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    Silviano Santiago processa verdade e invenção em novo livro

    ALVARO COSTA E SILVA

    08/06/2014 03h07

    RESUMO "Mil Rosas Roubadas", novo livro do crítico literário e ficcionista, é um romance "à clef" baseado na amizade de toda a vida entre o autor e o produtor cultural Ezequiel Neves. Em entrevista à Folha, escritor aborda a mescla entre realidade e ficção, fala da biografia como gênero e comenta a literatura brasileira atual.

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    "Bispo Macedo da música popular brasileira": assim Zeca chamava o compositor Renato Russo, de cujas letras "debochava". A inconfidência é coletada, de forma "não autorizada", pelo biógrafo do produtor cultural em "Mil Rosas Roubadas" [Companhia das Letras, R$ 42,50, 280 págs.], novo romance de Silviano Santiago.

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    Mil Rosas Roubadas
    Silviano Santiago
    Mil Rosas Roubadas
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    O exagerado Zeca -que "não tinha como escapar, ao dobrar da esquina, da inevitabilidade dos paraísos artificiais"- é explicitamente calcado em um personagem de carne e osso: Ezequiel Neves, morto em 2010, aos 74 anos.

    Jornalista musical da cena underground nos anos 1970 que assinava seus artigos como Zeca Jagger (pela adoração que professava aos Rolling Stones) ou Angela Dust (em referência ao "angel dust" ou pó de anjo, droga sintética pesadíssima, em voga na época), letrista, descobridor e produtor do Barão Vermelho, parceiro e mentor de Cazuza, Ezequiel conheceu Silviano em Belo Horizonte, quando ambos tinham 16 anos. Foram amigos íntimos até o fim da vida.

    "O emblemático no Ezequiel era menos o desespero e o deboche e mais ter instituído formas de comportamento para a juventude, o que ele começou a fazer ainda no tempo em que nos conhecemos. O que fez na imprensa alternativa e no rock do Brasil ele já havia feito antes, quando era um garoto de província", afirma o escritor.

    O narrador em primeira pessoa do livro, salpicado de referências culturais, tem muito ou quase tudo de Silviano Santiago, 77, um dos mais astutos críticos literários do país, a par de realizar uma obra ficcional de experimentação.

    "O conflito no romance oscila entre o enrustido e o desbundado, entre o funcionário público assalariado com aposentadoria garantida e o ator que sobrevive com a bilheteria diária e vive num apartamento em sistema de comodato, entre o universitário bem posto na vida e o artista que vive como agregado. No fundo, "'Mil Rosas Roubadas' é um livro sentimental", define o escritor.

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    Folha - O romance propõe um jogo ao leitor: o da verdade na ficção. O que é falso e o que é verdadeiro?
    Silviano Santiago - O romance -ou a obra de arte- ludibria as categorias opostas e excludentes de verdade e de mentira para nos retirar do ramerrão de uma visão de mundo precária de ética. A verdade é a obra de arte enquanto tal.

    Romancista algum pede ao leitor para assimilar a verdade como se ela viesse da boca de jurista íntegro. Tampouco lhe pede para acreditar na mentira tal como dita por boquirroto. O romance é descendente da técnica da meia-tinta na pintura. Leonardo da Vinci lembra que, "para desenhar em relevo, os pintores devem aplicar uma meia-tinta sobre a superfície de um papel de modo a localizar as sombras mais escuras e depois o lugar das luzes principais". O romancista aplica a meia-tinta a um tema polêmico para localizar melhor as sombras mais densas e acentuar o lugar inquietante em que pode jogar a luz reveladora. Compete ao leitor, e só a ele, afiançar, abonar ou não, a verdade naquela ficção e a vida naquela mentira.

    "O Falso Mentiroso" e "Histórias Mal Contadas" levam a experiência da "meia-tinta" ao extremo. O novo livro se aproxima também de "Em Liberdade" e "Viagem ao México", por ser um romance narrado em forma de biografia, quase um pastiche do gênero. Em que ponto se situa "Mil Rosas Roubadas"?
    Como a maioria dos romancistas, sou um falso mentiroso. Ao dizer que, como autor, minto, é porque digo a verdade da "ficção", da literatura. Uso e abuso dos dados acontecidos que me são oferecidos pela minha experiência de vida (autobiografia) e pela experiência de vida das pessoas que conheço (biografia). Ponho-os a trabalhar no liquidificador da prosa literária e, no processo de estilização, escorrem mil rosas roubadas.

    O romance se assemelha aos exemplos dados porque, afinal, foram escritos pelo mesmo autor. No entanto deles se diferencia porque eu nunca tinha sido tão confessional. Ou seja, sempre deixava os dados biográficos ocuparem o lugar de honra. Agora, não.

    O narrador se pergunta se todo biógrafo "não será monstruoso por definição?". Qual sua avaliação do gênero biográfico?
    Biografia é um gênero em si. A autobiografia também. O romance -pelo menos desde Daniel Defoe, passando por Gustave Flaubert e Machado de Assis- usou o gênero biografia ou autobiografia como suporte. Suporte é como a moldura que envolve uma tela. Mas a tela/romance não se confunde com o suporte/biografia. O estilo, os recursos retóricos, os efeitos buscados etc., são outros e diferentes. Se o romance for escrito na terceira pessoa, tem como suporte a biografia ("Madame Bovary"). Na primeira pessoa, a autobiografia ("Dom Casmurro").

