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    Como Brasil e Itália levam a campo a arte do jeitinho

    PAOLO DEMURU

    25/05/2014 03h13

    RESUMO Na Copa do Mundo deste ano, Itália e Brasil podem se enfrentar nas quartas de final ou então na grande decisão. O estilo de jogo dos dois países se formou em campos opostos e espelha o comportamento nacional que representam; a "arte de se virar" da Azzurra, assim, confrontaria no gramado o futebol-arte canarinho.

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    Com seus quatro troféus, a única seleção que pode igualar o Brasil na Copa de 2014 é a Itália. Há duas possibilidades de as equipes se encontrarem: nas quartas de final ou na partida derradeira. Caso isso aconteça, estarão em jogo não apenas um histórico de nove títulos mundiais, mas duas filosofias futebolísticas e existenciais ao mesmo tempo opostas e convergentes.

    Era 5 de julho de 1982. No estádio Sarrià, em Barcelona, o atacante italiano Paolo Rossi decretava o fim de uma das eras mais prósperas do futebol brasileiro: aquela de Zico, Sócrates e Falcão, cuja memória desaguaria, no dia seguinte, na célebre imagem do menino chorando, na capa do "Jornal da Tarde".

    Rossi, o homem sem qualidades. Sua melhor descrição talvez deva ser atribuída ao dramaturgo siciliano Davide Enia, autor da peça "Italia-Brasile 3 a 2" (editora Sellerio, 2010): "Um cara que não sabe chutar de perna esquerda e nem de direita. Cabecear não é seu forte. Não cobra falta e não bate pênalti. Durante o jogo, parece não existir. Mas como se marca um jogador que não existe?".

    Ao lado de zagueiros como Claudio Gentile, o "Carrapato da Copa" de 1982, e Fabio Cannavaro, o "Muro de Berlim", campeão do mundo em 2006, Paolo Rossi é o símbolo do assim chamado "catenaccio", o estilo italiano de jogar futebol.

    Praticado na península desde o final dos anos 1940, o catenaccio -literalmente "correntaça", mas traduzível por "cadeadaço", que dá a ideia de uma forte tranca- baseia-se em dois princípios fundamentais: primeiro, não sofrer gols; segundo, surpreender.

    Deixa-se o adversário atacar, protegendo a qualquer custo a própria meta e, quando ele menos espera, aplica-se o golpe decisivo. Foi o que aconteceu em Barcelona naquela tarde de julho.

    O termo "catenaccio" foi criado nos anos 1950 por Gianni Brera (1919-92), jornalista esportivo que, segundo uma ilustre definição de Umberto Eco, era como uma versão "explicada ao povo" do escritor Carlo Emilio Gadda.

    Defensor intransigente dessa tática, Brera tinha muito claro por que os italianos deveriam adotá-la: subnutridos há muitas gerações, sem uma estrutura étnica definida, fisicamente inferiores -entretanto extremamente astuciosos-, esses "meios alpinos e meios mediterrâneos" só se poderiam permitir a retranca, seguida por certeiros contra-ataques.

    Porque no futebol não adianta seguir esquemas, modas ou tendências; no futebol valem mais os preceitos da índole e "as virtudes da especificidade cultural". O que, no caso dos "italianinhos", como Brera gostava de chamar os atletas da Azzurra, significava apostar tudo na manha, na esperteza.

    Graças às narrações de Brera, o "catenaccio" se firmou, na segunda metade do século 20, como a mais perfeita tradução do "jeitinho italiano": a tal "arte di arrangiarsi", a "arte de se virar", um estilo de vida enraizado na lógica do "sem frescura e direto ao ponto", emblema, para muitos, da capacidade inata dos italianos de obter sempre o melhor resultado possível diante das intempéries dos eventos e das ruínas da história.

    Aos poucos, os Rossi e os Cannavaro tomaram o lugar, no imaginário popular, dos grandes malandros da comédia à italiana: Alberto Sordi, Vittorio Gassman e Totò, dando vida nova aos estereótipos sobre a astúcia nacional e transformando o discurso sobre o futebol numa extensão do discurso cinematográfico do pós-Guerra.

    SONGA-MONGA

    Cidade do México, 21 de junho de 1970. O Brasil de Pelé e Tostão conquista o seu terceiro título mundial vencendo a Itália de Riva e Mazzola -derrotada, segundo Gianni Brera, por renegar o "catenaccio".

    Enquanto isso, TVs e jornais do mundo todo tocam o refrão do futebol-arte, típico, como todos sabem e contam, do modo de ser brasileiro. Um clichê cujos ecos remontam a 1938, ano em que Gilberto Freyre publica no "Diário de Pernambuco" o seu artigo "Football mulato", destinado a mudar as futuras narrações sobre o futebol e o caráter nacional.

