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    Os tempos da pátria: Pessoa e a história de Portugal entre o heroico e o místico

    CLEONICE BERARDINELLI

    13/07/2014 03h06

    "Mensagem", o único volume de versos portugueses organizado e publicado por Fernando Pessoa, apresenta uma estrutura perfeita: cada um de seus elementos tem correlatos necessários e suficientes dentro do plano estabelecido e seguido pelo poeta; apesar de compor-se de breves poemas agrupados em três partes que correspondem aos seus três "tempos", tem, ainda assim, a unidade de um poema.

    Um poema, dizíamos, e queremos caracterizá-lo: um poema épico de tipo especial, ou melhor, um poema épico-lírico contendo uma leve tessitura narrativa –a história de Portugal por meio de uma visão personalíssima, que seleciona os personagens históricos de acordo com a dualidade expressa por Pessoa, quando se diz "um nacionalista místico, um sebastianista racional". A dualidade reside menos em dizer-se nacionalista e sebastianista do que em ser simultaneamente místico e racional. Tais contrários, aparentemente inconciliáveis, não só coexistem no poema, mas são a sua própria essência.

    Em seu limiar, "Mensagem" traz uma inscrição latina: "Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis signum",1 que lhe dá o tom predominante, a predestinação de Portugal. Predestinação geográfica, nesta posição em que é o rosto que "Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado"; predestinação mítica, com Ulisses "A entrar na realidade/ E a fecundal-a"; predestinação histórica, na atitude involuntária do Conde D. Henrique, que parece responder a um fiat divino: "Que farei eu com esta espada?/ Ergueste-a, e fez-se".

    Vitoriano Braga/Arquivo Nacional
    O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935)
    O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935)

    As três partes de "Mensagem" são: Brasão, Mar portuguez e O Encoberto. Chamamos-lhes tempos porque de fato o são: o tempo da preparação, o tempo da realização e da queda, o tempo da espera. E note-se que o tempo medial é o tempo do mar, em que plenamente se cumpriu o destino prometido, ao conquistar-lhe a distância que depois se perdeu e que é preciso de novo reconquistar: "Do mar ou outra, mas que seja nossa!"

    Transposto o limiar, entramos na primeira parte do poema: Brasão. Dois campos se distinguem no brasão português: o dos castelos e o das quinas. São esses os dois primeiros poemas do livro e, enquanto no primeiro o poeta insiste na ideia da terra - a Europa e nela Portugal -, no segundo faz uma série de reflexões conceituosas, em que afirma a fé na glória conseguida à custa de inconformidade, de desgraça. E, reafirmando o que neles se diz resumidamente, cada um dos campos se desdobrará: em seus sete castelos, o primeiro; em suas cinco quinas, o segundo. Os castelos representam, lato sensu, a ação criadora da nacionalidade, a sua fixação na terra: origem mítica em Ulisses, pré-história em Viriato, proto-história no Conde D. Henrique e em D. Tareja e a história, em Affonso Henriques, Diniz, João e Filipa. Dois poemas da antemanhã, dois da madrugada e quatro do dia claro da história de Portugal. Até ao quinto, o poeta enumerou, sem selecionar (não tinha, aliás, outra alternativa); só lhe restavam dois castelos e mais de uma dezena de reis se ofereciam à escolha. Para o sexto castelo, Pessoa escolhe D. Diniz chamando-lhe "o plantador de naus a haver", fazendo do rei trovador e lavrador o agente remoto das navegações, aquele que, no sussurro dos pinhais, ouve a voz futura do mar; chegado ao sétimo e último castelo, para manter a coerência estrutural do conjunto, desdobra-o em dois –D. João I e D. Filipa–, que repetem, à entrada da nova dinastia, o par gerador –Henrique e Tareja– que dera origem à dinastia fundadora. Essas duas mulheres –as únicas trazidas da história para o poema– são caracterizadas como matrizes: Tareja é "o seio augusto" que amamenta o que "Deus fadou"; Filipa, o "seio/ Que só genios concebia", o "humano ventre do Imperio". Com este ardil, Pessoa mantém o número sete para os castelos, respeitando a composição do brasão que utiliza e fazendo de João e Filipa dois que são um na raiz de uma nova era –a era do Ultramar. Agentes causativos ou eficientes, a ação dos castelos é real e visível: a conquista da terra e o impulso para o mar. Não assim as quinas, que lembram, no brasão, o milagre de Ourique: a intervenção do próprio Cristo no destino da batalha e da pátria. Os heróis desses poemas não chegaram a sê-lo na vida; poucos entenderam a sua glória feita menos de agir do que de suportar as penas infligidas pela Providência ou pelo Fado; D. Duarte, no árduo e consciente cumprimento do dever; o Infante D. Fernando, na aceitação total da vontade de Deus; D. Pedro, Regente de Portugal, na dignidade perante a sorte adversa; o Infante D. João, na resignação dolorosa; D. Sebastião, na irrealização de um sonho inatingível. Abrangem, assim, castelos e quinas, a dupla missão de Portugal, para a qual dedit Deus signum. Dupla missão plenamente cumprida por aquele que foi, como Galaaz, o herói e o santo, Nunalvares Pereira, e por isso o poeta o fez a coroa do brasão, resumo de seus campos. O timbre (elemento do brasão que lhe dá o grau de fidalguia) é o grifo, cuja cabeça é o Infante D. Henrique –aquele que pensou os Descobrimentos que sobretudo dois homens realizaram: D. João II, a comandá-los de Portugal, e Affonso de Albuquerque, a mantê-los e alargá-los na Índia (por isso são uma e outra asa do fabuloso animal). Neles Pessoa sintetiza o mar –a marca de Portugal.

