RESUMO Conhecida e explorada na dramaturgia clássica, função catártica do riso serve de chave para ler as manifestações humorísticas que ocorriam na internet ainda durante a partida entre Brasil e Alemanha. A autoironia permite desmontar a falsa construção da noção de "povo" em torno de um time e de uma bandeira.
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Na Roma antiga, Horácio (65-8 a.C.), o grande poeta lírico e satírico, acreditava que uma brincadeira, muitas vezes, tem mais sucesso para eliminar grandes adversidades do que a violência.
Ele apostava na força do riso a serviço de causas morais. O riso permite uma transgressão das regras que pode ter como efeito um alívio, individual ou coletivo, diante de situações catastróficas. Os autores de comédia latinos Plauto (254-184 a.C.) e Terêncio (195-159? a.C.) tinham por tema muitas vezes assuntos dignos de terror, como o estupro, a chantagem e o tráfico de mulheres, mas, ao abordá-los pela chave do cômico, permitiam um riso de alívio.
Como a tragédia, também a comédia permite uma catarse. Mas é evidente que os mecanismos desses dois espetáculos são distintos.
Aristóteles foi o primeiro a notar que as emoções centrais da tragédia são o terror e a compaixão. Nós nos apiedamos das mazelas do protagonista, com o qual nos identificamos. A tragédia possibilitaria uma catarse do terror e da compaixão. Já o registro do cômico, como afirmou Cícero (106-43 a.C.), o grande orador romano, não permite que se suscite nem o horror nem a piedade. Vícios e erros podem se transformar em diversão e riso, desde que não sintamos simpatia pelo que padece.
Thierry des Fontaines | ||
Se na tragédia criamos e reforçamos a noção de "comunidade dos iguais", por meio da identificação com o sofrimento do "outro" (que é visto como um igual), na cena do escarnecimento, a comunidade é a dos que escarnecem.
A comédia permite, portanto, seguindo esse raciocínio, um distanciamento do real. Daí o riso poder funcionar como válvula de escape e evasão de um mundo visto como prenhe de dor e sofrimento. O excesso de energia negativa é posto para fora e projetado no "outro" (que é visto como um diferente). Ao rirmos do sofrimento é como se não sofrêssemos mais. Criamos um "ele" sofredor em oposição a um "nós" imune a essa dor. A catarse trágica reafirma o grupo, a catarse cômica provoca fendas no grupo; a primeira se baseia na identificação, a segunda, na desidentificação.
Além disso, Aristóteles também definiu a tragédia como gênero que trata de grupos mais elevados de pessoas (a aristocracia) e de modo mais idealizado. Já à comédia caberia, segundo o mesmo filósofo, os grupos mais "baixos", os pobres e "feios", que são apresentados em suas tarefas cotidianas, familiares. Nesse sentido, é interessante notar que essa relação entre o cômico, o grotesco e o "baixo", historicamente, acabou por aproximar mais as comédias da realidade social.
Em suma, a comédia e o riso cômico permitem ao mesmo tempo, aproximar-se do real, retratá-lo e, por outro lado, possibilitam também o afastamento, que pode ser irônico, sarcástico ou até derrisório, conforme o caso. Essa dialética do dispositivo cômico é essencial para percebermos o que se passa agora no Brasil após o massacre da seleção pela equipe da Alemanha na última terça-feira.
CATARSE
As reações a essa tragédia (anunciada, diga-se de passagem, mas nunca nessas proporções do placar de 7 a 1) já antes do término do primeiro tempo, deram-se, através das redes sociais, na chave da (auto)ridicularização. Os brasileiros, chocados com aquela realidade adversa, reagiram rindo, "desopilando", como falamos cotidianamente, ou seja, buscando uma catarse pelo riso.
O interessante no fenômeno do cômico é que ele, contrariamente ao senso comum, não está tão distante dos fatos que julgamos característicos da esfera do trágico. Antes, o cômico é uma inserção diversa, um outro modo de enfrentar a dor e o sofrimento. No reino do cômico, buscamos igualmente uma elaboração de situações difíceis, assim como as enfrentadas pelas obras do gênero trágico. O cômico normalmente é uma etapa tardia, não tão imediata na elaboração do trauma, como vimos nesta terça, durante o jogo do Brasil.
Thierry des Fontaines | ||
Nos grandes concursos trágicos da Antiguidade grega, as "dionisíacas", os dramaturgos apresentavam três tragédias, seguidas de uma comédia, apresentada, ao final do espetáculo, pelos mesmos atores das peças anteriores. O riso e o registro do cômico desconstroem a seriedade do registro mais nobre e sisudo do trágico. Hoje, esse mesmo fenômeno se repete na indústria cultural, em que séries de filmes, do gênero catástrofe, como a iniciada pelo filme "Aeroporto" (1970), têm no último episódio uma versão cômica da história.
