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    O que o Eurovision tem a ensinar sobre a Europa aos britânicos

    CHRISTINA PATTERSON
    DO "GUARDIAN"

    16/05/2014 13h00

    Colunista defende que alguém apresente os argumentos em favor da União Europeia

    Eu gostei das varas. Não estou falando das polonesas altas e esbeltas que estavam fazendo biquinho, dançando e até batendo leite imaginário, enquanto cantavam uma canção muito fofa. Não que as polonesas tenham me incomodado, ainda que eu tenha imaginado a certa altura que aquilo parecia o único trecho não pornô de um musical erótico. Mas as varas de que gostei são as das irmãs Tolmachevy. Não eram varas usadas como hastes de pole dancing. Eram varas usadas como baionetas, que pareciam estar dizendo "sabemos que vocês vão nos vaiar, e estamos prontas para reagir".

    Gostei dos rabos de cavalo, também. No começo, quando as gêmeas russas estavam cantando de costas coladas uma com a outra, só se via um rabo de cavalo. Mas assim que se distanciaram, lá estavam os dois. Foi como um país que fizesse parte de uma federação e subitamente se dividisse em dois. Não admira que Maria Yaremchuk, da Ucrânia, tenha cantado "tic-toc, você consegue ouvir meu tic-toc?" As irmãs Tolmachevy mantiveram o sorriso, mas era difícil não nos preocuparmos com o coração da rival quando elas cantaram "talvez um dia você seja minha".

    Tobias Schwarz/Reuters
    Donatan & Cleo, representando a Polônia, se apresentam na semi-final do Eurovision no dia 8/5
    Donatan & Cleo, representando a Polônia, se apresentam na semi-final do Eurovision no dia 8/5

    A sueca não foi mal, ainda que nem de longe tão boa quanto os suecos de 1974, cuja vitória fez minha mãe sueca nos levar para uma limonada R. White. Mas o vencedor deste ano não foi uma loira bonita. O vencedor deste ano, em um concurso assistido por centenas de milhões de pessoas, foi uma pessoa que usava vestido e barba.

    Quando Conchita Wurst venceu, com uma canção que todos compararam a um hino de James Bond, parecia, ao menos no Twitter, que a paz mundial havia irrompido. A vitória, disse Wurst, era "dedicada a todas as pessoas que acreditam em um mundo de paz e liberdade". Ela acrescentou: "Ninguém pode nos deter". Wurst tinha lágrimas nos olhos ao falar, e muitos dos telespectadores sentiam a mesma coisa ao assistir.

    Jonathan Nackstrand/AFP
    Conchita Wurst, representando a Áustria, canta "Rise Like a Phoenix" depois de ganhar o concurso
    Conchita Wurst, representando a Áustria, canta "Rise Like a Phoenix" depois de ganhar o concurso

    Não importa o que mais se possa dizer sobre um homem que se veste de mulher mas mantém a barba, não se pode acusá-la de falta de coragem. Wurst estava falando em nome de todas as pessoas que se sentem excluídas das correntes dominantes, e que precisam lutar para que suas vozes sejam ouvidas.

    Na verdade, ela não estava falando exatamente por todas essas pessoas. Por exemplo, não estava falando pela pessoa do Sunday People que postou um tweet dizendo: "Essa história de 'ela' é absurdo. É um homem".

    O tweet causou protestos e terminou apagado, mas resume o que muita gente pensa a respeito. Pode bem servir como resumo ao que Nigel Farage, o líder do Partido pela Independência do Reino Unido (Ukip), pensa. Ele declarou, em entrevista de rádio, que odiava completamente o Eurovision, e que achava que o Reino Unido jamais venceria por conta do "preconceito" europeu.

    Para muita gente neste país, o Eurovision é uma versão da Europa. É um mundo no qual muito dinheiro é desperdiçado com uma longa lista de frivolidades. É um mundo onde não se pode chamar as coisas pelos nomes que costumavam ser usados para elas, e no qual políticos com orçamento de 220 mil libras para contratar assessores perdem seu tempo regulamentando a forma das cenouras.

    Tobias Schwarz/Reuters
    Molly Smitten-Downes, representando o Reino Unido, canta "Children of the Universe" na final do 59º Eurovision
    Molly Smitten-Downes, representando o Reino Unido, canta "Children of the Universe" na final do 59º Eurovision

    É o tipo de mundo, de fato, que pode ser vislumbrado em "Mr and Mrs MEP and Their Helpers" ( Sr. e sra. Membro do Parlamento Europeu e seus ajudantes), um livro lançado no ano passado. O livro mostra um parlamentar europeu e sua mulher sendo apanhados por uma limusine. Quando o parlamentar quer enviar uma carta, um assistente lhe traz um envelope. O assistente em seguida entrega a carta a um mensageiro, que por sua vez a entrega ao carteiro. Em outras palavras, são necessárias quatro pessoas para mandar uma carta. O livro, aliás, não pretende ser sátira. É um livro infantil para colorir lançado pela União Europeia.

    Precisamos ser parte da Europa. É claro que precisamos ser parte da Europa. Precisamos disso por motivos comerciais e de negócios, se não por nada mais. Mas a maioria dos britânicos não tem a menor ideia do que a União Europeia faz de verdade. Noventa por cento de nós não consegue nem lembrar o nome do parlamentar europeu de seu distrito. E, se a União não se dá ao trabalho de nos informar, como poderíamos saber?

    Temo que não sejam as "drag queens do planeta" que se provarão "impossíveis de deter". O termo se aplicará, na verdade, a todas as pessoas que estão planejando votar nos políticos-piada que o Ukip apresentou, pessoas cujos nomes elas nem conhecem, pelo simples motivo de que estão de saco cheio. E vão agir assim porque ninguém apresenta bons argumentos em defesa da Europa. Alguém precisa apresentar bons argumentos em defesa da Europa. Alguém que não seja Nick Clegg (vice primeiro-ministro do Reino Unido, ex-membro do parlamento europeu), quero dizer.

    Não podemos dizer que não fomos avisados. Mesmo Wurst cantou que "fomos avisados". Resta esperar que o aviso não tenha chegado tarde demais.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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