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    Nas profundezas da Amazônia, uma aldeia isolada assiste à Copa do Mundo

    JERÉ LONGMAN
    DO "NEW YORK TIMES", EM MANAUS

    27/06/2014 13h01

    O PP Maués não zarparia por ainda uma hora, mas seus conveses longos e estreitos já estavam entrecortados de redes para a longa viagem noturna pelo rio Amazonas.

    No horário previsto de chegada ao porto regional do qual leva o nome, cedo na manhã da segunda-feira, o barco estaria a 15 horas de distância do estádio da Copa do Mundo mais próximo.

    Um segundo barco seria necessário para chegar a uma aldeia indígena ainda mais remota, que planejava assistir a Brasil e México na terça-feira (17). A aldeia não tem eletricidade e não recebe sinais de telefonia móvel, e teria de depender de um gerador a diesel para saciar sua paixão isolada pelo futebol.

    Embora o Rio de Janeiro e suas famosas praias sirvam de pano de fundo turístico para a Copa do Mundo, o apego febril ao mais popular evento esportivo do planeta se faz sentir até em algumas das áreas mais isoladas da floresta tropical brasileira, raramente visitadas por forasteiros.

    "O futebol está no nosso sangue", diz André Pereira da Silva, 32 –chefe de uma pequena comunidade de índios sateré-mawé em Manaus–, que estava servindo como guia em nossa viagem. O destino pretendido era sua aldeia de origem, Monte Salém, uma das cerca de 150 comunidades sateré-mawé, com um total de 11 mil moradores, que se estima existir no curso do Amazonas.

    Mauricio Lima/The New York Times
    Índios sateré-mawé assistem ao jogo do Brasil contra o México em Nova Belo Horizonte
    Índios sateré-mawé assistem ao jogo do Brasil contra o México em Nova Belo Horizonte

    "Espere só para ver", disse Pereira da Silva. "Você vai imaginar que está no meio das estrelas".

    Quando menino, em Monte Salém, ele fazia bolas de futebol com seiva de seringueiras, usando um graveto para dar forma a uma esfera improvisada, e ocasionalmente incontrolável.

    "Dez árvores para uma bola", diz Silva, que tem os espessos cabelos presos em um rabo de cavalo e estava sentado no apertado refeitório do barco em companhia de seu filho pequeno, no domingo. "O problema é que elas pulavam demais".

    No convés superior do barco, os romances sentimentais da música brega ecoavam vindos de dois grandes alto-falantes. Havia mais de 300 passageiros à bordo de uma embarcação de metade do comprimento de um campo de futebol. As crianças brincavam entre as redes e a bagagem ou contemplavam a água para além da amurada. Alguns passageiros carregavam televisores antiquados ou modelos mais modernos de telas planas ainda nas caixas. Na proa do barco, uma nova máquina de lavar e refrigerador estavam amarrados um ao outro, como se fossem clandestinos aprisionados e expostos à reprovação dos passageiros.

    A maioria dos passageiros estava deitada nas redes, dormindo, lendo, ouvindo música ou jogando alguma coisa em seus smartphones. Alguns acompanhavam nas pequenas telas dos telefones o início da partida de estreia de Lionel Messi e sua Argentina contra a Bósnia-Herzegóvina.

    O jogo também estava passando, com imagens bem borradas, em um pequeno televisor na cozinha do barco. Dois homens estavam sentados em banquinhos assistindo, e dois outros contemplavam da porta, enquanto o cozinheiro preparava uma sopa espessa de orzo, carne e cenouras.

    "Messi está lento hoje", disse Rodrigo Xavier, 26. "Não está jogando bem".

    Xavier, torcedor do Brasil, parecia estar muito satisfeito com isso.

    Minutos mais tarde, Messi passou a bola e a recebeu de volta em uma tabela rápida. Entrou na área driblando dois defensores, que trombaram e caíram por trás dele. Aproveitando o espaço aberto com a jogada, ele disparou uma pancada que bateu na trave esquerda antes de estufar as redes. Xavier sorriu. Jogadas assim fazem com que Messi seja considerado o melhor jogador do mundo. Mesmo um brasileiro precisa admitir sua admiração.

