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    Manoel de Barros na avenida

    ALONSO ALVAREZ

    13/04/2014 03h06

    São Paulo, 1990

    Naquela época eu tinha duas livrarias: uma, diurna, em frente ao Centro Cultural São Paulo (CCSP); outra, noturna, no boêmio bairro do Bexiga. Certo dia me encantei com a poesia de Manoel de Barros ao ler uma matéria na Folha sobre o lançamento do livro "O Guardador de Águas" (1989). As estantes das minhas livrarias viviam forradas de livros de poesia e muitos poetas circulavam por lá entre os leitores frequentadores.

    Na hora liguei para a editora, com muita vontade de convidar o poeta para uma noite de autógrafos. O editor foi direto: "O poeta não quer saber de aparecer em público. Nada de lançamento, nada de autógrafo. Nada de entrevista em microfone ou telefone, só por carta. Ele não aceita nenhum convite, não adianta insistir".

    Mas insisti. Consegui o endereço do poeta e mandei uma carta, convidando-o para uma noite de autógrafos. E logo chegou a carta dele com o "não". Depois de outras cartas trocadas, fui descobrir que ele chamava o microfone de "pau de ferro", que não gostava de falar para essas coisas... E assim começamos uma longa amizade.

    Ali do outro lado da avenida, a agitada Leda Tenório da Motta cuidava dos eventos do Núcleo de Projetos Literários do CCSP. Um dia ela organizou, com o Augusto Massi, o ciclo "Artes e Ofícios da Poesia", no Masp. Tentaram convidar o Manoel de Barros, mas ele, que era então a grande estrela no mercado editorial, não topou.

    Massi, sabendo da minha amizade com ele, chamou-me e disse que, se eu o trouxesse para o evento, teria uma noite no auditório do Masp para apresentar alguma coisa sobre o poeta.

    Mandei uma carta caprichada (sempre escrita à mão), convidando-o para o evento, justificando que a poesia, a arte do inutensílio, como dizia Paulo Leminski (e ele também, com o seu "escritório de ser inútil"), ia ter um grande encontro no Masp e que ele não poderia ficar de fora.

    Para minha surpresa ele respondeu com um belo "sim". Mas com algumas condições: não daria entrevista; não participaria de mesas nem de nenhum encontro formal; ficaria apenas circulando pelo lugar, sem qualquer compromisso.

    Arquivo pessoal
    Carta em que o Manoel de Barros confirma presença em evento em SP
    Carta em que o Manoel de Barros confirma presença em evento em SP

    Claro que concordamos, e foi uma alegria geral. Assim ganhei uma noite para apresentar um "workshop" sobre a peça concebida a partir da poesia de Manoel de Barros, "A Sedição das Palavras", por um grupo de teatro que existia perto da livraria do Bexiga, na escola do ator Wolney de Assis.

    Comentei com o amigo que me acompanhou quando fui buscar o poeta no aeroporto que estava preocupado com sua timidez. Mas chegando lá, Manoel de Barros nos esperava com uma mala, um quadro com uma pintura sobre sua poesia e uma sacola com as primeiras edições de seus livros para uma exposição no evento. Aí entrou no carro e não parou mais de falar. Conversamos tanto que chegamos a errar o caminho: ficamos perdidos na região do parque Trianon, andando com o poeta pelas calçadas da Paulista, carregando suas malas e procurando o hotel.

    Ele fez o que prometera, e nós tentamos cumprir suas condições. Mas o assédio era grande. Ele ficava andando pelo Masp, sem falar com imprensa nem participar de mesas. Mas achei que aquele acontecimento merecia um registro e procurei-o no hotel para convencê-lo a dar uma entrevista à TV Cultura -que escolhi porque dava espaço para poesia e poetas, argumento que usei para que ele cedesse.

    Ele cedeu, sob a condição de não falar com o "pau de ferro". Andaria com a jornalista pela Paulista e só conversaria com ela, sem gravação, enquanto seria filmado ao longe.

    Isso fizemos. Mas a jornalista deixou o gravador ligado. Num banco de praça, ele cedeu e leu um poema. Alertamos a jornalista de que ele detestava ser chamado de "poeta pantaneiro", pois isso folclorizava sua poesia. Apesar de a edição da reportagem ter começado justamente pelo epíteto, ele me telefonou para dizer que tinha gostado do resultado.

    Vídeo

    ALONSO ALVAREZ, 57, é editor e autor de "As Horas Claras" (Ficções) e "Era uma Vez Duas Linhas" (Iluminuras).

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