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    Salvador Dalí desenha Sigmund Freud

    CRAIG BROWN

    20/07/2014 03h28

    Elsworthy Road, 39, Londres
    19 de julho de 1938

    Ao longo dos anos, Salvador Dalí fez três tentativas de conhecer Sigmund Freud, todas em vão. Cada vez que telefona para a casa do fundador da psicanálise, em Viena, é informado de que ele está em viagem, por razões de saúde. Então Dalí sai andando pela cidade e come tortas de chocolate. "À noite eu tinha longas conversas imaginárias com Freud; um dia ele veio comigo para casa e ficou a noite inteira agarrado às cortinas do meu quatro no Hotel Sacher."

    Quando A interpretação dos sonhos ganhou a primeira tradução para o espanhol, em 1922, Dalí se tornou um freudiano fanático. "O livro foi uma das descobertas mais importantes da minha vida, e fui tomado por um verdadeiro vício pela autointerpretação, não apenas dos meus sonhos, mas de tudo o que me acontecia, por mais acidental que pudesse parecer à primeira vista." Desse momento em diante, as suas pinturas passam a ser mais aberta e deliberadamente freudianas, com símbolos sexuais justapostos a estranhas paisagens oníricas.

    Divulgação
    O pintor espanhol Salvador Dalí, em 1956 ilustrando o livro "Dom Quixote", em Paris.
    O pintor espanhol Salvador Dalí, em 1956 ilustrando o livro "Dom Quixote", em Paris.

    Em junho de 1938, aos 34 anos, Dalí está num restaurante em Paris, empanturrando-se com um prato de escargots. Por acaso, olha para a mesa ao lado e vê uma fotografia de Freud na primeira página do jornal que o comensal está lendo: o mundialmente famoso1 fundador da psicanálise acaba de chegar à capital francesa, a caminho de Londres, depois de embarcar de última hora num voo de Viena, cidade onde viveu por 79 anos e que agora está ocupada pelos nazistas.

    Dalí olha de volta para o prato e dá um berro. "Naquele instante eu descobri o segredo morfológico de Freud! O crânio de Freud é um caramujo! O cérebro dele tem a forma de uma espiral - para ser extraído com uma agulha!"

    Essa revelação improvável enche Dalí de entusiasmo e revigora a campanha para encontrar seu herói. Por meio do mecenas surrealista Edward James, ele entra em contato com o escritor Stefan Zweig, notório admirador de sua obra e amigo íntimo de Freud. Zweig escreve três cartas a Freud em nome de Dalí, sugerindo que o pintor faça um retrato dele e explicando que Dalí é "o único pintor de gênio em nossa época" e "o mais grato e fiel discípulo das suas ideias entre os artistas".

    Em sua terceira e última carta, datada da véspera do encontro, Zweig escreve: "Por anos a fio conhecer você tem sido o desejo desse verdadeiro gênio. Ele afirma que a arte dele deve mais a você do que a qualquer outra pessoa []. Está em Paris por apenas dois dias (é catalão) e não vai atrapalhar a nossa conversa [...]. Salvador Dalí teria gostado, é claro, de lhe mostrar as suas obras numa exposição. Sabemos, contudo, que você reluta em sair de casa, quase nunca sai, portanto ele se dispõe a trazer aqui sua última pintura - a meu ver, a mais bela de todas".

    A reunião é marcada para o dia 19 de julho, na primeira casa de Freud em Londres, perto de Primrose Hill. Por acaso, quando está próximo da casa, em companhia de Stefan Zweig e Edward James, Dalí vê algo extraordinariamente significativo, o que acontece com muita frequência. "Vi uma bicicleta encostada a uma parede e, no selim, amarrada por um barbante, uma bolsa de água quente vermelha que parecia estar cheia de água, e um caramujo em cima dela!"

    Sigmund Freud está com 82 anos, morrendo do câncer na mandíbula que o vem afligindo nos últimos dezesseis anos. Sofreu recentemente uma crise de surdez, por isso fala muito pouco com Dalí - que, em todo caso, não fala alemão nem inglês. Mas Dalí não se deixa abalar pelo silêncio de Freud. "Nós nos devoramos um ao outro com os olhos", declarou o pintor.