    A cozinha se esvaziou subitamente. O barco não tem antena parabólica, e as antenas de TV perderam contato com o sinal de Manaus. Paulo José, o dono do barco, ficou sozinho, comendo em silêncio. O que não pareceu incomodá-lo.

    "Não gosto de futebol, nem um pouco", disse José. "Sou diferente da maioria dos homens".

    Surgiu uma lua quase cheia, derramando uma coluna de luz na direção do barco. Um homem apontava com a lanterna para a água, em busca de jacarés e de seus olhos que brilham como brasas. As estrelas pareciam tão brancas e tão próximas quanto as flores que pendiam das árvores como bolas de sorvete.

    A manhã de segunda-feira raiou fria e nublada. Havia relâmpagos no horizonte. Veio a chuva, e rolos de plástico azul foram estendidos por sobre o convés para manter secos os passageiros.

    "Está chovendo porque os ingleses estão aqui", na Copa do Mundo, disse Pereira da Silva, rindo.

    Por volta das 8h, só restava a garoa quando o barco chegou a Maués, um pequeno porto regional onde uma planta rica em cafeína, chamada guaraná, é processada para uso em refrigerantes, bebidas energéticas e chás de ervas. O barco foi recebido com fogos de artifício. Pescadores remavam em suas canoas na direção do mercado, com suas geladeiras de isopor repletas de peixes de caudas listradas.

    Nas ruas próximas às docas, uma frota de motocicletas exibia bandeiras do Brasil. Os mais habilidosos ou descuidados dos motociclistas guiavam com uma mão e seguravam um guarda-chuva aberto com a outra. As lojas vendiam bolas de futebol, chapéus, cornetas plásticas e camisas de Neymar, o jovem astro do ataque brasileiro.

    Alguns homens usavam camisas de grandes clubes do futebol brasileiro –Vasco da Gama e Flamengo–, alianças formadas nos anos 50 e 60, quando os únicos sinais de rádio que chegavam a Maués vinham do Rio, a mais de 2,5 mil quilômetros.

    Alguns adolescentes estavam usando versões pessoais do característico moicano de Neymar, que o jogador às vezes tinge de loiro.

    Neymar marcou dois gols na partida de abertura brasileira contra a Croácia, mas Pereira da Silva não estava certo de que o jogador estivesse preparado para a Copa do Mundo.

    "Ele precisa de mais experiência; precisa lutar um pouco mais", disse Pereira da Silva. "Só está interessado em seu cabelo dourado. Essa é a história dos jogadores hoje. Querem ser bonitos".

    Pereira da Silva estava carregando um grande saco de roupas para dar ao chefe de Monte Salém ou trocar por sementes para fazer gargantilhas e braceletes. Ele se encontraria com seu pai e mãe em Maués, e eles viajariam conosco para a aldeia de origem da família. Era esse o plano, ao menos. Mas havia um problema. O gerador de Monte Salém estava quebrado.

    "Argentina", disse Pereira da Silva, com um sorriso brincalhão, encontrado um bode expiatório conveniente. "A Argentina quebra tudo".

    Depois de um desjejum de sopa com molho apimentado, ele encontrou outra aldeia com um gerador operacional. A aldeia se chama Nova Belo Horizonte. A viagem para lá de Maués demoraria cerca de 75 minutos, de lancha. Na metade da tarde de segunda-feira, o calor equatorial era escaldante, mas os pais de Pereira da Silva estavam gritando "waku sese", quando o barco atracou. Tudo está realmente bem!

    Nova Belo Horizonte abriga 22 famílias, a maioria das quais vivendo em casas de madeira com tetos de palha. Um campo de futebol rudimentar, com traves de madeira e sem redes, foi criado na aldeia; as pedras foram removidas e o terreno aplainado no meio das plantações de guaraná, abacaxi, laranja, banana, pimenta e mandioca –esta última o alimento básico da região.