    Assim, a primeira parte de "Mensagem", cuja divisa é "Bellum sine bello", apresenta a caminhada da terra para o mar como missão humana e transumana.

    A segunda parte, Mar portuguez, tem também sua divisa: Possessio maris. Seus doze poemas retomam a origem dessa posse do mar, voltando ao Infante D. Henrique e seguindo o roteiro da conquista, no rumo do Oriente: o "Horizonte" que se alarga, revelando a Verdade; o "Padrão" das quinas que se finca no areal; o "Mostrengo" que está no fim do mar, "na pequena praia extrema", sepultura de Bartolomeu Dias, seu descobridor; no rumo do Ocidente: os outros navegadores ("os colombos"), vindos de outras terras, a quem falta a "Magia que evoca/ o Longe", e de novo os portugueses –o que chega ao Brasil ("Occidente"), o que cinge a terra ("Fernão de Magalhães"). Ultrapassados os rumos terrenos, simbolizando todos os navegadores, Vasco da Gama ascende aos céus, já feito mito. O poema seguinte, "Mar portuguez", apresenta dialeticamente os dois lados dos Descobrimentos: as lágrimas e a possessio maris. Poema-síntese, este parece destinado a encerrar a segunda parte do livro. Mas não: havia que acrescentar, nesse mar real e já possível, a nau misteriosa de D. Sebastião, que parte para voltar "num mar que não tem tempo ou spaço" e que só existe dentro do poeta. Assim, das naus que partiram à ordem do Infante D. Henrique, cumprida sua missão, não se diz se voltaram; só "A ultima nau" regressa, trazendo ainda o pendão do Império, ainda envolta em névoa, para surgir ao sol, na Hora e no poeta. Os planos épico e lírico interseccionam-se, e este absorve aquele. Nesse clima situa-se o último poema do mar, que retoma a prece final do primeiro: "Senhor, falta cumprir-se Portugal!", suplicando: "E outra vez conquistemos a Distancia".

    De Brasão a Mar portuguez a transição se faz sem saltos, pois os últimos poemas da primeira parte poderiam pertencer à segunda, tanto que em ambas está o mesmo herói –"O Infante D. Henrique"–; no fim de Mar portuguez surge a nau de D. Sebastião, o herói da terceira parte, O Encoberto, que já fechara o campo das quinas, e tal encadeamento acentua a unidade do poema.

