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    Um álbum para Lady Laet, por José Luiz Passos

    JOSÉ LUIZ PASSOS
    ilustração ADAMS CARVALHO

    27/07/2014 03h19

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo faz parte do próximo romance de José Luiz Passos, que será lançado em 2015 pela Alfaguara. A história de uma aspirante a atriz que mora em Los Angeles e é convencida pelo ex-empresário de sua mãe a escrever uma biografia dela é o texto inédito que o autor levará para a 1ª edição da Escola de Inverno de Tradução Literária promovida pelo British Council na Flip. Doze tradutores foram selecionados para um workshop que também terá o britânico Sam Byers e os tradutores Paulo Henriques Britto e Daniel Hahn.

    *

    Na foto de minha mãe que mais me incomoda, ela está estirada no colo de cinco homens sentados num sofá branco. Minha mãe traja um vestido goiaba, ou salmão, e sapatos de salto. Com uma perna cruzada por cima do joelho, a barra do vestido subiu quase toda, mostrando suas coxas. Não há nenhuma exibição da roupa íntima nem nada do gênero, mesmo assim essa imagem me incomoda. Saboia me disse: Menina, essa foto é genial. Muito genial, do cacete mesmo. Vamos usar? Mas falei que não. Ele acha, ou melhor, ele insiste em dizer que hoje em dia qualquer livro, com foto, vende mais. Mesmo que seja apenas uma, porque a imagem tem esse apelo, faz as pessoas imaginarem, ele diz. Elas querem ver mais, ouvir mais, comprar mais, as pessoas, quando veem uma foto.

    Como falei, penso diferente. No meu entender, a história da minha mãe não depende das fotografias que ela própria tirou, nem das que circulam por aí com ela no palco.

    Os cinco homens na foto de que Saboia tanto gosta foram importantes para minha mãe. Ela conhecia cada um deles muito bem. Talvez por isso sua expressão seja tão boba. Uma mão apoiada na perna de um deles e o outro braço jogado por cima da cabeça, detrás dos cabelos, sorrindo de lábios apertados, sem mostrar os dentes. Hoje, se fosse filmar um mero comercial, com certeza iriam lhe pedir: Alegria, amiga, sorria mais, é. Assim, abrindo mesmo. Mas nem imagino a grande Neide Laet fazendo isso.

    Saboia me contou que minha mãe era totalmente anticomercial. E que nisso estava a força dela e, também, o interesse do meu livro.

    Adams Carvalho

    As canções que minha mãe cantava não eram baladas adolescentes, de amor perdido, incompreendido, impossível, ou da morte chegada antes da hora. Eram histórias de gente buscando rumo, tramando um caminho juntos, com olhos numa segunda vida. As melhores canções de Neide Laet começam com "Ladeira", meu álbum preferido entre os primeiros. E o resto, como diz a própria letra, veio vindo porque vinha pelo meio.

    Num dos últimos shows de minha mãe, dizem que ela de repente parou, foi sentar na plateia e passou a ouvir outra banda fazendo um cover, um longo cover, das músicas que ela costumava interpretar. O tal rapaz cantava uma oitava acima da própria voz, praticamente em falsete. A grande Neide se emocionou, me disseram, ouvindo trechos de uma carreira que, dali para trás, alcançava a marca dos trinta anos. E qual era o nome dessa banda? Saboia não soube me dizer, falou que não se lembrava mais, que não era importante. Mas Neide não tinha se emocionado ouvindo esses rapazes? Como, então, que não era importante?

    Na foto de que Saboia tanto gosta, as mangas do vestido goiaba e o permanente não deixam dúvidas, é a década morta, com suas cores vibrantes. Rosa-choque, vermelho, preto e branco, cabelos armados, ombreiras, calças largas, pregas, muitas pregas, a jaqueta curta com luvinhas e, de vez em quando, uma boina ou um chapéu de feltro pendendo de lado. Por que os homens do sofá não se vestem com o mesmo apuro? Neide parece que vem de uma festa, e eles, da praia. Um inclusive usa óculos de sol, outro traja uma camiseta cavada, de mangas curtas, refeita a tesouradas.

    Minha amiga Hani Kalfayan falou que os penteados desses homens eram uma grande salada de épocas. Por eles, apenas, não se poderia datar essa foto.

    *

    Hani disse que visitou a outra família do seu pai uma única vez, há uns dez anos. Na época, ela ainda morava com o irmão menor. Os dois foram a Beirute conhecer a nova mulher com quem o pai teve mais três filhos. Hani tem cabelos escuros, ondulados e longos, a pele clara. Gosta de falar alto e tem os dedos compridos. Plus, I'm so freakishly tall, ela costuma dizer, porque se acha esquisita, de tão alta. Foi Hani quem mais me deu força quando comecei a biografia da minha mãe. Na época, dividíamos uma quitinete em West Los Angeles, e ela me ouviu conversando com Saboia a respeito disso: se seria ou não difícil demais, para mim, que a conheci tão pouco, escrever sobre as canções de Neide Laet.

    Hani disse que eu escrevesse. Pois olha o caso dela. Até sua viagem a Beirute, tinha vivido uma vida completamente normal, sem jamais pensar no passado.

    *

    Era raro minha conversa com as meninas da agência ser coisa mais séria. Já com Hani, depois de ouvir a história do pai dela, deixei de ficar com o pé atrás. No dia em que me contou isso, fomos sentar na frente da placa de bronze com o nome de Marilyn Monroe. Pus na jarrinha da lápide a flor que tínhamos apanhado no caminho.

    As estrangeiras acabam saindo juntas e até morando umas com as outras, em apartamentos com três, quatro ou cinco de nós amontoadas, aguardando Daisy ligar com a proposta do dia. Quando ela me vê com Hani, Daisy nos chama de As Espertas ou de As Universitárias. Mas o nome verdadeiro de Daisy não é esse, ninguém sabe qual é. Às vezes ela telefona para Hani no meio da noite, querendo marcar alguma coisa já para o dia seguinte. Se fosse comigo, toparia sempre. Até hoje, fiz o píer de Santa Monica, o observatório do Griffith Park e o prédio do corpo de bombeiros, na Sunset Boulevard.

    Quando não temos nada programado, ou Daisy não telefona, Hani me acompanha até o Memorial Park, onde enterraram a superloura. O sonho de Hani é ser antropóloga. Foi o que ela me disse, diante da paredinha de Marilyn: Anthropologist. Já o meu, ainda não sei qual é. Talvez seja voltar para São Paulo ou escrever um livro sobre a carreira de Neide Laet, o que, segundo Saboia, vem a ser a mesma coisa.
    Hani conheceu Saboia num bico que fizemos no observatório. Ele grudou nela o tempo todo, e fez mal, porque não tem dinheiro para isso. Disse a ele que se Daisy ficasse sabendo dessa encostada em Hani, era eu quem estava frita.

    No caminho de volta, no metrô, tentei contar a ela um pouco do livro sobre a minha mãe e, então, comentei: O velho Saboia não tirou os olhos de cima de você. Hani parece que me entendeu. Abriu a bolsinha e apontou ali para dentro, mostrando uma coisa. Era um tubo com spray de pimenta, dos grandes.

    E rimos feito duas bêbadas.

    JOSÉ LUIZ PASSOS, 42, professor de literatura da Universidade da Califórnia, e escritor, é autor de "O Sonâmbulo Amador" (Alfaguara).

    ADAMS CARVALHO, 35, é ilustrador.

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