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    Leia o conto "Kafka", do crítico Inácio Araujo

    INÁCIO ARAUJO

    03/08/2014 03h22

    Meu nome é Kafka.

    Como o escritor, vou logo avisando, antes que a expressão de pasmo irrompa no rosto do interlocutor ou então vire risada histérica de quem se acredita vítima de uma piada.

    O nome é mesmo esse, Kafka. Ideia do meu pai. O nome, conta-se na família, foi responsável pela trombose que vitimou mamãe e colocou sua vida em risco apenas alguns dias depois do meu nascimento. Desgosto, diziam minhas tias: queria que eu fosse Osvaldo, como o pai dela.

    Meu pai sempre entendeu que eu devia não me envergonhar desse nome, mas honrá-lo. Azar dos ignorantes que nos cercavam. Se tivesse nascido menina, acrescentava, seria Evangelina, homenagem à heroína de Longfellow, que ele tanto amava eu nunca soube por quê. Tudo isso eu ouvi dizer, porque nunca cheguei a vê-lo. Depois do meu nascimento ele se trancou na biblioteca. "Dedicou a vida aos livros", dizia minha mãe, a única que podia entrar no cômodo, para levar comida e recolher os pratos.

    Alessandro Shinoda 16.dez.2010/Folhapress
    Retrato do crítico de cinema Inácio Araújo
    Retrato do crítico de cinema Inácio Araújo

    Passo pelas brincadeiras cruéis das crianças e adolescentes. Elas valeram ao menos a proximidade de Valéria, amiga e depois única namorada, a primeira mulher e a única por quem me senti amado. Ela me aceitava com o nome que tinha, mas não resistiu ao assédio maldoso das amigas, muitas vezes motivado pela ignorância dos textos do verdadeiro Kafka, e que acabou por colaborar de forma decisiva, eu acredito, para a deterioração de nossas relações, que se seguiu à negativa de meu pedido de casamento.

    Preferia mil vezes qualquer um desses nomes incômodos que escuto vez por outra: Roosevelt, Lenin, Napoleão, Fidel, Kennedy. Perto de Kafka parecem triviais. O desconforto provocado por meu nome é frequente e pode surgir nas situações mais diversas. Ele me força, entre outras coisas, a soletrá-lo cada vez que alguém deve anotá-lo, sob pena de me transformar em Cafca, o mais frequente, ou ainda Cafika, Cáfica, Quafika, Kafta, Kaften, Cafkina e outras variantes que aparecem nas cartas que recebo e cujos envelopes coleciono para mostrar aos incrédulos.

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    Urgentes Preparativos para o Fim do Mundo
    Inácio Araujo
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    Nunca ouvi a voz de meu pai. Às vezes esmurrava a porta e perguntava a razão de me ter dado esse nome tão estranho, porém nunca ouvi resposta nem explicação, sinal de arrependimento, ódio ou piedade por mim, sarcasmo: nada. Só o vi uma vez, no dia do enterro de minha mãe. Reconheci sua figura solene, ascética, grave, pelo aceno de cabeça que me dirigiu. Talvez quisesse que eu lhe desse uma palavra naquele momento, ou pedisse a bênção, mas ele me pareceu tão grande, poderoso e assustador à beira daquele túmulo que não tive a audácia de abordá-lo.

    Os amigos mais próximos sugeriram que eu reivindicasse a mudança de nome na Justiça, o que é possível a partir dos 18 anos, agradasse isso ou não ao meu pai. Minha mãe fez campanha: qualquer coisa lhe parecia melhor que Kafka Gomes de Souza. Nunca discordei. Entrei com um processo na Justiça, ajudado por um amigo advogado.

    Como o valor da ação era mínimo e ele precisava sustentar-se, a atenção que dava ao caso era mínima, o que me obrigava a percorrer os sombrios corredores do Fórum, cartórios e varas cíveis em busca de resposta sobre o andamento da causa. Logo, no entanto, algum escriturário que não se dedicava apenas a assistir as novelas da televisão, como quase todos, descobriu meu nome e espalhou a história entre os colegas.

