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    Como e por que a goleada virou piada instantânea na internet

    MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
    fotografias THIERRY DES FONTAINES

    13/07/2014 03h07

    RESUMO Conhecida e explorada na dramaturgia clássica, função catártica do riso serve de chave para ler as manifestações humorísticas que ocorriam na internet ainda durante a partida entre Brasil e Alemanha. A autoironia permite desmontar a falsa construção da noção de "povo" em torno de um time e de uma bandeira.

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    Na Roma antiga, Horácio (65-8 a.C.), o grande poeta lírico e satírico, acreditava que uma brincadeira, muitas vezes, tem mais sucesso para eliminar grandes adversidades do que a violência.

    Ele apostava na força do riso a serviço de causas morais. O riso permite uma transgressão das regras que pode ter como efeito um alívio, individual ou coletivo, diante de situações catastróficas. Os autores de comédia latinos Plauto (254-184 a.C.) e Terêncio (195-159? a.C.) tinham por tema muitas vezes assuntos dignos de terror, como o estupro, a chantagem e o tráfico de mulheres, mas, ao abordá-los pela chave do cômico, permitiam um riso de alívio.

    Como a tragédia, também a comédia permite uma catarse. Mas é evidente que os mecanismos desses dois espetáculos são distintos.

    Aristóteles foi o primeiro a notar que as emoções centrais da tragédia são o terror e a compaixão. Nós nos apiedamos das mazelas do protagonista, com o qual nos identificamos. A tragédia possibilitaria uma catarse do terror e da compaixão. Já o registro do cômico, como afirmou Cícero (106-43 a.C.), o grande orador romano, não permite que se suscite nem o horror nem a piedade. Vícios e erros podem se transformar em diversão e riso, desde que não sintamos simpatia pelo que padece.

    Thierry des Fontaines

    Se na tragédia criamos e reforçamos a noção de "comunidade dos iguais", por meio da identificação com o sofrimento do "outro" (que é visto como um igual), na cena do escarnecimento, a comunidade é a dos que escarnecem.

    A comédia permite, portanto, seguindo esse raciocínio, um distanciamento do real. Daí o riso poder funcionar como válvula de escape e evasão de um mundo visto como prenhe de dor e sofrimento. O excesso de energia negativa é posto para fora e projetado no "outro" (que é visto como um diferente). Ao rirmos do sofrimento é como se não sofrêssemos mais. Criamos um "ele" sofredor em oposição a um "nós" imune a essa dor. A catarse trágica reafirma o grupo, a catarse cômica provoca fendas no grupo; a primeira se baseia na identificação, a segunda, na desidentificação.

    Além disso, Aristóteles também definiu a tragédia como gênero que trata de grupos mais elevados de pessoas (a aristocracia) e de modo mais idealizado. Já à comédia caberia, segundo o mesmo filósofo, os grupos mais "baixos", os pobres e "feios", que são apresentados em suas tarefas cotidianas, familiares. Nesse sentido, é interessante notar que essa relação entre o cômico, o grotesco e o "baixo", historicamente, acabou por aproximar mais as comédias da realidade social.

    Em suma, a comédia e o riso cômico permitem ao mesmo tempo, aproximar-se do real, retratá-lo e, por outro lado, possibilitam também o afastamento, que pode ser irônico, sarcástico ou até derrisório, conforme o caso. Essa dialética do dispositivo cômico é essencial para percebermos o que se passa agora no Brasil após o massacre da seleção pela equipe da Alemanha na última terça-feira.

    CATARSE

    As reações a essa tragédia (anunciada, diga-se de passagem, mas nunca nessas proporções do placar de 7 a 1) já antes do término do primeiro tempo, deram-se, através das redes sociais, na chave da (auto)ridicularização. Os brasileiros, chocados com aquela realidade adversa, reagiram rindo, "desopilando", como falamos cotidianamente, ou seja, buscando uma catarse pelo riso.

    O interessante no fenômeno do cômico é que ele, contrariamente ao senso comum, não está tão distante dos fatos que julgamos característicos da esfera do trágico. Antes, o cômico é uma inserção diversa, um outro modo de enfrentar a dor e o sofrimento. No reino do cômico, buscamos igualmente uma elaboração de situações difíceis, assim como as enfrentadas pelas obras do gênero trágico. O cômico normalmente é uma etapa tardia, não tão imediata na elaboração do trauma, como vimos nesta terça, durante o jogo do Brasil.

