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    O direito a ser esquecido fará da internet uma obra de ficção

    DAVID MITCHELL
    DO "OBSERVER"

    13/07/2014 03h55

    O direito das pessoas a suprimir mentiras desagradáveis contadas em público não deveria se estender à supressão de verdades desagradáveis

    Todos nós morreremos e todos nós seremos esquecidos, no fim. Porque continuo a não ser sofisticado o bastante, isso ainda me entristece. Mas a sociedade parece bastante estoica a respeito, para dizer o mínimo. Hoje em dia, milhares de pessoas estão em campanha pelo "direito a morrer" e pelo "direito a ser esquecido", como se estivessem genuinamente preocupadas com a possibilidade de que isso de outra forma não viria a acontecer.

    O que nossos descendentes pensarão sobre isso? "Caramba, esses caras insistiam em ser negativos. O que mais eles queriam? 'O direito à automutilação'? 'O direito à humilhação?' 'O direito à decomposição'? 'O direito de uma pessoa que odiavam aparecer em seus enterros e dizer a todo mundo que o defunto sempre gostou dela?'" Seria perdoável que os futuros historiadores viessem a concluir que toda a nossa era sofria de depressão clínica.

    E a realidade é que os historiadores do futuro terão de ser perdoados por pensarem o que quer que seja que venham a pensar, porque estamos a ponto de lhes negar o acesso a informações confiáveis. Em maio, quando o Tribunal Europeu de Justiça sustentou o conceito do direito de um cidadão "a ser esquecido" online, a decisão parecia em geral razoável. É agradável que uma pessoa possa deixar seu passado para trás. Todo mundo comete erros –mas a Internet faz deles tatuagens virtuais, marcas indeléveis de nossos momentos tolos, acessíveis para qualquer um que use um Google Glass.

    Por que algumas fotos tiradas em um momento de embriaguez deveriam poder impedir os solenes esforços de alguém para se tornar contador, freira, ou parlamentar pelo Partido Conservador? Nem todo mundo que se veste de nazista é nazista de fato. Ou continua a ser nazista. Veja o caso de Richard Burton e Clint Eastwood em "Desafio das Águias" –eles não eram nazistas nem dentro do filme!

    O tribunal não ordenou que as verdades desagradáveis sobre as pessoas fossem removidas dos sites em que estão acessíveis –determinou apenas que, se alguém assim solicitar, os serviços de busca removam os links para esses sites que surgem como retorno em buscas contendo o nome do solicitante. Tudo isso começou porque um homem espanhol, Mario Costeja González, está há anos tentando suprimir a embaraçosa verdade de que em 1998 sua casa foi leiloada para pagar as dívidas dele com a previdência social.

    Ele pode ter vencido o processo, mas é difícil imaginar de que maneira ele poderia ter fracassado mais com relação ao seu objetivo original. Nada sei sobre ele exceto o fato de que sua casa foi penhorada e leiloada para pagar suas dívidas com a previdência. Na realidade, não consigo lembrar, de primeira, de nada mais que tenha acontecido em 1998. Recorrendo ao Google, descubro que naquele ano Geri Halliwell deixou as Spice Girls, um possível passo na direção errada para sua carreira que ela agora pode estar pensando em esconder com a ajuda da Justiça. Mas já parece menos provável que a posteridade recorde esse fato do que o confisco da casa de González, que graças aos esforços dele pode vir a ser o último evento da história humana a ser reportado confiavelmente online.

    Você talvez esteja imaginando que minha reação é um tanto histérica. Afinal, o tribunal especificou que o direito a ser esquecido não se aplica, "se parecer, por qualquer motivo especial, como o papel desempenhado pela pessoa em questão na vida pública, que a interferência em seus direitos fundamentais se justifica pelo interesse preponderante do público em geral". (Pow! Obrigado, tribunal europeu! Quase cheguei ao tamanho de texto que preciso!) Mas na semana passada surgiram sinais preocupantes de que essa exceção não está funcionando. Na manhã da quarta-feira, o Google informou à BBC que, quando responder a "certas buscas", não fornecerá mais um link para um post de blog de Robert Peston em 2007.

