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    Hans Ulrich Obrist: A arte da curadoria

    HANS ULRICH OBRIST
    entrevistas feitas por STUART JEFFRIES e NANCY GROVES
    DO "GUARDIAN"

    04/04/2014 13h00

    O curador da galeria londrina Serpentine revela os prazeres e perigos da profissão, e sete artistas falam de suas exposições favoritas

    Um de meus heróis de infância foi Sergei Diaghilev. Ele não dançava. Não era coreógrafo. Não compunha. Não dirigia. Mas era –para usar um termo que o escritor J.G. Ballard me disse em uma entrevista– um fabricante de conexões. Diaghilev foi o fundador da Ballets Russes; ele juntou Stravinsky a coreógrafos, a Picasso, Braque e Cocteau. Fazia a arte encontrar o teatro e o teatro encontrar a dança.

    Diaghilev e Cocteau tentaram explicar o que faziam, dizendo "étonnez-moi!". Surpreenda-me! Nunca criei arte e nunca pensei no curador como rival criativo do artista. Quando me tornei curador, eu queria ajudar artistas. Penso em meu trabalho como o de um catalisador –e um "sparring".

    Vale a pena pensar na etimologia do termo "curadoria". Vem da palavra latina "curare", que significa cuidar. Nos tempos romanos, significava cuidar das casas de banho. Nos tempos medievais, designava o padre que cuidava das almas. Mais tarde, no século 18, ganhou o sentido de cuidar de coleções de arte e artefatos.

    Existem resquícios de tudo isso na curadoria moderna. Quando fui curador de minha primeira exposição –que se seguiu a discussões com os artistas Fischli/Weiss (a dupla suíça Peter Fischli e David Weiss), Richard Wentworth, Christian Boltanski e Hans-Peter Feldmann na cozinha de meu apartamento em Saint Gallen, na Suíça–, tive um desentendimento produtivo com meus pais. Eles pensavam que ia estudar medicina, porque "curar" significa cuidar. Acho que não pensavam que tivesse algo a ver com arte.

    Hoje, ser curador profissional significa pelo menos quatro coisas. Quer dizer preservar, no sentido de salvaguardar o patrimônio artístico. Significa ser o seletor de trabalhos novos. Quer dizer fazer a ligação com a história da arte. E quer dizer expor ou arranjar os trabalhos. Mas é mais que isso. Antes de 1800, poucas pessoas iam ver exposições. Hoje, centenas de milhões de pessoas as visitam todos os anos. É um meio de comunicação de massas e um ritual. O curador monta a exposição para que ela se torne uma experiência extraordinária, e não apenas ilustrações ou livros organizados no espaço.

    Comecei a ir a exposições na Suíça quando eu tinha dez ou 11 anos. Quando era menino, eu ia todas as tardes para ver as figuras compridas e magras de Giacometti. Eu olhava e olhava sem parar. Como me disseram Gilbert e George, "estar com arte é tudo o que pedimos". Mas tive meu primeiro grande insight em termos de curadoria quando vi "Der Hang zum Gesamtkunstwerk" (A tendência à obra de arte total), de Harald Szeemann, em 1983. Szeemann tinha a ideia da exposição como caixa de ferramentas ou como uma arqueologia do saber, como Michel Foucault. É assim que Szeemann expôs obras de Gaudi, Beuys, Schwitters e outros: a ideia era que esses artistas tinham criado ambientes totalmente envolventes. Fui ver aquela exposição 41 vezes.

    Mais tarde me inspirei no modo como o filósofo Jean-François Lyotard fez a curadoria da exposição de 1985 "Les Immatériaux", no centro Pompidou, em Paris. A exposição tratava de como as novas tecnologias da informação moldam a condição humana, mas o que me interessou foi que, em vez de escrever um livro, Lyotard transpôs suas ideias para um labirinto na exposição. É difícil descrever, porque ele estava produzindo a ideia, e não tanto a ilustrando, mas isso me influenciou e influenciou muitos outros artistas –como Philippe Parreno, com quem trabalhei mais tarde.

    Mas o trabalho do curador encerra perigos. A exposição Gesamtkunstwerk foi muito densa, muito inspiradora e interessante devido ao perigo de que se tornasse a exposição do curador, mais que dos artistas. Para mim, porém, foi importante ficar ao lado dos artistas e não subordinar o trabalho deles à visão do curador. Passei a entender que o papel do curador é mais a de um capacitador. O artista conceitual italiano Boetti me recomendou prestar atenção aos projetos não realizados dos artistas. Muitos artistas ainda não puderam realizar os projetos que são mais importantes para eles. Meu papel é ajudá-los.

