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    El Greco e a pintura moderna

    JULIUS PURCELL
    DO "FINANCIAL TIMES"

    03/08/2014 03h12

    Duas exposições comemorativas na Espanha revelam outras influências por trás do trabalho do pintor

    Num domingo de maio deste ano, 52 moradores de um vilarejo perto de Burgos, no norte da Espanha, votaram a favor de mudar o nome do povoado. O lugar era conhecido desde 1623 como Castrillo Matajudíos (Castrilo Matajudeus), mas a maioria dos habitantes votou por restaurar seu nome original, Mota de Judíos, ou Monte dos Judeus. O Google Maps já honrou a decisão.

    O ativismo toponímico dessa pequena vila reflete a reavaliação mais ampla que a Espanha vem fazendo de seu fértil e problemático passado judaico. Duas semanas mais tarde o governo espanhol aprovou uma nova lei permitindo que membros da comunidade sefardita mundial –descendentes de judeus espanhóis expulsos após 1492-peçam cidadania espanhola, de modo a ter cidadania dupla. O gesto acompanha uma onda geral de interesse na Espanha por tudo o que diz respeito ao sefarditas, algo que, por sua vez, coloriu as comemorações atuais do quadricentenário da morte de Doménikos Theotokópoulos, ou El Greco.

    Gerard Julien/AFP
    Um visitante passa pela pintura "Cristo Carregando a Cruz" (1600-05), de El Greco
    Um visitante passa pela pintura "Cristo Carregando a Cruz" (1600-05), de El Greco

    O pintor, que nasceu em Creta, incendiou o imaginário coletivo espanhol. A exposição "El Greco e a Pintura Moderna", aberta recentemente no Museu do Prado, em Madri, atrai filas longas. No início deste ano, um quarto de milhão de visitantes viu outra mostra de obras de El Greco na cidade adotiva do pintor, Toledo, onde haverá exposições menores no outono deste ano.

    O local de uma destas, na sinagoga Tránsito, do século 14, é apropriado, em vista do mistério duradouro em torno das origens do pintor. El Greco teria sido judeu? Todas as evidências sugerem que ele foi criado como cristão ortodoxo grego. Mas o romancista Félix Urabayen foi um dos vários escritores espanhóis do início do século 20 que se convenceu da origem judaica (e possivelmente sefardita) de El Grego. "Semita é a cidade", ele escreveu, aludindo a Toledo, "e semita é seu pintor."

    Sob a ditadura do general Franco (1939-75), os tristonhos "caballeros" do pintor eram vistos como a essência da Espanha. Parte do fascínio exercido por sua arte, nos tempos de Urubayen e hoje, parece estar na narrativa contrária que El Greco suscita. Judeu ou não, não há dúvida de que ele foi um outsider -uma figura liminar, que abre novas maneiras de enxergar a realidade.

    Tendo absorvido as cores venezianas e a força romana no estilo bizantino de suas origens, El Greco chegou à Espanha em 1576 e radicou-se em Toledo. No empoeirado e religioso coração do império espanhol, a cidade que ele pintou em suas descrições de narrativas bíblicas é banhada numa luz estranha; é um lugar ao qual o céu às vezes mergulha para revelar-se, como em sua obra-prima "O enterro do conde de Orgaz" (1586-88).

    Embora tivesse ajudado ativamente a marcar o misticismo da Contrarreforma na Espanha, El Greco morreu em 1614 como desajustado. Seus livros revelam uma paixão muito maior pela arquitetura que pelo cristianismo. Seus retratos de personagens bíblicos extáticos fornecem indícios de uma abertura para os outsiders e marginalizados, algo que encontra eco na sensibilidade moderna. O mais curioso de tudo é que ele parece ter vivido em Toledo em proximidade estreita com cristãos novos, em discordância com o espírito inquisitorial da época e sua tenebrosa cruzada em favor da "pureza do sangue".

    A exposição no Museu do Prado, "El Greco e a Pintura Moderna", não trata dos judeus, pelo menos à primeira vista, mas da admiração que artistas do século 20 nutriam pelo pintor, e há uma grande gama de trabalhos expostos de Manet, Rivera, Bacon e Pollock, entre muitos outros. A redescoberta de El Greco no final do século 19 foi motivada não apenas por sua intensidade espiritual, mas também pela natureza sólida e escultural de seus corpos. Uma versão de 1890 de "As Banhistas" revela a dívida inequívoca de Cézanne com ele. Ao ver as formas nuas de "A visão de São João" (c. 1608), Picasso encontrou uma solução formal crucial para "Les Demoiselles d'Avignon" (1907).