    Definido como uma espécie de dote natural, o jeito brasileiro de jogar tornava-se a expressão do nosso "mulatismo flamboyant", que se delicia de "floreios artísticos" e "manhas moleironas".

    Um estilo batizado pelo sociólogo de "arte do songa-monga", que, num ensaio de 1982, o antropólogo Roberto DaMatta teria apontado, seguindo os rastros de seu predecessor, como o mais claro reflexo da "arte da malandragem" tropical: um talento que consiste em saber se safar "nas situações mais difíceis, fazendo isso com uma alta dose de dissimulação e elegância".

    Como a do "catenaccio", a interpretação do futebol-arte surge de uma reflexão sobre o temperamento nacional. Ambos são descritos como o espelho de formas de vida aparentemente parecidas, fundadas na astúcia: a arte de "arrangiarsi" e a arte da malandragem.

    Há, porém, nos discursos sobre os dois estilos -de jogar e de viver-, importantes diferenças. O saber "arrangiarsi" é apresentado como uma arte prática e concreta. Dentro ou fora de campo, a improvisação é sempre direcionada ao resultado. Como dizia Brera: "Ganhemos, e que se dane a estética".

    A malandragem, ao contrário, é guiada pela busca do belo e pelo gosto do excesso. Com ou sem a bola, o malandro brasileiro, para retomarmos as palavras de Freyre e DaMatta, não é apenas aquele que "se vira", mas é quem o faz de modo vistoso e elegante. É a mesma "astúcia pela astúcia" praticada por Leonardo em "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida (1852), da qual fala Antonio Candido em seu clássico ensaio "Dialética da Malandragem" (1970).

    Diferentemente de outras figuras do folclore popular que lembram o tipo ideal do atleta italiano -como os pícaros de tradição ibérica, cujos expedientes visam simplesmente o lucro e a resolução de problemas concretos-, Leonardo e os ícones do futebol-arte fogem do pragmatismo e abraçam a gratuidade e o supérfluo como paradigma de conduta.

    O melhor exemplo dessa postura existencial foi, sem dúvida, Garrincha, jogador -como conta Mario Filho em seu livro "O Negro no Futebol Brasileiro" (1947)- capaz de driblar o inteiro time adversário e esperar a volta de outro zagueiro "para tirá-lo de baixo dos três paus com outro drible".

    PROSA X POESIA

    As diferenças entre os dois estilos não se resumem, no entanto, a esse aspecto. Se a astúcia italiana é racional e focada no intelecto, a brasileira é instintiva e centrada no corpo.

    As histórias sobre a primeira insistem na necessidade do cálculo, da análise prévia das forças próprias e alheias.

    Conscientes de sua inferioridade, os italianinhos brerianos permanecem na sombra, estudando o inimigo e esperando o momento propício para matar o jogo: cada gesto, mesmo o mais inesperado, é medido e calibrado.

    Nesse sentido, o Paolo Rossi das crônicas esportivas retoma os passos de outro arquétipo da italianidade: Sasà Scimoni, protagonista de um filme de Luigi Zampa interpretado por Alberto Sordi e intitulado, não por acaso, "L'Arte di Arrangiarsi" (1954).

    Como o atacante, Sasà se esconde e dissimula: finge-se louco para fugir do Exército e disfarça-se de fascista, comunista e cristão para atravessar ileso as reviravoltas políticas e econômicas do século 20.

    De maneira oposta, as narrativas sobre o futebol e a malandragem dos brasileiros perseveram na celebração da intuição sensível e da astúcia corpórea.

    É o caso de Nelson Rodrigues, que descreve assim o estilo de Garrincha: "Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto"; ou, ainda, de uma antiga propaganda da Brahma, que apregoava que a "ginga nacional" não era apenas uma série de movimentos que visavam "enganar o adversário" mas também uma "filosofia de vida que combina a criatividade com a instintividade", para encarar o dia a dia "com brilho e sem esforço". Dito de outro modo, no Brasil, as astúcias do corpo viraram astúcias do ser.

    Tomando emprestadas as categorias do historiador de arte Heinrich Wölfflin, é possível afirmar que, nessas histórias de índole e futebol, a malandragem brasileira é uma astúcia barroca, dominada pelo virtuosismo, pelos floreios e pelo prazer lúdico do jogo-em-si, enquanto a malandragem italiana se definiria como uma astúcia clássica, linear, sóbria e realista.

    Ou, como disse Pier Paolo Pasolini, numa já célebre formulação, os italianos jogam (e vivem) "em prosa" e os brasileiros jogam (e vivem) "em poesia".

    Se um dos dois estilos levará a melhor no próximo mundial, porém, é uma história a ser narrada daqui a poucas semanas.

    PAOLO DEMURU, 32, doutor em semiótica pela Universidade de Bolonha e pela USP, pesquisa relações entre futebol e cultura. É autor do livro "Essere in Gioco. Calcio e Cultura tra Brasile e Italia" (Bononia University Press).

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