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    Arquivo Aberto - A partida infinita

    MARTÍN CAPARRÓS
    tradução CASSIANO ELEK MACHADO
    fotografia MOACYR LOPES JUNIOR

    13/07/2014 03h20

    Zero a dois.

    Zero a três.

    Zero a quatro.

    Zero a cinco.

    Às vezes, muito de quando em quando, acontecem coisas que nunca haviam ocorrido. Houve, no Mineirão, sete minutos que transcorreram um pouco além de qualquer lógica, mas do lado de cá da história. Entre os minutos 23 e 29, quatro gols acabaram com qualquer esperança brasileira e nos deram, a centenas de milhões, essa sensação extraordinária de estar vendo o que não pode acontecer: encarar o impossível.

    Moacyr Lopes Junior - 8.7.14/Folhapress

    A partir desse momento, já nada importava: tudo era irreal, como se falsificado. Já não importava que esses gols alemães tivessem contado com a cumplicidade estranhíssima, inegável, da fraqueza e do descompasso da defesa brasileira. Já não importava que o marechal da derrota, Luiz Felipe Scolari, houvesse jogado na fogueira um par de jogadores, substituindo-os no intervalo. Já não importava que seu projeto antifutebol, sua renúncia à tradição de seu país, tivesse afundado seu país na vergonha. Já não importava que tivessem se convencido de que podiam ganhar o campeonato sem jogar nada: só na força, só na camisa amarela, só no blablablá. Já não importava que acreditassem que o futebol não era o futebol.

    E não importava que a Alemanha tivesse jogado uma partida assustadora, com uma movimentação perfeita da bola e dos jogadores, que giravam e apareciam e desapareciam e se destacam como se fossem uma máquina germânica. E importava menos que tenham recorrido a velhos códigos de pelada de rua para não golear além do necessário: para serem condescendentes com suas vítimas.

    E menos ainda que milhares de torcedores brasileiros tenham tirado sarro de seus próprios jogadores, fazendo coros de "olé" para os passes de seus algozes. E menos, menos ainda, que gente tão sábia como José Mourinho ou Edson Pelé tenha anunciado sem a menor hesitação a vitória brasileira.

    Começava a importar a história: como se contará, de agora adiante, essa noite impensável. Até o momento parece se impor a obrigação da catástrofe: falou-se tanto, nos últimos meses, o quão tenebroso seria para os brasileiros não ganhar sua Copa que agora milhões terão de encontrar suas maneiras de viver o naufrágio.

    Serão, sem dúvida, dias duros para muitos. Mas, depois, este jogo continuará a ser jogado. Será jogado ao infinito. Às vezes, muito de quando em quando, acontecem coisas que justificam tudo. De súbito, em algum momento, talvez quando o sexto gol culminou a melhor jogada coletiva do torneio, soubemos para que haviam realizado este Mundial: para que, enquanto houver futebol, o futebol se lembre desse jogo.

    MARTÍN CAPARRÓS, 57, é jornalista e escritor argentino. O texto aqui publicado foi originalmente postado no blog do autor, "Pamplinas", no site do jornal "El País".

    CASSIANO ELEK MACHADO, 38, é editor da "Ilustríssima".

    MOACYR LOPES JUNIOR, 46, é repórter fotográfico da Folha.

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