• Ilustríssima

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    O homem-mulher

    SÉRGIO SANT'ANNA
    ilustração MARCELO COMPARINI

    02/02/2014 03h56

    SOBRE O TEXTO Considerado um dos principais representantes do conto no país, gênero no qual estreou com o volume "O Sobrevivente" (1969), Sérgio Sant'Anna é conhecido pelo caráter experimental e transgressor de sua prosa. O texto publicado nesta página deve dar nome a sua décima coletânea de contos, a sair pela Companhia das Letras, em data a ser definida. No livro, constará ainda a novela "O Homem-Mulher 2".

    *

    O nome dele era Adamastor Magalhães, mas ele preferia ser chamado de Fred Wilson, que era o nome que usava no grupo amador de teatro em que era ator, em Belém do Pará, cidade onde nascera e vivia. Para simplificar, as pessoas passaram a chamá-lo de Fred. Pode-se dizer que tudo começou, externamente, quando ele fez o papel de Claire, em "As Criadas", de Jean Genet, em que, naturalmente, usava uma roupa feminina. E foi com o figurino de Claire que, num Carnaval, ele saiu num bloco de sujos. Mas é de se supor que, morando numa família com mais duas irmãs, tenha experimentado escondidamente vestidos.

    E também é provável que, estando na adolescência, tenha sentido um verdadeiro frisson com o ventinho nas pernas e uma calcinha envolvendo o seu pau, quando experimentou uma roupa da irmã pela primeira vez. Ele sentiu esse corpo feminino em si ou contra o seu corpo. Teve de ajudar-se com a mão para gozar, mas a marca ficou indelével: homem e mulher num corpo só, que sente prazer.

    Talvez se Adamastor tivesse o pai vivo, pudesse levar uma tremenda bronca ou até uma surra ao ser flagrado usando um vestido. Mas não tinha mais esse pai, e talvez o caso de Fred não se deva explicar pela psicologia: é a sua história, um modo de ser.

    Marcelo Comparini

    Depois, havia esse lance mais livre dos blocos de Carnaval, e isso era mais do que comum em todas as cidades brasileiras, homens vestidos de mulher, caricaturalmente ou não, em grupos, blocos ou até sozinhos, e não havia quem os chamasse de veados por causa disso. Divertiam-se para valer, Adamastor e seus amigos.

    Mas uma experiência verdadeiramente significativa se deu numa segunda-feira de Carnaval em que Adamastor, de vestido, agora da irmã, pois suara no figurino, e uma garota fantasiada de odalisca se enrabicharam, entrando num bloco de mãos dadas, relando aqui e ali e trocando beijos furtivos, procurando não ser vistos pelos pais da garota, de 16 anos (ele tinha 25), que eram turistas de Goiânia, gente severa, tanto é que às 22 horas levaram a mocinha para casa.

    Na terça-feira gorda, última noite dela na cidade, Adamastor voltou a sair de Claire, pois a roupa fora lavada e passada, comprou de um amigo um quarto de um frasco de lança-perfume e ele e a menina resolveram escapulir de toda a vigilância. Às 20 horas foram seguindo um bloco, comportadinhos, até que passaram por uma rua mal iluminada, transversal à avenida em que o bloco desfilava, que ia dar no cemitério menor da cidade. Aí começaram a correr para conseguirem chegar a um lugar ermo e poderem cheirar o éter em paz. Mas, ao passarem em frente ao cemitério, viram que havia um portão entreaberto, e Adamastor puxou pela mão a garota, Dalva, e logo já estavam lá dentro, junto ao muro que cercava os túmulos, a capela e o resto todo.

    Medo só um pouquinho, de encontrarem alguém que tivera a mesma ideia ou gente de algum velório. Mas não encontraram ninguém, nem o vigia, que devia estar misturado aos foliões, mesmo que fosse só para assistir. Porém, mais do que depressa, se esconderam à entrada de um túmulo grande, desses de família rica. Ofegavam, e a garota, safadinha, pegou a mão direita dele e encostou no seio esquerdo dela. "Olha como o meu coração está batendo." Adamastor aproveitou a deixa e abriu dois botões na blusa da fantasia dela, afastou o sutiã e lançou ali um jato de éter. Ela se contraiu toda e disse: "Que geladinho", mas ele já estava aspirando entre os seios de Dalva e depois chupou um dos mamilos dela. Com o éter, Adamastor sentiu um zunido nos ouvidos, e o mundo era aquela alucinação cheia de túmulos, estátuas e cruzes, tudo muito nítido e com sombras, porque era noite de lua cheia, e aquela garota vivinha da silva.