    A terceira parte, que tem por divisa Pax in excelsis, subdivide-se em: "Os symbolos", "Os avisos" e "Os tempos". Os símbolos são cinco: o primeiro, terceiro e quinto –"D. Sebastião", "O Desejado" e "O Encoberto"– são um só e tal é a religiosidade de que se revestem que ousaríamos dizer que são três pessoas distintas e uma só verdadeira –o rei cujo sonho foi o "Quinto Imperio" e cujo destino foram "As ilhas afortunadas". "Os avisos" são três: os dois primeiros –"O Bandarra" e "Antonio Vieira"– sonham com o Quinto Império; o "Terceiro"
    –o poeta– aguarda a volta do Encoberto das ilhas afortunadas. E vêm por fim "Os tempos", também cinco: "Noite", a perda do Poder e do Renome; "Tormenta", o naufrágio de Portugal, o "poder ser"; "Calma", o mar a praiar na ilha afortunada; "Antemanhã", o apelo do mar (pela voz do mostrengo) àquele que foi seu senhor (que não é diretamente nomeado, mas sugerido até pela rima interna do sexto verso); e finalmente "Nevoeiro", o próprio Portugal. E o poema terminaria em descida irremediável, se não fosse a frase final de estímulo a nova partida, por caminho impreciso e rumando, talvez, às ilhas afortunadas, ao Quinto Império de Portugal: "É a Hora!"

    Um estreito parentesco une "Mensagem" a "Os Lusíadas": o signum que encontramos à entrada de "Mensagem" já vinha do primeiro verso d'"Os Lusíadas": "As armas e os barões assinalados"; ambos glorificam a grandeza de Portugal, ambos celebram o domínio do mar; a voz do Velho do Restelo ecoa nas estrofes de "Mar portuguez", o mostrengo retoma o Adamastor. Há entre os dois poemas, no entanto, uma diferença profunda que corresponde ao diverso enfoque dos mesmos elementos: o poeta renascentista procura ressaltar a feição bravamente atuante dos seus reis e heróis, e assim o vemos, ao enumerar todos os reis de Portugal, consagrar escassos versos a D. Diniz ou a D. Duarte, enquanto as bélicas façanhas de Afonso III ou Afonso IV são longa e enfaticamente cantadas; o poeta do século XX não enumera, seleciona, como se pôde ver, fazendo soar em contraponto o lado menos ativo e mais passivamente heroico, representado sobretudo pelas quinas.

    Os dois poetas avizinham-se na medida em que introjetam a decepcionante realidade exterior, procurando reagir a ela. Assim, Camões termina o poema com uma nova invocação ao rei, incitando-o à campanha na África; a recuperação ainda seria possível em termos humanos: Sebastião já fora o Desejado, mas não era ainda o Encoberto; Alcácer-Quibir ainda não chegara. O rei de Fernando Pessoa é o Encoberto e assim se intitula a parte final de "Mensagem". Enquanto Camões se dirige a um jovem sonhador, louvando-o e aconselhando-o, Pessoa interpela um sonho: "Quando, meu Sonho e meu Senhor?" A névoa, a bruma e as ilhas são o cenário onde se move o Encoberto, voltando na última nau, envolto em pressago mistério, mas trazendo ainda o pendão do Império. Transitou da história para o mito e só neste será possível a recuperação, neste haverá a Hora, prometida no último momento do último poema e possibilitada pelo único verso que quebra a negatividade total do texto ("Que ancia distante perto chora?"), a ela se ligando pela rima. A negatividade começa no título, "Nevoeiro": é ele a metáfora, explicitada ao fim, desse Portugal "fulgor baço da terra", "fogo-fatuo", "sem luz e sem arder". Nessa insistência em negar por meio de nem, sem, ninguém, que o tudo reafirma, a única palavra positiva é a ânsia que, mesmo no longe-perto em que chora, poderá dar luz e calor ao "fulgor baço da terra", ao fogo-fátuo que passará a fogo real.

    Ao longo de "Mensagem", poema da terra e do mar, vai-se impondo a presença do fogo (chama, brasa, farol), frequentemente associado à do ar (vento, sopro, aragem); e ambos, ar e fogo, são metafóricos. Em "O Quinto Imperio", é "o erguer de asa" de um sonho que pode fazer "mais rubra a brasa/ Da lareira a abandonar!"; em "Prece", fecho de Mar portuguez, que, como já ressaltamos, se encadeia ao primeiro poema dessa parte, pela constatação de que "o Imperio se desfez", reponta a esperança sob a metáfora de chama oculta pelas cinzas, mas que "a mão do vento póde erguel-a ainda". Vento que pode ser "sopro" ou "aragem" "com que a chamma do exforço se remoça", e o poeta explicita: "ou desgraça ou ancia". Essas formas de vento capazes de revolver as cinzas - desgraça ou ânsia, aqui; no terceiro "Aviso", "sopro incerto/ De um grande anceio que Deus fez"; em "Nevoeiro", a "ancia distante" que "perto chora". Revolver as cinzas e deixar que brilhe "na ara da nossa alma interna,/ A que repelle, eterna chamma,/ A sombra eterna", para que "outra vez conquistemos a Distancia -/ Do mar ou outra, mas que seja nossa!"