    Thierry des Fontaines

    Nos grandes concursos trágicos da Antiguidade grega, as "dionisíacas", os dramaturgos apresentavam três tragédias, seguidas de uma comédia, apresentada, ao final do espetáculo, pelos mesmos atores das peças anteriores. O riso e o registro do cômico desconstroem a seriedade do registro mais nobre e sisudo do trágico. Hoje, esse mesmo fenômeno se repete na indústria cultural, em que séries de filmes, do gênero catástrofe, como a iniciada pelo filme "Aeroporto" (1970), têm no último episódio uma versão cômica da história.

    Na última terça, porém, com 30 minutos de jogo e cinco gols marcados pela equipe alemã, já passava no celular a imagem, que correu o mundo afora, do Cristo Redentor envergonhado, tampando a face com as mãos. Ultraje e humilhação estavam sendo elaborados, em tempo real, pelo riso. Outras piadas ironizavam a facilidade e a velocidade com que se sucederam os gols, um triste recorde na história das copas.

    PASSAGEM

    Essa passagem imediata para o registro do cômico evidentemente advém do fato de que estamos tratando de uma tragédia histórica específica, que se dá no âmbito dos esportes, e não de uma guerra, da fome ou da pobreza.

    Os primeiros filmes cômicos sobre campos de concentração nazistas tiveram que esperar várias décadas, para serem filmados e aceitos -mesmo assim, muitos os condenam até hoje. Mas, no campo do esporte, a possibilidade, a necessidade mesmo de rir como meio de elaborar a trágica derrota foi vista como urgente -como se a recordar que, afinal, era apenas mais um jogo de futebol.

    É interessante lembrar que "jogo" remete tanto a atividades esportivas, como a brincadeiras. Em inglês o verbo "to play" e em alemão, o verbo "spielen" são aplicados indistintamente para "jogar", "brincar" e "representar uma peça". O jogo de futebol é uma enorme representação, e o grande show da nossa era dos megaespetáculos é a Copa do Mundo.

    Foi nesse palco cênico que a trágica derrota do time brasileiro se deu. As brincadeiras logo tentaram empurrar a tragédia para a chave do tragicômico. Essa elaboração chistosa da angústia guarda semelhanças com a elaboração onírica, na qual também, lembrando Freud (um austríaco, vale ressaltar, e não um alemão), entram em ação deslocamentos, condensação de objetos não idênticos, intensificação espaço-temporal, entre outras técnicas.

    Assim como o sonho é uma elaboração, ou seja, "trabalha" nossas ansiedades e angústias, do mesmo modo essas brincadeiras o fazem, na busca de um bem-estar, de uma restituição de uma autoimagem que foi trincada pela derrota humilhante.

    A ferida narcísica exige um bálsamo e, no caso de jogos, a brincadeira é particularmente propícia para tal fim. Ela permite muitas coisas: distanciamento crítico, uma melhor olhada sobre o que está se passando, uma reflexão sobre o porquê da tragédia, uma condenação dos "culpados" e sua ridicularização, via riso agressivo. Vamos assim, do riso autoirônico ao riso derrisório.

    Com Konrad Lorenz (1903-89), não podemos esquecer de que o riso é a manifestação de um instinto agressivo, que ele doma e canaliza em uma determinada direção.

    CONVULSÃO

    Esse riso, no entanto, não deve ser confundido com alegria ou felicidade. O riso é uma descarga, uma convulsão somática, provocado normalmente pelo encontro surpreendente de fatos (ou de imagens) que são antípodas, ou do semelhante com o dessemelhante, como lembrava Freud, em sua teoria do chiste.

    Nas charges, o jogador Fred vira um cone de sinalização de trânsito, a taça da copa se transforma na imagem do quadro "O Grito" de Edvard Munch, Angela Merkel, a chanceler da Alemanha, substitui o Cristo Redentor no Rio de Janeiro em seu pedestal, o treinador Felipão surge com sete galos na cabeça em forma de bolas e o letreiro "o Brasil é septa!" etc.

    Vendo a sucessão de charges, piadas e vídeos postados (alguns comparando o jogo com a Blitzkrieg nazista, da Segunda Guerra Mundial), é como se estivéssemos vivendo um verdadeiro ritual "dionisíaco", lembrando que o riso, desde a Grécia antiga, é visto como detentor de uma força destruidora, que permite uma irrupção e um transbordamento -originalmente ele era visto como meio de ligação com a esfera divina. Riso, loucura e estado de transe se unem na criação de um estado de exceção, numa ruptura caótica da ordem.

    Os rituais dionisíacos estão tanto na origem da tragédia como na da comédia, e essa unidade da origem corrobora para pensarmos as intersecções entre o trágico e o cômico. O riso burlesco, carnavalesco, bufão e derrisório permite criar um balanceamento com a vida séria e regrada da cidade. Esses rituais dionisíacos, de resto, possibilitavam uma ruptura das fronteiras, inclusive entre o campo e a cidade. O "kômos" era o final da procissão camponesa, na qual se portavam enormes falos em referência à fecundidade e se proferiam versos burlescos e ofensivos. Dessa festa marcada pelos excessos, vem a noção de comédia.