    Os times masculino e feminino da aldeia estão participando pela primeira vez de um torneio regional nos Jogos Indígenas brasileiros. Há uma partida importante do time masculino marcada para o domingo. O ganhador do torneio receberá US$ 1,5 mil, o que cairia bem para uma aldeia que, como outras comunidades indígenas, vem tentando proteger as terras tradicionais contra o desenvolvimento intrusivo e o que eles veem como indiferença do governo.

    Os serviços de saúde são distantes e inadequados, dizem os líderes da aldeia. Não existe contato permanente por rádio com Maués, a central regional que fica a quatro ou cinco horas de distância em barcos convencionais. Os celulares não funcionam.

    A escadaria da entrada da escola desabou, e há vazamentos no telhado. Não se pode realizar aulas noturnas para os estudantes mais velhos durante a Copa do Mundo, dizem moradores locais, porque os funcionários públicos da área parecem ter entrado em férias. Apenas uma fração do óleo diesel necessário a manter em funcionamento o gerador da comunidade foi fornecida.

    "Eles só querem os nossos votos", diz Luis Sateré, 56, pai de Pereira da Silva, coordenador comunitário dos sateré-mawé. "É a única coisa que importa".

    No entanto, mesmo que os gastos com os estádios da Copa do Mundo pareçam perdulários em um país com tantas necessidades, era importante que o torneio estivesse voltando ao Brasil pela primeira vez desde 1950, disse Reginaldo da Silva Andrade, 27, chefe de Nova Belo Horizonte.

    "O povo brasileiro é aquele que mais ama e mais assiste futebol no planeta", afirmou Silva Andrade.

    Em Nova Belo Horizonte, o futebol serve a muitos propósitos: diversão, exercício, forma de evitar conflitos e de escapar ao álcool e às drogas. Também oferece uma chance de contato social com outras aldeias ribeirinhas. As equipes viajam de barco, e os torneios muitas vezes vêm acompanhados de festivais.

    Mais importante que o dinheiro que os Jogos Indígenas propiciam, diz Silva Andrade, é a chance de "mostrar às pessoas de fora que somos capazes de fazer isso". Ele acrescenta que "estamos realizando os nossos sonhos. As pessoas acham que a gente não sabe jogar. Temos de mostrar a eles".

    Na terça-feira, quando o Brasil enfrentou o México, todas as aulas foram canceladas, em Nova Belo Horizonte. Será a mesma coisa sempre que o Brasil jogar. Ao nascer do sol, as mulheres da aldeia começaram a apanhar água no poço, carregando baldes nas cabeças. As crianças logo saíram de suas casas para jogar bola. Os goleiros usavam chinelos de dedo nas mãos para amortecer a força dos chutes.

    Dois meninos pequenos jogavam com uma bola feita de sacos plásticos, papel e uma camiseta sem manga. Um deles conseguiu desviar a bola do adversário e gritou "gooool!" O gerador acordou com um rugido, para testar o televisor na casa do chefe. O televisor ligava e desligava sem parar.

    É comum repetir a história de que o futebol chegou ao Brasil no final da década de 1890, quando um homem chamado Charles Miller voltou da escola, na Inglaterra, trazendo duas bolas de futebol na mala.

    Mas os índios pareci já faziam bolas com o látex das seringueiras e as usavam para um jogo chamado zicunati, no qual a bola só podia ser tocada com a cabeça, relata o escritor britânico Alex Bellos em "Futebol - O Brasil em Campo" (Zahar).

    Um indígena cujo apelido era "Índio" ajudou o Brasil a se classificar para a Copa do Mundo de 1958, o torneio que apresentou Pelé ao mundo, segundo Bellos. No final dos anos 90, José Sátiro do Nascimento, um lateral que quando menino às vezes usava cocos como bolas, se tornou o primeiro indígena a ganhar vaga como titular em um dos grandes times brasileiros, o Corinthians, de São Paulo. Em 2009, um time profissional formado por jogadores indígenas foi criado no Estado do Pará.

    Entre os sateré-mawé, as mulheres podem jogar livremente, o que nem sempre é o caso na cultura mais ampla do futebol latino-americano, conhecida pelo machismo. Uma equipe feminina de Manaus, porta o nome do ritual de iniciação no qual os meninos da tribo se tornam homens depois de suportar múltiplas mordidas de formigas venenosas.