    "El Greco projetou uma ideia de sofrimento que encontrou ressonância profunda entre os expressionistas alemães", diz o co-curador da mostra, Javier Barón. Algumas telas de Chagall, Jacob Steinhardt e Chaïm Soutine na mostra revelam uma ressonância semelhante entre judeus do século 20 -não apenas pintores judeus, mas também críticos como Julius Meier-Graefe, o maior proponente de El Greco na Alemanha. O retrato de Meier-Graefe (de 1912) de Lovis Corinth, na mostra, transpôs a distorção à moda de El Greco para a angústia moderna que os nazistas tanto rejeitavam e que mais tarde qualificariam como degenerada.

    As homenagens a El Greco continuam em Toledo. Entre os muitos tesouros da sinagoga Tránsito estão os detalhes mouriscos em gesso de sua sala de orações, repletos de detalhes vegetais e geométricos. Contra esse fundo, uma pintura do artista alemão do movimento Fluxus Wolf Vostell, "Shoah, 1492 a 1945", está sendo exposta ao longo da comemoração de El Greco.

    "Vostell viveu na Espanha durante a ditadura de Franco", diz o curador da sinagoga, Alfredo Mateos. "Como El Greco, era um forasteiro, um outsider em um tempo de ortodoxia imposta pelo Estado."

    Ao longo da tela comprida de Vostell, ao estilo de "Guernica", figuras humanóides são esmagadas por um bloco de concreto na forma de uma cruz distorcida. Mateos observa que as datas do título da pintura, 1492 a 1945, deixam muitos visitantes espanhóis incomodados. Alguns reagem com indignação à vinculação entre a expulsão dos judeus da Espanha e o Holocausto.

    Mateos diz que quando mergulhamos mais fundo nas reações a El Greco vistas em épocas diferentes, vemos outros vínculos reveladores com os marginalizados. Na década de 1920, o escritor espanhol Gregorio Marañón argumentou que os corpos nos retratos de apóstolos de El Greco eram estranhamente atenuados porque o pintor usava loucos como modelos. Numa hipótese anterior, Marañón sugeriu que El Greco teria usado judeus convertidos como modelos das figuras dos apóstolos.

    Muito antes da chegada de El Greco, a cidade já era um centro movimentado de tradução feita por estudiosos judeus, cristãos e muçulmanos sob o rei católico Afonso X. Esse período é evocado num projeto Artangel permanente criado para quadricentenário de El Greco pela escultora Cristina Iglesias e intitulado "Três Águas". Em um dos locais refeitos por Iglesias, as pedras que pavimentavam a Plaza del Ayuntamiento foram tiradas para "revelar" um riacho que flui abaixo, passando sobre raízes retorcidas.

    Antonio Illán, crítico de arte do jornal espanhol "ABC" que já escreveu extensamente sobre as ligações judaicas com El Greco, tem uma razão especial para se emocionar com as imagens dessas raízes. "Illán é um sobrenome toledano antigo", explica. "Significa 'árvore' em hebraico."

    Illán admite que El Greco talvez não tenha sido judeu, mas diz que é notável que os colegas mais próximos do pintor, além de sua amante e mãe de seu filho, tenham sido cristãos novos. Algumas bizarrices pictóricas, como a que é vista em "Alegoria da ordem Camaldolese" (c. 1599), também o intrigam. "Neste quadro, a vegetação assume a forma de uma menorá judaica. É uma das várias leituras de duplo sentido que encontramos na obra de El Greco."

    Mateos concorda que a arte de El Greco fascina em parte porque nos leva a procurar discernir o que está debaixo da superfície. "Ainda estamos ouvindo esse discurso oficial de El Greco como 'a alma da Espanha', e acho que as pessoas percebem que não é bem assim. As pessoas comuns conseguem sentir a heterodoxia desse pintor."

    De volta ao Prado, os visitantes podem estudar o "Rabino de Vitebsk" (1914), de Chagall, influenciado por El Greco. E podem contemplar a dor que pesa sobre o autorretrato "Ouve, Israel" (1955), de David Bomberg, inspirado em "Cristo carregando a cruz", de El Greco, e refletir que, mesmo na angústia particular do século 20, os pintores judeus puderam sentir sua heterodoxia.

    Tradução de CLARA ALLAIN

    "El Greco e a Pintura Moderna", Museo del Prado, Madri, até 5 de outubro. www.museodelprado.es/en

    "Shoah", Wolf Vostell, Sinagoga del Tránsito, Museo Sefardí de Toledo, até 30 de janeiro de 2015, museosefardi.mcu.es

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