    A partir daí tornei-me vítima do que chamo de boicote gaiato no tribunal. O processo desaparecia misteriosamente para ser encontrado, tempos depois, em outra vara, em algum cartório sem nenhuma relação com o caso. De repente, alguém chegava por trás e informava em voz baixa, quase em sigilo, que o volume estava a caminho, o que me obrigava a permanecer no corredor desde o amanhecer à espera dos papéis desaparecidos. No momento em que algum funcionário mais bondoso, ou fingindo-se tal, por fim me entregava a pasta, ao abri-la, ansiosamente, percebia estar folheando apenas uma sequência de páginas em branco. Quando erguia os olhos, em seguida, ainda desconcertado, via os funcionários atrás do balcão e os advogados que haviam se detido para contemplar a cena e que riam tanto mais quanto maior no meu rosto era a expressão de pasmo.

    Por que, eu perguntava, tanta má vontade? A cada investida, criavam novas desculpas para não me mostrar o volume. "Foi pedido pelo advogado da parte contrária", alegou uma secretária certa vez. Como parte contrária? Não existe parte contrária, falei. Existe, ela insistiu: ou pelo menos passou aqui e requereu os autos para leitura.

    Semanas e semanas depois, o oficial de justiça por fim anunciou que o processo havia voltado ao tribunal. Estava ali, naquela pilha. Ao revolvê-la, no entanto, não o encontrou. A datilógrafa que estava por perto observou distraidamente que fora retirado pelo perito.

    - Que perito? - perguntei.

    - O perito grafólogo - disse -, aquele que deve conferir a veracidade das assinaturas.

    - Não há nada a conferir - falei alto, quase gritei. - É apenas a minha assinatura que está lá.

    - É assim com todos os processos - ela prosseguiu com voz neutra. - Por que o seu seria diferente?

    Outros casos caminhavam, chegavam a termo, deixavam atrás uma multidão de satisfeitos e outra de frustrados. Não o meu. "O advogado perdeu o prazo" era uma desculpa comum. "O processo está prescrito, há que começar tudo outra vez", ameaçou certa vez um escrivão. Desculpas para forçar atrasos, recomeços que levavam uma causa tão simples a se arrastar por anos, o riso pelas costas, o sarcasmo ostensivo, as desculpas esfarrapadas: não poucas vezes me ocorreu que pessoas poderosas, políticos talvez, ou policiais, mexiam os pauzinhos nos altos escalões para dilatar prazos e retardar indefinidamente o andamento do processo. E como descrever o que senti no dia em que vi as costas das folhas onde eram escritas minhas petições sendo usadas como papel de rascunho?

    Decidi abandonar o emprego para permanecer em tempo integral no Fórum, de maneira a adquirir o controle sobre a entrada e saída dos processos. Vivia modestamente com uma mesada que minha mãe depositava mensalmente, às escondidas de papai. Pedia comida num restaurante chinês da rua Galvão Bueno e dormia num banco duro, de madeira escura - o que me custava terríveis dores nas costas ao amanhecer.

    Era o momento em que os corredores se animavam com a chegada dos funcionários. Suas vozes provocavam um agradável eco, a sensação de que a vida voltava a existir. Mais tarde principiava o vaivém dos advogados, quase sempre apressados, em busca de processos, informações, preparando-se nervosamente para alguma audiência. Não raro eram acompanhados pelos clientes, alguns assustados, outros agitados, por vezes estranhamente calmos ou conformados. Tudo isso criava um burburinho forte, em que tanto se podia discutir alguma tese jurídica como preparar o apelo a uma instância superior ou simplesmente conversar sobre o resultado do futebol durante o café. Passei a amar essa vitalidade tanto quanto a detestar a angústia que aquele lugar me transmitia depois que todos iam embora e as luzes se apagavam.

    À noite, todo ruído cessava, o enorme prédio parecia morrer. Como os arredores eram cercados e proibidos à circulação de automóveis, era possível ouvir, no final do dia, um faxineiro passando a vassoura no corredor e recolhendo os papéis jogados. Era quando eu me escondia no banheiro para que ninguém percebesse que continuava no prédio. Tanta persistência valeu uma advertência grave no dia em que dormi demais e fui descoberto pelo guarda de plantão.