    Conforme o combinado, Dalí mostra a Freud a sua recente pintura Metamorfose de Narciso, em que Narciso está nu, numa paisagem árida, encarando a própria imagem refletida na água. Ao lado dele, como que espelhando os seus contornos, há uma mão de pedra segurando um ovo, do qual brota uma flor, um narciso. Ao fundo há várias figuras nuas, e no primeiro plano vê-se um caranguejo. Freud observa e analisa a tela com a sua costumeira intensidade. "Até agora", ele comentou com Zweig no dia seguinte, "eu estava inclinado a considerar que todos os surrealistas - que aparentemente adotaram-me como seu santo padroeiro - eram 100% idiotas (ou, melhor dizendo, assim como o álcool, 95%). Esse jovem espanhol, com seus olhos ingênuos e fanáticos e sua técnica sem dúvida perfeita, sugeriu-me uma avaliação diferente. Na verdade, seria muito interessante explorar analiticamente o desenvolvimento de uma pintura como essa [...]."

    Enquanto Zweig e James conversam com Freud, Dalí saca o seu caderno de desenho e faz, às escondidas, um croqui da cabeça de Freud; o resultado guarda semelhança tanto com o criador da psicanálise quanto com um caramujo. Preocupado com a possibilidade de que o desenho choque Freud pela estranheza de sua aparência na visão de Dalí, Zweig consegue evitar que Sigmund veja o esboço.

    Dalí recordaria o encontro como uma das experiências mais importantes de sua vida. Sempre que tem a oportunidade, gaba-se de ter forçado o fundador da psicanálise a reconsiderar totalmente a sua visão sobre o surrealismo. Numa carta ao colega surrealista André Breton, escreve: "Ele comentou (mostrei-lhe uma de minhas telas) que 'nas pinturas dos Antigos Mestres a tendência é que o observador procure imediatamente o inconsciente, ao passo que basta uma única olhada numa tela surrealista para que o observador sinta o impulso de buscar imediatamente o consciente'". Dalí acrescenta que julga ser essa declaração "a morte do surrealismo como doutrina, como seita, como 'ismo', ao mesmo tempo que confirmava a validade do movimento como 'um estado de espírito'".2

    E o que Freud achou de Salvador Dalí? Enquanto o pintor - com os olhos ardentes de empolgação - desenhava o grande psicanalista, Freud inclinou-se para Edward James e sussurrou, em alemão: "Esse rapaz parece um fanático. Se todos os espanhóis forem assim, não é de admirar que haja uma guerra civil na Espanha".3

    NOTAS:
    1. Ao completar recentemente os seus oitenta anos, Freud recebeu cumprimentos de Thomas Mann, H. G. Wells, Albert Schweitzer e Albert Einstein, entre outros.

    2. Dez anos depois, numa entrevista a Malcolm Muggeridge no programa Panorama, da bbc, Dalí parecerá ter seguido em frente e mudado de ideia. "Todas as suas maravilhosas piadas que todos nós conhecemos - táxis com chuva dentro e assim por diante", disse Muggeridge. "O senhor vai continuar com essas piadas?"

    "Ah, eso corresponde à primeira fase da minha vida", respondeu Dalí. "Naquele momento eu estava muito interessado na psicanálise, fui a Londres para conhecer le doutor Freud. Mas agora o meu único interesse é sobre o treee-mendo progresso das pesquisas atômicas e a física nuclear."

    "Então aquilo realmente representou uma fase da sua carreira, todas aquelas piadas que conhecemos tão bem, e agora o senhor evoluiu e seguiu em frente, e a sua vida seguirá no ritmo da explosão atômica?"
    "Exatamente, um novo tipo de, hã, misticismo atômico e nuclear."

    "Pois bem, muito obrigado, essa é uma expressão fascinante, 'misticismo nuclear'."

    3. Lucian Freud recordaria o avô como alguém "que sempre parecia estar de bom humor. Ele tinha o que muitas pessoas realmente inteligentes têm: a tendência de não serem sérias nem solenes, como se estivessem tão certas e seguras do que estão dizendo que não sentem a necessidade de demonstrar afetação nem gravidade".

    *

    Este texto é um capítulo do livro "Um por Um", de Craig Brown, lançado pela editora Três Estrelas. [trad. Renato Marques; R$ 59,90 (536 págs.)]

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