    Uma de minhas exposições favoritas é intitulada "Do It", da qual fui cocurador, juntamente com os artistas Christian Boltanski e Bertrand Lavier, 21 anos atrás. Ela ainda está em cartaz. Foi inspirada em Marcel Duchamp enviando instruções da Argentina para sua irmã sobre como montar um de seus "readymades", na música da mudança de John Cage e no trabalho de Yoko Ono. Muitos artistas contribuíram com instruções sobre como fazer coisas na galeria e em outros lugares. A exposição já foi para mais de 120 cidades, em muitos casos para lugares que não têm muito em termos de cenário de arte contemporânea. No momento, está em Salt Lake City. Pode continuar pelos próximos cem anos.

    Joseph Beuys falou em ampliar a noção de arte. Eu estou tentando ampliar a noção da curadoria. As exposições não precisam acontecer apenas em galerias, não precisam envolver unicamente a exposição de objetos. A arte pode aparecer onde menos a esperamos.

    Hans Ulrich Obrist é codiretor da Serpentine Galleries, em Londres. Seu livro "Ways of Curating" foi publicado pela Allen Lane.

    DAVID SHRIGLEY

    A exposição que realmente ficou na minha cabeça foi a mostra do Sonic Youth de dois ou três anos atrás, que percorreu várias cidades. A curadoria foi do Sonic Youth e de Robert Groenenboom. Um trabalho meu fazia parte dela, e eu a vi em Malmö, na Suécia. O que chamou minha atenção é que havia muita arte ruim na exposição, mas ela era fantástica, mesmo assim. Muito do que havia não era arte, ou era arte, mas feita por artistas diletantes, e de algum modo tudo se encaixava bem.

    Era tudo sobre o Sonic Youth, a relação da banda com outros artistas e com a arte. Havia tantos tipos diferentes de trabalhos. Alguns eram mais como artefatos. Na realidade, a magia toda estava na perda da separação entre arte e artefatos, entre artistas e músicos. A trajetória do Sonic Youth, era essa a premissa. Então havia as capas dos álbuns do Sonic Youth criadas por alguns artistas seminais: Gerhard Richter, Christopher Wool, Mike Kelley. Havia até a capa do álbum final do grupo, criada por John Fahey. Ele fez a quintessência do revival folk. Fez as pinturas que vendia em suas apresentações.

    Aquela exposição fazia você perceber o que é a curadoria: não é necessariamente mostrar arte de qualidade da melhor maneira possível. Trata-se de criar uma exposição que seja realmente boa. É possível criar uma exposição boa sem que ela contenha arte boa. Não quero dizer que não seja possível ter as duas coisas, mas que é possível sem as duas coisas.

    Morro de tédio quando as pessoas querem falar em curadoria. Acho que a boa curadoria é trabalhar com alguém que consegue fazer algo que você não consegue. Isso vale para qualquer colaboração boa. O melhor é quando vocês criam a exposição juntos e descobrem tudo enquanto estão fazendo. Alguns curadores são acadêmicos, mas os artistas não são –pelo menos eu não sou.

    YOKO ONO

    Quando faço uma mostra, meto a mão na massa. Praticamente faço tudo sozinha. Ao longo de minha carreira, tive a sorte de trabalhar com muitos curadores criativos. O papel deles é me dar proteção e incentivo. Não no sentido de mudar o que eu faço, mas de me dar as condições para fazer o que eu quero fazer. Eles me ajudaram a entender o que eu gosto.

    Alexandra Monroe deu tanto amor a mim e a meu trabalho que tornou "Yes" –a primeira grande retrospectiva de Ono– muito fácil para mim. Às vezes eu tentava entender por que ela selecionava um trabalho em particular. Mas ela diz: "Olhe para isto, Yoko. É importante". E muitas vezes ela tem razão.

    Jon Hendricks, curador da exposição atual de Ono em Bilbao, também tem me dado muito apoio, simplesmente indo para lugares em meu nome e dizendo "Yoko não gosta disso".

    Hans Ulrich é uma daquelas pessoas que vão para lá e para cá. Ele voa em sua cabeça, assim como vive voando pelo mundo. E quando você encontra aquela mente em trânsito, é muito instigante. Isso me dá uma compreensão de meu próprio poder. Minha sensação é que Hans não é apenas curador. Seu dever é alimentar seu próprio conhecimento e gostos, tanto quanto os artistas com quem ele trabalha.

    JOHN BALDESSARI

    A colecionadora Virginia Dwan tinha uma galeria notável em Los Angeles, que mais tarde foi transferida para Nova York. Ela teve papel fundamental em expor muitos artistas europeus e de Nova York que nunca antes tinham exposto na costa oeste. A mostra da qual me lembro melhor foi a de Yves Klein na Dwan Gallery no final dos anos 1960 –todas as telas eram azuis. Isso me fez repensar o que eu estava fazendo. No final, Virginia teve que fechar a galeria. Ela não estava tendo lucro. A mensagem é que o objetivo não era vender arte.