    Precisei contar, a partir daí, com a boa vontade dos faxineiros, que também não compreendiam porque o processo se arrastava indefinidamente. Não era nada extraordinário: "Nós faxineiros somos contratados porque não compreendemos nada de nada", explicou um deles. "Somos os invisíveis deste tribunal." Eles sentiam-se solidários com meu sofrimento e sua invisibilidade me convinha: vingavam-se daqueles que os ignoravam e se divertiam me escondendo dos guardas no armário dos produtos de limpeza ou ensinando a me esgueirar de modo a não ser percebido pelos passantes.

    Por essa época, talvez notando que as coisas já passavam dos limites, um meirinho consentiu que eu avistasse o juiz. Foi uma experiência ruim, pois percebi com toda clareza, embora rapidamente, o risinho insinuando-se no canto dos lábios do magistrado, no exato momento em que o funcionário abria a porta da sala de julgamentos.

    Quando lhe perguntei sobre o andamento do caso, ele limitou-se a responder: "Não sei de nada. Nunca esteve comigo. Eu só queria ver esse tal de Kafka, que se tornou tão famoso em nosso meio".

    Nada disso se compara, em matéria de sarcasmo, ao dia em que eu repousava sentado num banco e alguém colocou ao meu lado o corpo agonizante de uma barata. Alguém berrou para que eu despertasse assustado, de modo que ao ver o corpo do inseto minha reação foi dar um salto para o lado a fim de evitá-lo. Ainda criava coragem para esmagar o bicho nojento com o sapato, quando escutei os urros e risadas dos funcionários: não faça isso, não vá esmagar a si mesmo, gritavam agitados.

    Quando chegou o momento de meu processo ser verificado pelo juiz, o verdadeiro, entrei na sala de audiências e já o encontrei sentado à sua mesa, enorme, escura e alta, que me fazia sentir ainda mais ínfimo. Assim procedem os juízes, pensei, para intimidar as partes antes de proclamar a sentença - mas tudo agora correrá bem.

    Logo que tomou a palavra, o juiz perguntou por meu advogado: "Onde se encontra aquele incapaz?". Pôs-se a criticar então os termos da petição, demasiadamente leigos, segundo ele, que lhe impediam de proferir uma sentença favorável ao meu pedido. Tentei retrucar que esse tipo de processo não exigia o uso de linguagem jurídica, mas o nervoso impedia as palavras de saírem claramente da minha boca, surgiam como urros, sons desconexos, como se quisessem dizer outras coisas, capazes apenas de dar conta de meu pasmo e desespero. O juiz ouvia tentando compreender aqueles sons, enquanto o sol, incidindo no vitral da sala, tornou-a repentinamente mais clara. Aos poucos eu conseguia compreender que aquela não era uma sala de tribunal, e sim uma igreja, e que aquele homem de trajes pretos não podia ser um juiz, mas um padre em seu púlpito. "Claro", disse o juiz indiferente, "agora é que vou mandar o processo para um verdadeiro tribunal".

    Estaria eu no lugar errado? Num movimento automático, comecei a mover minha cabeça de um lado para outro, como que negando tudo aquilo, o juiz, a justiça e seus rituais, os guardas, ao mesmo tempo que sentia o suor escorrer copiosamente pelo meu pescoço.

    Pouco a pouco aceitei que aquilo não era um tribunal, nem uma igreja. Recobrando a consciência, percebi com alívio meu quarto, meu teto, meus objetos. Sem falar dos lençóis suados pelo pesadelo. Meu nome não era Kafka, mas Fritz, e minha profissão, funcionário da companhia de trens em Bratislava, encarregado da conferência dos horários.

    Aliviado, tratei de levantar, ainda com a cabeça pesada demais. Procurei acomodar o corpo, ainda pesado, mas mal conseguia movê-lo, minhas costas dançavam nos lençóis encharcados de suor. Um homem precisa de bom sono, pensei. Um pesadelo nos esgota a ponto de o próprio corpo sentir-se mortificado. O que será que acontece comigo? Urgente agora é tomar banho e vestir o uniforme, rapidamente, para não perder a hora do serviço. No entanto, continuo deitado sobre o dorso, tão duro que parece revestido de metal. Quando consigo levantar um pouco a cabeça, diviso apenas um arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados. Comparadas com o resto do corpo, inúmeras pernas, miseravelmente finas, agitam-se desesperadamente. Quem sou eu na vida real? - pois percebo que o pesadelo prossegue, que apenas o cenário mudou, pois esse tipo de coisa não pode acontecer comigo de verdade: não sou esse sonho absurdo, sou um homem, tenho um emprego, um pai. De repente ouço a voz de um faxineiro que tenta me acordar, sussurrando: "Alguém veio dizer que é preciso pagar custas e emolumentos para ter o resultado... Alguém passou e disse isso...".