    A comédia e o chiste permitem também uma espécie singular de esquecimento da dor. Na mesma medida em que recordamos o que queremos esquecer, como o fato aparece sob uma outra luz, inusitada, esquecemos o seu teor de sofrimento e de dor e revertemos nosso pesar em catarse.

    Mas essa "purificação" não significa necessariamente que estamos assistindo a uma cena de "alienação da alienação", ou seja, no nosso caso, de distração do horror provocado pelo megaevento (esportivo, econômico e político) da Copa. A piada e o registro do cômico não implicam necessariamente uma distração da realidade.

    Pelo contrário, o riso pode ser a porta de entrada para um despertar de uma consciência mais crítica sobre a realidade. Daí grandes críticos da sociedade terem optado pelo registro cômico (ou explicitamente tragicômico), como foi o caso de Brecht, é o de Dario Fo, é o de Chico Buarque, em sua "Ópera do Malandro", ou o de um Kafka, ainda que seu humor tenha sido pouco compreendido como tal. Eles devem ser vistos como adeptos desse riso crítico, transformador.

    SONO

    Em um país como o Brasil, que há um ano vem acordando do "sono dogmático" e onde a classe média apresenta um novo rol de demandas, esse riso pode ter uma força política nada desprezível. Pode nos despertar desse conto da carochinha do hexa e permitir direcionar as forças sociais para pautas que a nação que "humilhou" o Brasil já vêm trabalhando, com competência, há décadas.

    Esse riso deve servir para escarnecer das mentiras com as quais estamos sendo bombardeados. Em primeiro lugar, e diretamente relacionado ao jogo do dia 8, atacar as versões que afirmam que o que aconteceu com o time brasileiro foi um "acidente inexplicável" a ser esquecido. O treinador falou até em tsunami, para descrever os primeiros 29 minutos da partida. Não foi uma catástrofe natural. O que faltou foi trabalho sério.
    Existem responsáveis evidentes por tal problema. Esmiuçar isso fará provavelmente com que passemos a ver que essa tragédia foi, de fato, uma farsa.

    Como essa, outras mentiras que rodearam a Copa devem ser desmistificadas.

    Para muitos, sabemos, a humilhação em um jogo desses tem "proporções históricas" e não poderíamos dizer que se trata de "só um jogo de futebol".

    A capa da Folha do dia seguinte ao jogo, com a imagem do "apagão do estádio" contrastando com o placar onde se iluminavam os números terríveis, expressou de modo muito tocante esse sentimento de ferida nacional que estaria ligado a esse evento.

    O futebol se tornou em parte, na modernidade, uma espécie de substituto das guerras e da luta patriótica, e não por acaso as mesmas metáforas guerreiras são aplicadas nesse esporte (com seus atacantes, defensores etc.). Mas há também que aprender a olhar com mais ironia para esses campeonatos e para a ideia absurda (apenas aceita na chave da ironia) da "pátria de chuteiras".

    O que o riso permite é justamente o esfacelamento dessa falsa construção (trágica) de um "povo" em torno de um time e de uma bandeira. Se as manifestações desde junho de 2013 abriram-nos os olhos para a crise da representação na esfera política, agora enfrentamos outra, esportiva.

    CONSCIÊNCIA

    A autoironia reforça a consciência daquilo que somos e do que necessitamos. Para citar (talvez ironicamente) o grande autor do romantismo alemão Friedrich Schlegel (1772-1829), a ironia permite uma concomitante autoaniquilação e uma autocriação. Ela faculta a saída de nós mesmos e um retorno ao "eu", com uma consciência transformada.

    De resto, o mesmo Schlegel foi um dos primeiros e mais agudos teóricos do chiste. Para ele o chiste é "a aparição, o raio exterior da fantasia" e "genialidade em fragmentos". Não devemos, então, censurar ou tentar conter a onda de charges e tiradas autoirônicas.

    A piada, venha ela de fora ou daqui mesmo, vem romper o véu da ilusão, construída e elevada à categoria de utopia e de paraíso na Terra, de um Brasil hexacampeão em 2014 -o hexa, ironicamente, veio apenas na diferença de gols entre Brasil e Alemanha.

    MÁRCIO SELIGMANN-SILVA, 49, é professor de teoria literária na Unicamp e autor, entre outros, de "O Local da Diferença" (ed. 34) e de "Para uma Crítica da Compaixão" (Lumme).

    THIERRY DES FONTAINES, 54, é fotógrafo francês. As imagens aqui reproduzidas são parte da série publicada no livro "BOLA" (Réptil).

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