    Acho que um bom curador é como um bom chef. Ele entende as necessidades da cidade, as satisfaz e desafia. Como os curadores e artistas trabalham juntos? Idealmente, é uma colaboração em que um inspira e desafia o outro. A melhor coisa que um curador pode fazer é arrancar do público a reação "eu não sabia que isso podia ser feito". A pior coisa é apresentar uma exposição que já deixou de ser relevante.

    MARK WALLINGER

    O projeto Münster Sculpture foi fundado por Klaus Bussmann e Kasper König em 1977 e acontece de dez em dez anos. Kasper é o curador desde o início. É um projeto assombroso, e tive a sorte de fazer parte dele em 2007. Fui um dos 33 artistas daquele ano.

    Meu trabalho consistiu em estender uma linha fina, quase invisível, em volta da cidade. Me recordo de ter um encontro com Kasper num café de Münster, onde eu disse: "Quero que o círculo passe por aqui, mas preciso de um conjunto de compassos ou algo assim". Kasper simplesmente jogou um pires para o outro lado da mesa, eu desenhei em volta do pires, e meia hora mais tarde estávamos no gabinete da prefeitura com o topógrafo chefe me perguntando quantos metros acima do nível do mar eu queria que a linha passasse.

    Kasper é uma caixa de ressonância, um capacitador e um entusiasta de todos os artistas com quem trabalha. Münster é um lugar que tem significado pessoal para ele. Não é como essas exposições em que curadores internacionais caem de paraquedas. A relação dele com a cidade é crítica para a empreitada toda.

    TARYN SIMON

    A exposição que se destaca para mim é a de Horst Ademeit no Hamburger Bahnhof - Museum für Gegenwart, em Berlim, 2011. Numa área pequena e muitas vezes esquecida do museu estava uma quantidade avassaladora de material meticulosamente organizado de um artista de quem eu nunca tinha ouvido falar. Depois de ser rejeitado por seus pais, sua mulher, sua escola e até seu professor, Joseph Beuys, Ademeit abandonou o desenho e a pintura em favor da fotografia e da redação. Ele fez mais de 6.000 fotos com Polaroid em isolamento ao longo de um período de 14 anos. As fotos cobriam a sala.

    Nas margens das fotos, e em calendários e cadernetas aparentemente intermináveis, ele escreveu à mão anotações em uma escala que beira o indecifrável. Estava estudando o impacto dos raios frios, dos raios terrestres, das ondas eletromagnéticas e de outras formas de radiação sobre sua própria saúde e segurança. Protegia-se com ímãs e ervas contra o que via como sendo forças invisíveis perigosas, e ao mesmo tempo criava de modo obsessivo esse tesouro de registros e evidências. A exposição quase parecia uma invasão de privacidade, como se você estivesse vendo o mundo secreto de alguém.

    PHILIPPE PARRENO

    Eu fui realmente influenciado pelas primeiras exposições no Pompidou, especialmente "Les Immatériaux", de 1985, com curadoria de Jean-François Lyotard. Uma das primeiras a imaginar nosso futuro digital "avant la lettre", a exposição foi tremendamente influente. Seu título refletiu não apenas uma mudança nos materiais que empregamos, mas uma mudança no próprio sentido do termo "material".

    Lyotard criou uma estrutura aberta, um labirinto com uma entrada e uma saída, mas com muitos caminhos pelos quais era possível chegar de uma à outra. As paredes não eram estruturas sólidas, mas teias cinzentas que se estendiam do chão ao teto. Os visitantes usavam fones de ouvido e ouviam transmissões de rádio que sumiam e reapareciam à medida que eles percorriam a exposição. Essa não linearidade fluida exemplificava as próprias condições de imaterialidade que eram centrais ao argumento da exposição.

    O que faz um curador ser bom? Paixão, curiosidade, inteligência. Hans, Daniel Birnbaum –diretor do museu de arte moderna de Estocolmo– e eu estamos trabalhando num projeto: a sequência que Lyotard planejou para "Les Immatériaux" e que nunca se concretizou. Nossa mostra se chama "Resistances". Os humanos querem simplificar os acontecimentos do mundo para entendê-los. Por exemplo, é mais fácil dizer que a força da gravidade é estável, mas na realidade ela não o é. Ela oscila. Lyotard achava que a arte era isso: forças resistentes que tornam as coisas não inteiramente como pensamos que elas são. É uma maneira realmente bela de definir a arte e a curadoria de arte.

    GILBERT & GEORGE

    Crucifiquem os curadores.

    ("Crucifique um curador" é uma das muitas frases lapidares do tríptico mais recente de Gilbert & George, "Scapegoating Pictures", na White Cube de Londres, em julho.)

    Tradução de Clara Allain

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