Na última terça, porém, com 30 minutos de jogo e cinco gols marcados pela equipe alemã, já passava no celular a imagem, que correu o mundo afora, do Cristo Redentor envergonhado, tampando a face com as mãos. Ultraje e humilhação estavam sendo elaborados, em tempo real, pelo riso. Outras piadas ironizavam a facilidade e a velocidade com que se sucederam os gols, um triste recorde na história das copas.
PASSAGEM
Essa passagem imediata para o registro do cômico evidentemente advém do fato de que estamos tratando de uma tragédia histórica específica, que se dá no âmbito dos esportes, e não de uma guerra, da fome ou da pobreza.
Os primeiros filmes cômicos sobre campos de concentração nazistas tiveram que esperar várias décadas, para serem filmados e aceitos -mesmo assim, muitos os condenam até hoje. Mas, no campo do esporte, a possibilidade, a necessidade mesmo de rir como meio de elaborar a trágica derrota foi vista como urgente -como se a recordar que, afinal, era apenas mais um jogo de futebol.
É interessante lembrar que "jogo" remete tanto a atividades esportivas, como a brincadeiras. Em inglês o verbo "to play" e em alemão, o verbo "spielen" são aplicados indistintamente para "jogar", "brincar" e "representar uma peça". O jogo de futebol é uma enorme representação, e o grande show da nossa era dos megaespetáculos é a Copa do Mundo.
Foi nesse palco cênico que a trágica derrota do time brasileiro se deu. As brincadeiras logo tentaram empurrar a tragédia para a chave do tragicômico. Essa elaboração chistosa da angústia guarda semelhanças com a elaboração onírica, na qual também, lembrando Freud (um austríaco, vale ressaltar, e não um alemão), entram em ação deslocamentos, condensação de objetos não idênticos, intensificação espaço-temporal, entre outras técnicas.
Assim como o sonho é uma elaboração, ou seja, "trabalha" nossas ansiedades e angústias, do mesmo modo essas brincadeiras o fazem, na busca de um bem-estar, de uma restituição de uma autoimagem que foi trincada pela derrota humilhante.
A ferida narcísica exige um bálsamo e, no caso de jogos, a brincadeira é particularmente propícia para tal fim. Ela permite muitas coisas: distanciamento crítico, uma melhor olhada sobre o que está se passando, uma reflexão sobre o porquê da tragédia, uma condenação dos "culpados" e sua ridicularização, via riso agressivo. Vamos assim, do riso autoirônico ao riso derrisório.
Com Konrad Lorenz (1903-89), não podemos esquecer de que o riso é a manifestação de um instinto agressivo, que ele doma e canaliza em uma determinada direção.
CONVULSÃO
Esse riso, no entanto, não deve ser confundido com alegria ou felicidade. O riso é uma descarga, uma convulsão somática, provocado normalmente pelo encontro surpreendente de fatos (ou de imagens) que são antípodas, ou do semelhante com o dessemelhante, como lembrava Freud, em sua teoria do chiste.
Nas charges, o jogador Fred vira um cone de sinalização de trânsito, a taça da copa se transforma na imagem do quadro "O Grito" de Edvard Munch, Angela Merkel, a chanceler da Alemanha, substitui o Cristo Redentor no Rio de Janeiro em seu pedestal, o treinador Felipão surge com sete galos na cabeça em forma de bolas e o letreiro "o Brasil é septa!" etc.
Vendo a sucessão de charges, piadas e vídeos postados (alguns comparando o jogo com a Blitzkrieg nazista, da Segunda Guerra Mundial), é como se estivéssemos vivendo um verdadeiro ritual "dionisíaco", lembrando que o riso, desde a Grécia antiga, é visto como detentor de uma força destruidora, que permite uma irrupção e um transbordamento -originalmente ele era visto como meio de ligação com a esfera divina. Riso, loucura e estado de transe se unem na criação de um estado de exceção, numa ruptura caótica da ordem.
Os rituais dionisíacos estão tanto na origem da tragédia como na da comédia, e essa unidade da origem corrobora para pensarmos as intersecções entre o trágico e o cômico. O riso burlesco, carnavalesco, bufão e derrisório permite criar um balanceamento com a vida séria e regrada da cidade. Esses rituais dionisíacos, de resto, possibilitavam uma ruptura das fronteiras, inclusive entre o campo e a cidade. O "kômos" era o final da procissão camponesa, na qual se portavam enormes falos em referência à fecundidade e se proferiam versos burlescos e ofensivos. Dessa festa marcada pelos excessos, vem a noção de comédia.