    Meu narrador é um biógrafo autobiógrafo, ou vice-versa. É uma figura monstruosa: duas cabeças e um só olho. Acredito, no entanto, que a imagem estrambótica revela os truques (de estilo, retóricos etc.) de qualquer biógrafo. É impossível escrever uma biografia que não seja minimamente autobiográfica. Elevei a contradição entre a terceira e a primeira pessoa ao extremo. Para tal, usei o gênero romance.

    Qual é sua opinião sobre a produção biográfica no Brasil?
    Aclaremos antes um ponto. Se o romance tem como suporte o gênero biográfico ou autobiográfico, a biografia tem como suporte o verbete enciclopédico. Tenta narrar os fatos particulares das várias fases de uma vida real. De maneira objetiva, ela dá nome aos bois.

    Ao contrário da enciclopédia, que encontra no estilo enxuto e conciso sua redenção, os parâmetros da escrita biográfica tendem a ser ditados pela diversidade do jornalismo moderno. Algumas têm como herança o bom jornalismo que herdamos do antigo "Diário Carioca". Outras têm como modelo os escandalosos tabloides ingleses. Outras mais têm como modelo "Contigo" ou "Caras". Há de tudo.

    No novo milênio, o crítico mapeia. Indica o que pode ser aquilo que é e o que pode ser aquilo que parece ser. Assim sendo, diz que há filmes recentes mais interessantes para a discussão sobre a biografia: "Madame Satã", de Karim Aïnouz, "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, e "Capote", de Bennett Miller. Aprendam com eles, futuros biógrafos.

    Seu narrador é um historiador. Isso o afasta do biógrafo, digamos, mais ligado à produção jornalística?
    De modo algum. O narrador é historiador porque, enquanto personagem, tinha de ser historiador.

    Paradoxalmente, ele se revela mais emotivo e mais apaixonado que o artista. Seria ele o verdadeiro artista? Seus conflitos são também o alicerce para um dos capítulos mais importantes do romance, "Estilo". A questão do estilo, a meu ver, é a principal do gênero romance, questão muitas vezes escamoteada no gênero biografia. Com que estilo o narrador de biografia ou de romance (pouco importa o gênero) escreve a vida de outra pessoa bem diferente dele?

    Como analisa a chamada polêmica das biografias não autorizadas?
    A moda da biografia seria alguma coisa a mais que o sinal dos tempos? O gosto do leitor pela biografia é, por um lado, tão contemporâneo quanto a internet e o Google e, por outro, está tão enraizado na sociedade pós-1968 quanto o narcisismo. Combine os dois.

    No retângulo designado à pesquisa no Google, insira o nome de político com importância no cenário nacional. Acompanhe-o da palavra narcisismo. Não há livro, jornal, revista, site, ou blog que não lhe forneça rico material para uma biografia. Em seguida, insira o nome de figura notória das artes e dos esportes. Não será diferente o resultado. Na sociedade midiática e informatizada, o narcisismo ata o político à figura notória e, ao definir a ele e a ela como celebridade, os individualiza e os entrega de bandeja aos biógrafos, de JK a Roberto Carlos e a Paulo Coelho.

    E a literatura brasileira, de maneira geral, como anda?
    No momento, é de qualidade mediana. Alguém vai pular. Dos que estão tentando esse salto, acho Michel Laub o melhor. Se ele vai conseguir, ninguém sabe.

    De que maneira se revela, em "Mil Rosas Roubadas", o peso da tradição literária brasileira, que transparece em sua obra ficcional?
    Desta vez sentei-me com mais prazer à mesa da literatura mineira. Ela produziu os mais instigantes romances "à clef", ou seja, aquela prosa literária que transita com coragem e galhardia entre as pessoas do cotidiano do autor.

    Lembro dois nomes: Cyro dos Anjos, com o notável "O Amanuense Belmiro", e Fernando Sabino, com o sempre moderno e atual "O Encontro Marcado". Quem não reconhece os quatro cavaleiros do Apocalipse (Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e ele próprio) na trama do romance de Sabino? Não ouso citar Guimarães Rosa, mas deveria. Aliás, o toque não é privilégio dos romancistas. Nosso poeta maior, Carlos Drummond, termina sua brilhante carreira de poeta com os livros "Boitempo", "Menino Antigo" e "Esquecer para Lembrar".

    Não escondo o fato de que minha tese de doutorado foi sobre André Gide. Não é difícil reconhecer no romance "Os Moedeiros Falsos", Jean Cocteau, Tristan Tzara etc. Mas a leitura única do romance pelas carteiras de identidade é pobre, evidentemente.

    Hoje o entretenimento venceu?
    Não compete ao crítico de literatura e das artes ser censor. Compete-lhe mapear o estado atual da produção cultural, seja no Brasil, seja no estrangeiro. Diante da realidade que é a nossa cotidiana, estamos felizes por saber que as classes C e D entram no mercado de consumo. Natural que o entretenimento passe a ser o pão nosso de cada dia.

    Mais do que ao crítico cultural, compete ao educador -em qualquer nível da escola- ser a bola da vez. Ele é que deve vencer a parada. Não o artista. Este deve evitar a todo preço a solução de continuidade que poria ponto final no curto e notável percurso da arte brasileira. No mais, é tirar da manga a carta de Oswald de Andrade: a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico. Utopia por utopia, por que não apostar também na utopia artística? Eu e muitos apostamos.

    ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 51, é jornalista.

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