    Assim, de uma leitura paradigmática dos poemas, ressalta o significado do poema final e também a proposta de uma solução não mais de dimensão humana, mas mítica.

    Tantos pontos de contato entre os dois poemas não tiram a validade da afirmação, que retomamos: Camões enumera e relata, no mais largo âmbito possível, os heróis e os fatos heroicos da nação portuguesa, com o fito de criar uma epopeia de que, inconsciente ou conscientemente, ele emerge em tiradas líricas que poderão quebrar a unidade épica do poema, mas que, sem dúvida, o enriquecem de humanidade; Pessoa restringe-se a uns poucos vultos históricos que utiliza como heróis-símbolos, valorizando os que mais distingue pela insistência com que os apresenta: D. João II, D. Henrique e, sobretudo, D. Sebastião. Os dois primeiros são os propulsores da conquista e, pois, da breve e deslumbrante glória portuguesa cujo fim trágico é Alcácer-Quibir. D. Sebastião, herói da derrocada, paradoxal, portanto, e, mais que os outros, um símbolo prenhe de significado transcendente, eterno: "É O que eu me sonhei que eterno dura,/ É Esse que regressarei", sempre capaz de retomar o "gladio ungido,/ Excalibur do Fim", e revelar "ao mundo dividido" "o Santo Gral", é inserido pelo poeta na simbologia rosa-cruciana:

    Que symbolo fecundo
    Vem na aurora anciosa?
    Na Cruz morta do Mundo
    A Vida, que é a Rosa.

    Que symbolo divino
    Traz o dia já visto?
    Na Cruz, que é o Destino,
    A Rosa, que é o Christo.

    Que symbolo final
    Mostra o sol já disperto?
    Na Cruz morta e fatal
    A Rosa do Encoberto.

    Acreditamos que a criação de símbolos a partir de uma realidade ou de uma deformação dessa realidade, a fim de torná-la simbólica, implica um subjetivismo bastante acentuado, o que nos faz dizer que "Mensagem" é um poema épico-lírico. E mais razões haveria para dizê-lo: em "Mensagem" reencontramos a cada passo, sob o disfarce de outras personalidades, o poeta ortônimo ou heterônimo em suas feições mais características. A sua inquietação metafísica, afirmada afirmativamente em Álvaro de Campos, negativamente (releve-se o paradoxal) em Alberto Caeiro e disfarçadamente em Ricardo Reis, está presente em "Mensagem"; exprime-a Diogo Cão em "Padrão":

    E a Cruz ao alto diz que o que me ha na alma
    E faz a febre em mim de navegar
    Só encontrará de Deus na eterna calma
    O porto sempre por achar.

    Ou o Infante Santo D. Fernando: "E esta febre de Além, que me consome,/ E este querer grandeza são seu nome/ Dentro em mim a vibrar".

    A sua imperiosa necessidade de sonhar –"o sonho é o por que valemos"– já se assinalou em D. Sebastião. As naus, as viagens e o mar, que são o cerne de "Mensagem", são também constantes nas outras obras, sobretudo dos poemas de Álvaro de Campos, engenheiro naval, que por força haveria de amá-los. E a presença do mistério, do oculto, da solução rosa-cruciana para sua curiosidade insaciável, estão lá como cá.

    Incluída, pois, na obra pessoana como um livro sui generis, "Mensagem", a mais portuguesa das obras de Pessoa, é válida por seu alto nível poético, por sua primorosa estrutura e pela captação total da alma portuguesa, heroica e mística, saudosista e messiânica.

    NOTA:
    1. Bendito o Senhor nosso Deus que nos deu o sinal.

    Este ensaio faz parte da nova edição de "Mensagem", que acaba de ser lançada pela Edições Janeiro. Uma primeira versão foi publicada em "Estudos de Literatura Portuguesa" (Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985), de Cleonice Berardinelli, com o título "Mensagem".

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