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    Bienal de Veneza revê legado da arquitetura moderna

    GABRIEL KOGAN

    24/08/2014 03h23

    A centenária arquitetura moderna resultou em fracasso retumbante ou sucesso nunca antes visto na história da arte? Esta é a questão que paira sobre a Bienal de Arquitetura de Veneza, aberta ao público até o dia 23 de novembro. A curadoria de Rem Koolhaas, conhecido por sua inventividade e crítica ácida, trouxe a expectativa de uma exposição reflexiva sobre o estado-da-arte da arquitetura, em vez de um previsível amontoado de projetos. O holandês, ganhador do Pritzker em 2000 e um dos homens mais influentes do mundo segundo a revista "Time", não decepcionou. O resultado é um exame crítico do legado deixado pelo último século.

    Andrea Avezzù/Cortesia da Biennale di Venezia
    O pavilhão da França exibiu um modelo da Villa Arpel do filme "Meu Tio", de Jacques Tati
    O pavilhão da França exibiu um modelo da Villa Arpel do filme "Meu Tio", de Jacques Tati

    Quando os pioneiros modernos -como Moisei Ginzburg, Vladimir Tatlin, Le Corbuiser e Walter Gropius- lançaram as bases do movimento, os objetivos sociais eram claros: construir infraestrutura e habitação, tanto na União Soviética em rápida urbanização, como na Europa Ocidental devastada pela Primeira Guerra. As soluções convergiam para a industrialização por meio do domínio das técnicas produtivas para massificação da arquitetura, até então uma exclusividade das elites. Essas premissas guiavam desde construtivistas soviéticos que viam no desenho um viés revolucionário, até sociais-democratas conclamando o poder da arquitetura para desenvolver o estado de bem estar social e conter revoltas.

    FUNDAMENTAL

    Na "Bienal Fundamentals" -resultado de dois anos de pesquisa de seu escritório AMO junto com 24 alunos de Harvard -, Koolhaas se vira para os rumos tomados agora pela tão sonhada difusão da construção. As mostras "Elements of Architecture" e "Monditalia" -que juntas compõe a curadoria central- não expõem obras dos mestres do século 20, muito menos dos arquitetos-celebridades atuais. "É uma Bienal sobre arquitetura, não sobre arquitetos", justifica o holandês ao ir radicalmente à essência dos elementos construtivos de qualquer edifício hoje, em qualquer lugar no mundo.

    Para a "Elements of Architecture", no Giardini, criou então uma classificação própria de 15 itens básicos: piso, parede, forro, teto, porta, janela, fachada, varanda, corredor, lareira, banheiro, escada, escada rolante, elevador e rampa. As salas trazem coleções iconográficas de técnicas e formas dessas peças desenvolvidas ao longo dos últimos 100 anos, representando a era moderna da arquitetura.

    Uma seleção de 67 diferentes janelas dos 5.000 itens da Brooking National Collection do Reino Unido traduzem a incrível diversidade de tipologias desse elemento. Todas ficam penduradas em uma parede branca, como em uma coleção de selos gigantes. A catalogação de elementos construtivos reaparece nas salas sobre vasos sanitários, portas e paredes, evidenciando o desenvolvimento tecnológico industrial. Estamos diante de uma espécie de museu -não de história natural-, mas de história artificial, com uma classificação botânica própria.

    Sobre a lareira -"a melhor forma de dominação do fogo pelo homem", segundo o curador– são apresentados dispositivos altamente tecnológicos como um termostato digital que informa a concessionária sobre a previsão de consumo energético. Koolhaas se põe ao lado desse pequeno objeto e, com um raro sorriso, explica: "Antigamente, os elementos da arquitetura não ouviam nem falavam, agora, cada vez mais, eles se comunicam conosco".

    Há nessa Bienal uma admiração incontestável pelos avanços tecnológicos, pelos gadgets da vida doméstica e pela popularização das tecnologias. A arquitetura é hoje pop e isso é expresso pelo filme que abre a mostra -feito pela sequência de centenas de cenas avulsas extraídas de blockbusters do cinema, reeditadas para transformar os próprios elementos arquitetônicos em personagens principais. Mesmo vindo originalmente de diferentes filmes, as cenas estabelecem continuidade entre si, constituindo um fluxo narrativo de imagens.

    Se olhada sob a ótica da técnica e da difusão do acesso à arquitetura, a exposição é otimista sobre os desdobramentos do moderno. Estaríamos, portanto, em um estágio de supermodernismo, quando a arquitetura consegue se aliar à indústria para espalhar tecnologias por toda a cidade? Koolhaas esboça deslumbramento pela técnica, mas essa seria uma leitura parcial da exposição. As contradições do mundo da arquitetura contemporânea são reveladas pelo percurso expositivo.

    Se o movimento moderno exacerbava a técnica, não fazia isso sem entender a arquitetura como arte. O conceito de uma arte total tinha na arquitetura do século 20 o seu principal ponto de referência. Veio de Piet Mondrian -um artista, não exatamente arquiteto- as declarações mais contundentes desse sentimento moderno: "Arquitetura, escultura, pintura e artes decorativas se fundirão numa arquitetura-do-nosso-ambiente", profetizava o holandês em 1922. E sobre isso a Bienal de 2014 parece debater fracassos, mais do que sucessos.

