consigo. Gosto do cheiro da chuva na rua, aqui, e lá eu sempre queria voltar para casa. Aqui é meu lar. Nunca senti que viver lá fosse permanente, para mim. Amo Nova York,mas sou inglês, continuo a me sentir inglês, e era assim que me sentia quando vivia lá".

    Joe, 9, filho de Mendes e Winslet, estava acompanhando os ensaios de "Charlie e a Fábrica de Chocolate" e serviu como cobaia para o pai em testes de alguns números do espetáculo. Mendes diz que, de qualquer forma, a chave para uma produção como essa é "encontrar sua criança interior, tentar recordar do que sentiu quando ouviu a história pela primeira vez. E é preciso ignorar deliberadamente a narrativa; quanto a isso, é um pouco como fazer um filme de Bond, já que todo mundo na audiência sabe que Bond não vai morrer. Mas é preciso fazer o público acreditar que existe o risco de que isso aconteça".

    Será por isso que ele decidiu fazer o melhor que podia sem matar Bond --estou presumindo que todo mundo tenha assistido ao filme --e decidiu matar Dame Judi?

    "Ha! Não se pode matá-lo. Portanto, era preciso matá-la. Achei que fosse ser muito criticado por isso. Mas esse tipo de choque faz com que o público recorde como veio a conhecer um personagem. No caso da nova montagem, é a mesma coisa. É preciso tornar impossível a vitória de Charlie, e depois vê-lo vencer", diz Mendes.

    O que foi que Dench escreveu sobre ele em suas memórias, exatamente? "Vou parafrasear, mas quando eu estava dirigindo 'O Jardim das Cerejeiras', ela me perguntou se podia tentar determinada coisa, e eu respondi que ela podia tentar, mas não funcionaria. E ela achou, e com toda razão, que eu estava sendo pretensioso".

    E era?

    "Oh, eu era muito chato. Rude. Irritante, e todas as coisas que se pode esperar de um cara de 24 anos dirigindo Judi Dench em 'O Jardim das Cerejeiras'. O que sabia eu? Estremeço ao lembrar, hoje. E então, quando fizemos 'Skyfall', eu perguntei a ela se podia tentar determinada coisa, e ela respondeu que podia tentar, mas não funcionaria. E acrescentou que esperou 25 anos para me dar o troco", diz Mendes.

    Pode ser sentimentalismo, diz Mendes, mas voltar a Londres para trabalhar em "Charlie e a Fábrica de Chocolate" faz com que ele recorde o que o torna mais feliz: a profunda e satisfatória segurança de trabalhar com pessoas a quem ele conhece desde o começo da carreira. O primeiro ensaio da nova produção foi no salão de uma igreja em Brixton, e ele estava de péssimo humor naquela manhã, resmungando sobre a distância que havia tido de percorrer, exausto depois de concluir "Skyfall"; mas então ele entrou no salão e lá encontrou todos aqueles velhos amigos.

    "E pensei que aquela era uma sensação que eu recordava, e era excelente. A sensação era a de voltar para casa. Nunca sinto coisa parecida em um estúdio de cinema. Estúdios de cinema não propiciam essa sensação de segurança". (Por conta do sucesso de "Skyfall", alguns dos atores que participaram das audições diante de Mendes sentiam ansiedade maior que a normal. "Sim, estavam todos nervosos. Tento deixar todo mundo à vontade, mas não sou um diretor feroz nos ensaios. Não creio que ninguém me considere assustador por muito tempo".)

    ANTIQUADO

    As chances de que "Charlie e a Fábrica de Chocolate" seja um bom espetáculo são muito altas, dada a combinação de inteligência, sofisticação e apelo comercial que a Neal Street Productions faz tão bem, apesar dos desafios logísticos. A ideia de criar um rio de chocolate foi abandonada, por fim, mas há outros aspectos pirotécnicos e, ainda que a produção não tenha por base os recursos de efeitos especiais, o peso pendente sobre o palco tornou necessário reforços de aço para a estrutura de carga.

    Do ponto de vista do design de produção, diz Mark Thompson, sua esperança é de que a produção dele corrija versões anteriores da história. "Não gostei do filme mais recente", diz. "Havia coisas maravilhosas nele, mas no geral era bem frio. Não sei se seria ousadia dizer que o filme propunha uma visão cínica do mundo. Já o primeiro filme eu acho charmoso, ainda que um tanto antiquado".

    Caso o espetáculo obtenha sucesso, isso se deverá em grande parte ao coreógrafo, Peter Darling, também responsável por "Billy Elliot" e "Matilda", e que trabalha sob o princípio de que crianças precisam se movimentar como crianças, e não como pôneis em torneios de adestramento. "É preciso compreender os parâmetros", diz ele. "Se você está tentando fazer com que uma criança se movimente de maneira muito expressiva, lenta e lírica, isso não vai acontecer. E você pode perder dias e dias com isso, porque as crianças, quando chegam aos 10 anos, mal começaram a controlar bem seu movimento e equilíbrio". Ele prefere, em lugar de movimentos controlados, "movimentos abruptos, descoordenados, fortes, e isso funciona bem para mim, já que provavelmente é assim que eu me movimento".

    As crianças ganhadoras do bilhete dourado, na história de Dahl, serão caracterizadas em parte por meio da coreografia de Darling, de modo que os três meninos que interpretarão Mike Teavee foram escolhidos por sua "energia cinética" e se movimentarão em estilo parecido ao de street dance. Augustus Gloop? "Ele se expressa comendo, por isso os meninos aprenderam alguns truques de mágica que envolvem comida. Há um certo embaraço nele, e sua inércia é que o torna único".

    Nem Charlie e nem seus colegas de elenco vieram de escolas de dança; são meninos e meninas normais, e Darling diz que existe "algo de belo em ver crianças que nunca dançaram, e achavam que não sabiam dançar, descobrindo que podem fazê-lo. É mágico".

    "É como ser um professor", diz Douglas Hodge. "Em dado momento havia 17 crianças, com todos os germes conhecidos, na sala. Eram tão boas, tão destemidas. Assistir ao trabalho delas é alarmante, doloroso".

    E isso nos conduz ao problema dos Oompa-Loompas; descritos no primeiro esboço de Dahl como "pigmeus", o que até ele percebeu ser meio dúbio, e apresentados na versão final do livro como uma tribo de moradores da selva "salvos" por Wonka e transportados em um contêiner à fábrica, onde seu amor pelo chocolate os inspira a trabalhar de modo que contraria as leis da União Europeia. "Eles são reais?", pergunta Greig. "E se eles são reais --o quê? Willy Wonka tem um exército de pequenos escravos? É isso que estamos dizendo?"

    Eles são uma das grandes surpresas do espetáculo, e por isso ninguém conta que aparência terão, ainda que em parte sua participação envolva o uso de títeres (criados pelo brilhante Jamie Harrison, que criou a Sininho para o "Peter Pan" do Teatro Nacional da Escócia.) Alguns dos trajes dos Oompa-Loompas estavam pendurados na traseira da sala de ensaio; vazios, parecem Teletubbies pendurados em um varal.

    É impossível imaginar que cara terá o espetáculo final, mas dadas as pessoas envolvidas e o longo período de preparação, não é surpresa que haja grande expectativa sobre a produção. Escapando habilidosamente à preocupação causada pelas expectativas, Mendes diz que não pode permitir que essas coisas o afetem. "Você pode teorizar quanto quiser, pode relatar a coisa da forma que preferir". Ele sorri. "Mas em última análise é apenas uma história contada com alegria".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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