    Quando o Brasil enfrentou a Croácia na abertura da Copa, Janildzes Michiles, 28, disse que fez anotações, se concentrando no trabalho defensivo do cabeludo David Luiz.

    "É uma maneira de mostrar que as mulheres podem fazer o mesmo que os homens", disse Michiles.

    Na noite de segunda-feira, quando o gerador de Nova Belo Horizonte funcionou por um par de horas, Michiles assistiu à vitória dos Estados Unidos contra Gana por dois a um. Ela diz que Gana parecia ter jogado melhor, pressionando com mais consistência.

    "Os americanos corriam bastante para manter a posse de bola, mas precisam ser mais rápidos", ela disse. "Pareciam lentos".

    No começo da tarde de terça, Nova Belo Horizonte recebeu homens e mulheres de uma aldeia vizinha, Brasileia, para dois amistosos. Os visitantes chegaram em barcos decorados com fitas verdes e amarelas e anunciaram a chegada soprando apitos.

    A equipe masculina e a feminina de Basileia saíram ambas vencedoras por três a um, em um calor sufocante. Depois que Rariani da Silva Andrade terminou a partida feminina pelo time das visitantes, emprestou a chuteira direita ao marido, Isaias Oliveira Gomes, cujo pé esquerdo continuou descalço. "Ele está com o dedão machucado", ela explicou.

    A derrota nos amistosos não reduziu o entusiasmo de Nova Belo Horizonte pela partida do Brasil contra o México na Copa do Mundo. Alguns moradores assistiram de suas casas. Outros 20 se reuniram na cozinha a céu aberto da casa do chefe. Alguns usavam cocares festivos feitos de folhas de palmeiras. Um assado de galinha acompanhado por farinha foi servido aos visitantes. Onze minutos depois do início do jogo, a televisão começou a funcionar.

    "Vamos assistir e aprender", disse Silva Andrade, o chefe da aldeia.

    Neymar logo ameaçou o gol adversário com uma cabeçada, mas o goleiro mexicano Guillermo Ochoa saltou e desviou a bola para fora. No final do primeiro tempo, o jogo continuava empatado.

    "Vou jogar pelo Brasil no segundo tempo", brincou Silva Andrade.

    Quando o jogo recomeçou, Ochoa se manteve inexpugnável. Desviava bolas com as mãos e as pernas. Seu posicionamento e suas reações eram impecáveis. A frustração crescia entre os espectadores de Nova Belo Horizonte.

    Um papagaio começou a grasnar diante da ansiedade das vozes. Uma mulher apertava fortemente suas contas da sorte. Michiles tinha o rosto escondido entre três folhas de parreira. No minuto final do tempo regulamentar, o placar continuava zero a zero. E aí o televisor se desligou.

    Voltou por um instante e depois se desligou outra vez, enquanto o jogo se estendia por mais três minutos de acréscimos.

    "A TV está assustada", disse Geovani Miranda, outro dos moradores locais, rindo.

    A tela escureceu de novo. Quando as imagens voltaram, o treinador brasileiro Luiz Felipe Scolari estava dando sua entrevista pós-jogo. Por alguns segundos, houve incerteza em Nova Belo Horizonte. Depois surgiu a confirmação. O placar final foi de zero a zero, em uma tarde de intrigas e oportunidades perdidas.

    Quando Pelé apareceu na tela para oferecer sua análise, o televisor saiu do ar de novo. E tudo bem.

    "Não quero ouvir desculpa nenhuma. Não quero ouvir como tudo teria sido diferente se Pelé estivesse jogando", disse Pereira da Silva, com uma voz na qual já não se ouvia humor. "Nem a TV quer ouvir o que ele tem a dizer".

    Poderia ter sido pior. Pelo menos o Brasil não perdeu. Em Nova Belo Horizonte, a seleção da casa continua favorita para vencer a Copa do Mundo.

    "O Brasil é lutador", disse Luiz Sateré, o pai de Pereira da Silva, que estava usando uma camisa de Neymar. "O Brasil é guerreiro".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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