    Essa não é a voz de um faxineiro, me dou conta a seguir. É a enfermeira que se ocupa do meu pai desde que mamãe morreu que tem essa voz, nunca se sabe se de homem ou mulher. Aos poucos sua voz se torna mais nítida. Ela informa que um homem pergunta por mim, um oficial de justiça, trazendo o resultado de meu processo. Porém é preciso antes pagar custas e emolumentos, repete com um tom de quem não sabe o significado do que está dizendo.

    Enfim, penso. Depois me corrijo: não, isso é o sonho que persiste. A distância entre sonho e vigília tornou-se tão tênue que às vezes não sei mais distingui-los. Será que saí de um sonho para cair em outro? Sem subir a escada, o oficial de justiça berra que o juiz negou meu pedido. Antes que eu consiga perguntar por quê, ele explica que meu nome não pode ser alterado, que ele será sempre esse ou não será. Tento dizer que tenho um nome, outro nome, e que toda essa história não existe, na verdade. Mas ele apenas ri.

    Desço as escadas lentamente e pergunto à enfermeira pelo homem. "Que homem?", pergunta. Esse que passou por aqui agora há pouco. "Ah, nem me lembro mais dele", completa com ar de desinteresse. "Existem assuntos mais graves a tratar: seu pai não me responde desde ontem." É mais uma das brincadeiras infames dele, pensei. Precisava voltar ao Fórum, encontrar o oficial de justiça, pagar o que tivesse de pagar e saber da verdadeira sentença. Lá, no entanto, disseram que nenhum oficial de justiça fora designado para ir a minha casa naquele dia, que devia se tratar de um trote, ou de um falsário. Em compensação, uma escriturária saltou à minha frente eufórica: "Sorria! Se for verdade, você agora é um herdeiro".

    Voltei para casa aflito, onde a enfermeira tentou me informar, entre um soluço e outro, que desconfiara de alguma coisa desde que meu pai parou de devolver os pratos de comida. Após bater e não obter resposta, conseguiu forçar a porta e o encontrou caído sobre a escrivaninha.

    No escritório, acredito ter visto uma quantidade incalculável de livros, dispostos nas estantes e nos vãos entre elas, empilhados no chão, empilhados sobre o divã que lhe servia de leito, atirados sobre a escrivaninha, alguns fechados, outros abertos e repletos de anotações. Era sobre a escrivaninha que seu corpo agora jazia, pesado, inerte, a cabeça apoiada num caderno onde as últimas palavras que se lia eram: "Conheço a resposta: seu nome nunca mudará".

    Na capa estava escrito: K. - volume 32 - caderno 3 - Outono.

    Nas gavetas, dentro da escrivaninha, havia uma enorme quantidade de cadernos, todos idênticos, diferenciados apenas pelas capas, nas quais se liam:

    K. - volume 1 - caderno 1 - Primavera

    K. - volume 1 - caderno 2 - Verão

    K. - volume 1 - caderno 3 - Outono

    e assim sucessivamente.

    Em linhas gerais, cada caderno correspondia a uma estação do ano, e cada volume cobria um ano da minha vida, descrito de maneira minuciosa, exaustiva, como se imaginasse, ou mesmo soubesse por antecipação cada uma das minhas aflições, pensamentos ou mesmo gestos e reações. Soube naquele dia que toda minha vida não fora nem real nem sonhada. Não fora nada mais que a obra demente desse pai oculto, que a ela dedicara seus dias e noites.

    A essa coisa monstruosa, infeliz, ilegível, ele dedicara, na primeira página do vol. I, caderno 1, "àquele que será horrível sombra".
    Agora ela estava concluída. Tenho 32 anos. Aqui também encerra-se o meu caso.

    *

    Este conto faz parte do livro "Urgentes Preparativos para o Fim de Mundo " (Iluminuras, R$ 44, 160 págs.), que o crítico de cinema da Folha Inácio Araujo lança nesta quinta (7), às 18h30, na Livraria da Vila da rua Fradique Coutinho.

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