A comédia e o chiste permitem também uma espécie singular de esquecimento da dor. Na mesma medida em que recordamos o que queremos esquecer, como o fato aparece sob uma outra luz, inusitada, esquecemos o seu teor de sofrimento e de dor e revertemos nosso pesar em catarse.
Mas essa "purificação" não significa necessariamente que estamos assistindo a uma cena de "alienação da alienação", ou seja, no nosso caso, de distração do horror provocado pelo megaevento (esportivo, econômico e político) da Copa. A piada e o registro do cômico não implicam necessariamente uma distração da realidade.
Pelo contrário, o riso pode ser a porta de entrada para um despertar de uma consciência mais crítica sobre a realidade. Daí grandes críticos da sociedade terem optado pelo registro cômico (ou explicitamente tragicômico), como foi o caso de Brecht, é o de Dario Fo, é o de Chico Buarque, em sua "Ópera do Malandro", ou o de um Kafka, ainda que seu humor tenha sido pouco compreendido como tal. Eles devem ser vistos como adeptos desse riso crítico, transformador.
SONO
Em um país como o Brasil, que há um ano vem acordando do "sono dogmático" e onde a classe média apresenta um novo rol de demandas, esse riso pode ter uma força política nada desprezível. Pode nos despertar desse conto da carochinha do hexa e permitir direcionar as forças sociais para pautas que a nação que "humilhou" o Brasil já vêm trabalhando, com competência, há décadas.
Esse riso deve servir para escarnecer das mentiras com as quais estamos sendo bombardeados. Em primeiro lugar, e diretamente relacionado ao jogo do dia 8, atacar as versões que afirmam que o que aconteceu com o time brasileiro foi um "acidente inexplicável" a ser esquecido. O treinador falou até em tsunami, para descrever os primeiros 29 minutos da partida. Não foi uma catástrofe natural. O que faltou foi trabalho sério.
Existem responsáveis evidentes por tal problema. Esmiuçar isso fará provavelmente com que passemos a ver que essa tragédia foi, de fato, uma farsa.
Como essa, outras mentiras que rodearam a Copa devem ser desmistificadas.
Para muitos, sabemos, a humilhação em um jogo desses tem "proporções históricas" e não poderíamos dizer que se trata de "só um jogo de futebol".
A capa da Folha do dia seguinte ao jogo, com a imagem do "apagão do estádio" contrastando com o placar onde se iluminavam os números terríveis, expressou de modo muito tocante esse sentimento de ferida nacional que estaria ligado a esse evento.
O futebol se tornou em parte, na modernidade, uma espécie de substituto das guerras e da luta patriótica, e não por acaso as mesmas metáforas guerreiras são aplicadas nesse esporte (com seus atacantes, defensores etc.). Mas há também que aprender a olhar com mais ironia para esses campeonatos e para a ideia absurda (apenas aceita na chave da ironia) da "pátria de chuteiras".
O que o riso permite é justamente o esfacelamento dessa falsa construção (trágica) de um "povo" em torno de um time e de uma bandeira. Se as manifestações desde junho de 2013 abriram-nos os olhos para a crise da representação na esfera política, agora enfrentamos outra, esportiva.
CONSCIÊNCIA
A autoironia reforça a consciência daquilo que somos e do que necessitamos. Para citar (talvez ironicamente) o grande autor do romantismo alemão Friedrich Schlegel (1772-1829), a ironia permite uma concomitante autoaniquilação e uma autocriação. Ela faculta a saída de nós mesmos e um retorno ao "eu", com uma consciência transformada.
De resto, o mesmo Schlegel foi um dos primeiros e mais agudos teóricos do chiste. Para ele o chiste é "a aparição, o raio exterior da fantasia" e "genialidade em fragmentos". Não devemos, então, censurar ou tentar conter a onda de charges e tiradas autoirônicas.
A piada, venha ela de fora ou daqui mesmo, vem romper o véu da ilusão, construída e elevada à categoria de utopia e de paraíso na Terra, de um Brasil hexacampeão em 2014 -o hexa, ironicamente, veio apenas na diferença de gols entre Brasil e Alemanha.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA, 49, é professor de teoria literária na Unicamp e autor, entre outros, de "O Local da Diferença" (ed. 34) e de "Para uma Crítica da Compaixão" (Lumme).
THIERRY DES FONTAINES, 54, é fotógrafo francês. As imagens aqui reproduzidas são parte da série publicada no livro "BOLA" (Réptil).