    Ao percorrer as salas repletas de elementos construtivos é inevitável não se lembrar de lojas de material para casa, como a famosa sueca IKEA, a qual Koolhaas já explicitou em 2011 seus sentimentos quando perguntado sobre o urbanismo na Holanda: "é uma situação muito trágica; no século 17 tínhamos pequenas casas urbanas; na década de 1960, grandes blocos modernos; daí a economia de mercado veio e temos isso", desenhando um container da IKEA. "Esta é a história da Holanda". E essa parece ser a história alternativa da arquitetura contada agora em Veneza; o fracasso criativo e social que intersecciona o triunfo da técnica.

    Estaria o curador nos confessando então que a arquitetura foi convertida em simples escolha comercial? Ao arquiteto bastaria apenas optar pela solução que melhor convém para cada um dos 15 elementos arquitetônicos e assim criar um edifício, como em uma compra no supermercado? E então a arquitetura se colocaria a serviço da técnica -e não ao contrário- e o arquiteto seria um mero tecnocrata constrangido pela indústria, sem arte, sem poesia, sem futuro? Essa discussão levou o jornal britânico "Financial Times", a publicar um caderno inteiro sobre a Bienal intitulado "O fim da arquitetura", anunciando uma espécie de morte prematura.

    Nem a morte, nem a vida da arquitetura. A força da exposição está na relação dialética do legado moderno: sucesso e fracasso entre técnica e arte. Koolhaas expõe essa relação complexa na sala sobre rampas. O elemento é discutido a partir do trabalho de dois personagens pouco conhecidos, Tim Nugent -que estudou rampas por 40 anos para criar diretrizes de acessibilidade universal para cadeirantes- e Claude Parent -que projetou uma casa inclinada, desafiando a vida cotidiana. "Contrapõe-se aqui o trabalho sobre o direito democrático de locomoção e um devaneio vanguardista. O meu coração tende a bater do lado errado nessa sala; da experimentação poética de Parent", diz o holandês.

    A ITÁLIA COMO O MUNDO

    Se a "Elements of Architecture" discute a arquitetura a partir de uma abordagem econômica, a "Monditalia", no Arsenale, trata da política. A exposição revela criticamente as políticas públicas das principais cidades italianas por meio de obras multimídias. Música, teatro, espetáculos de dança ao vivo, arte, filmes e arquitetura convivem no mesmo espaço, criando um observatório interativo de questões sensíveis da sociedade italiana. Soa, no entanto, inconsistente a restrição nacional justamente porque a "Bienal Fundamentals" defende a inexistência contemporânea de "terroirs" locais.

    Há, de qualquer forma, poderosas sínteses em "Moditalia" dos problemas atuais do urbanismo e da arquitetura como, por exemplo, o documentário "La Maddalena" de Ila Bêka e Louise Lemoine sobre um projeto inacabado do arquiteto Stefano Boeri. O seu gigantesco complexo de eventos na Sardenha deveria receber uma reunião do G8, mas depois do terremoto em Aquila em 2009, o então presidente Silvio Berlusconi -que não gostava dos edifícios contemporâneos na ilha- decidiu mudar a conferência para o local atingindo pelo desastre. O filme é um retrato impressionante sobre o gasto de dinheiro público e do drama psicológico vivido pelo arquiteto por causa disso. A relação de submissão da arquitetura perante a política é uma contradição presente desde os primórdios modernos, quando, por exemplo, Le Corbuiser rodava o mundo ávido por novos projetos públicos.

    PAVILHÕES NACIONAIS

    As questões formuladas nas duas exposições centrais estão tão latentes hoje que alguns pavilhões nacionais -sob o tema geral "Absorvendo Modernidade 1914-2014" e com curadorias independentes- parecem verdadeiras extensões das mostras de Koolhaas. A representação de Israel, pela segunda edição consecutiva, apresenta uma visão surpreendentemente crítica ao sionismo. Máquinas dispostas pelo pavilhão desenham mapas de cidades israelenses, ocupações em territórios, em um chão de areia. São robôs artistas com seus braços mecânicos. A tecnologia do país e a tradição moderna bauhausiana são retratadas a serviço do controle territorial.

    O pavilhão francês, feito por Jean Louis Cohen e co-curado pela brasileira Vanessa Grossman, intersecciona os paradoxos modernos a partir do cinema do país. O espaço é organizado por uma maquete da Villa Arpel do filme "Meu Tio", de Jacques Tati. Na película, criando situações cômicas, a casa releva o conflito entre antigas formas de vida e as modernas tecnologias domésticas. Jean-Luc Godard aparece para retratar a solidão em espaços dos conjuntos habitacionais franceses da década de 1960 e a contradição entre o suprimento de casas pelo Estado e a poesia (ou ausência dela) da vida cotidiana.

    O pequeno pavilhão do Chile é, no entanto, a mais contundente representação nacional, expondo um achado arqueológico: uma placa de concreto moldada em uma fábrica presenteada em 1972 pela União Soviética para Salvador Allende que assinou o elemento. Depois do golpe militar, Pinochet encobriu o autógrafo com massa branca e a placa -feita para edificar casas- virou um altar religioso. O resquício arqueológico da modernidade é contradição em puro concreto, contém o cerne dos paradoxos da arquitetura hoje: por vezes refém da técnica e da política; por vezes fetichista ou saudosa do moderno; por vezes avessa às raízes modernas ou pura repetição; por vezes eterna ou efêmera; por vezes distante da poesia e enraizada no campo das possibilidades. Achamos modernidade em nossas escavações, mas isso nos basta?

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