    Foi uma informação tão alarmante quanto intrigante, como se fosse um problema de palavras cruzadas preso a uma bomba. O post nem menciona Geri Halliwell. Menciona só uma pessoa: Stan O'Neal, antigo presidente do Merrill Lynch demitido por quase arruinar o banco com suas operações envolvendo títulos tóxicos. Mas não foi O'Neal que solicitou a supressão do artigo. De acordo com Peter Barron, diretor de comunicações do Google no Reino Unido, "foi um membro comum do público que tinha feito um comentário no blog de Robert", e ele nos reassegurou de que "se você fizer uma busca por Merrill Lynch o blog continuará a aparecer. Se você buscar Stan O'Neal também. Só em buscas contendo apenas o nome do comentarista individual que solicitou a exclusão o blog não aparecerá".

    Li os comentários, e minha aposta era a de que o solicitante devia ser Oren Vinishavsky, cujo comentário é racista, mas o post continua a aparecer nos resultados de busca caso você digite o nome dele. Recorrer ao Google para pesquisar diversos outros nomes (por exemplo Peter Abatan e Derek Farmer, cujos comentários nada têm de ofensivo) traz uma página com uma notificação: "Alguns resultados podem ter sido removidos por conta das leis europeias de proteção aos dados". Assim, talvez o solicitante seja uma dessas pessoas cujos nomes pesquisei, ainda que eu não consiga entender o motivo. Talvez o culpado estivesse cabulando o casamento de um primo chato, odiado e vingativo, no momento em que postou. De qualquer forma, é um sinal preocupante, porque o blog é claramente um trabalho jornalístico sério sobre um assunto importante, e não uma simples notificação de despejo de um espanhol qualquer.

    O que está acontecendo, portanto, e o que mais vai acontecer? O Google, que se opôs à decisão judicial, recebeu 70 mil solicitações de remoção de links em seus resultados de busca. Entre os solicitantes aparentemente está um político britânico que está tentando voltar à cena, uma pessoa condenada por ter imagens de abuso contra crianças em seu computador e um médico que não deseja que resenhas negativas de pacientes sejam passíveis de busca (ele deveria ter consultado Harold Shipman sobre como eliminar esse problema). Será que o Google está usando o blog de Peston deliberadamente para demonstrar de que forma a decisão dos juízes europeus, cujo objetivo era permitir que todos nós eliminássemos fotos constrangedoras tiradas em festas de despedida de solteiro no passado, pode resultar em censura escancarada?
    A única coisa de que sempre gostei na Internet era que eu imaginava que ela ajudaria os historiadores –o fato de que, caso não aconteça um desastre de computação que destrua todos os dados, milhões de fontes escritas acessíveis a buscas estariam à disposição da posteridade. Sem isso, estamos falando só de dicas de beleza, do fechamento de livrarias e de oportunidades estrondosas de fraude. Assim, a notícia de que Ozymandias pode solicitar a supressão do registro de seus trabalhos caso eles evoquem desespero demais nos Poderosos –ou seja, seus potenciais empregadores– é um verdadeiro revés.

    Pode-se dizer que Ozymandias está morto –ou que ele é só um personagem de ficção, e mesmo nela está morto–, e por isso não teria como solicitar que suas pernas virtuais sejam enterradas em areia protetora contra buscas (manterei o controle dessa metáfora). A Internet ainda pode ser acurada quanto aos mortos, você talvez imagine, mas discordo. Eles são as únicas pessoas sobre as quais se pode escrever qualquer coisa, falsa ou verdadeira, porque legalmente não são considerados passíveis de difamação. Só os vivos podem recorrer à Justiça para garantir a veracidade do que se afirme sobre eles, mas por que alguém se incomodaria em solicitar correções desse tipo se pode simplesmente apagar qualquer coisa que tenha sido escrita sobre ele e não o agrade?

    O direito das pessoas a suprimir mentiras desagradáveis contadas publicamente sobre elas está sendo estendido à supressão de verdades desagradáveis –até que elas morram, e aí estará aberta a temporada da calúnia. A Internet consistirá inteiramente de duas categorias de inverdade: elogios exagerados aos vivos e disse me disse difamatório sobre os mortos.

    Ninguém tem o direito de ser esquecido, da mesma forma que não há o direito a ser lembrado. Nosso único direito quanto a isso tudo deveria ser o direito de não sermos alvo de mentiras. E dessa forma talvez pudéssemos tentar ver os fatos nada lisonjeiros sobre o passado dos outros à luz de nossas imperfeições. Eu não pensaria mal de alguém que teve a hipoteca de sua casa executada 16 anos atrás. Mas pensaria mal de alguém que é comprovadamente mentiroso.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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