    "Agora é a sua vez", ele disse e levantou a sua saia de Claire e, com a mão esquerda, encharcou a calcinha de lança-perfume. Puxando a cabeça da menina para baixo, fez com que ela se ajoelhasse aos seus pés e disse:

    "Cheira a minha calcinha o mais forte que conseguir."

    Dalva ficou doida demais, o mundo rodopiava, e ela vendo a lua, os túmulos e os vaga-lumes e ouvindo o barulho dos grilos, ao mesmo tempo que tinha um certo medo de estar perto dos mortos. Mas nem teve tempo direito de sentir esse medo, pois Adamastor baixava a calcinha que estava usando e enfiou o pau muito duro na boca da garota e falou: "Chupa maciozinho", e a menina fez direitinho, por pura intuição, porque era a primeira vez e, ainda doidona, excitadíssima com um pau aparecendo sob um vestido e uma calcinha, engoliu a porra e gostou, porque vinha dele e era, assim, um pecado imenso no cemitério.

    Não restava muito do lança. Adamastor olhou ao redor e puxou Dalva pelo braço até um túmulo branquinho e cheio de flores, com uma estátua que parecia vestida com roupa de santa, mártir, muito bonita. Dalva acomodou-se na estátua, que era inclinada, e ele levantou a saia dela, que já estava sem calcinha, depois tirou a sua e foi lambendo a xoxota da menina, e depois cheirou éter só na barriga de Dalva, para não arder na boceta, e Dalva continuava doidaça, apesar de o efeito do lança-
    perfume já ter quase passado, mas ser lambida na boceta era melhor ainda e ele, Adamastor, o danadinho, quando chegou ao clitóris de Dalva, só roçava com a ponta da língua, como as putas lhe haviam ensinado.

    Adamastor jogou lança de novo nas duas calcinhas fora dos corpos, mantendo a dele no rosto de Dalva, e ele tinha o controle de tudo e, tendo cheirado mais na calcinha dela, levantou o vestido da garota e entrou com tudo em Dalva, que gritou de dor, mas abafada pela calcinha que ele pressionava contra o seu rosto. Enquanto isso, lá embaixo, saía o sangue de virgem. Ela não chegou a gozar, por causa da dor, mas estava preenchida e exaltada. E ele, apesar de já ter gozado uma vez, gozou outra, e depois caiu para o lado, juntinho de Dalva sobre a santa, as respirações voltando ao normal. Em silêncio, eles ouviam o barulho dos grilos e do piar de corujas e viam os vaga-lumes e até as estrelas, e ouviam a banda tocando músicas de Carnaval, lá para os lados da praça: "Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, o arlequim está chorando pelo amor da colombina, no meio da multidão...".

    Adamastor tentou esguichar mais um pouco de éter na barriga de Dalva, para depois cheirar ali, quando viu que o frasco de lança-perfume estava completamente vazio.

    "É melhor a gente ir indo", disse Dalva, se recompondo. "Meus pais devem estar me procurando; eu vou na frente, você vai depois."

    "Espera aí, vem cá só um minutinho", Adamastor a puxou pelo braço, também já se recompondo com o vestido de Claire. Iam limpando as roupas como podiam e chegaram, conduzidos por ele, até um canto do cemitério, onde havia um pequeno trecho de terra solta e duas pás, com toda a certeza para cavar uma nova sepultura.

    "Essa aí está aguardando um novo morador", ele fez ela rir.

    Como as calcinhas tinham sangue, eles não as vestiram; Adamastor, com uma das pás, abriu facilmente um buraco, jogou sua calcinha lá dentro e falou para Dalva imitá-lo, o que ela fez sem hesitação.

    Adamastor então jogou o frasco dourado de lança-perfume, que brilhou à luz da lua. Ele abençoou com a mão direita aquele conjunto, pegou a pá e jogou terra por cima e depois fez o sinal da cruz.

    Dalva, rindo, segurou o braço dele e disse:

    "Eu te amo, Fred."

    "Eu também te amo, Dalva", e Adamastor beijou fundo e longamente a boca de Dalva e foi ardentemente correspondido.

    "Mas eu te amo é para sempre", disse Dalva.

    "Eu também, queridinha."

    Primeiro saiu ela, depois saiu ele. E nunca mais se viram.

    SÉRGIO SANT'ANNA, 72, é escritor, autor de, entre outros, "Páginas sem Glória" e "O Livro de Praga" (ambos pela Companhia das Letras).

    MARCELO COMPARINI, 33, é artista plástico.

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