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    Nenhuma estrela de Hollywood poderá ser tão estrela quanto Lauren Bacall

    VANESSA THORPE
    DO "OBSERVER"

    24/08/2014 03h22

    As grandes estrelas da era de ouro eram glamurosas e, graças ao controle de imagem exercido pelos estúdios, intocáveis. Mas será que era mais fácil lidar com a fama naquela época do que é na era da internet?

    Na cerimônia do Oscar de dez anos atrás -aquela em que o terceiro filme "O Senhor dos Anéis", de Peter Jackson, levou embora mais um saco de ouro precioso-ainda foi possível dizer que a Velha Hollywood estava sendo festejada ao lado da Hollywood moderna. Vários rostos venerados da era de ouro do cinema se espalhavam pelo auditório do Kodak Theatre. Em um momento, Tom Hanks subiu ao palco para fazer uma homenagem especial ao comediante Bob Hope, com 101 anos na época, e mais tarde Julia Roberts fez o mesmo para Katharine Hepburn, então com 96.

    A sequência "em memória" de 2004 rendeu homenagem a Donald O'Connor, de "Cantando na Chuva", a Gregory Peck, Elia Kazan e Ann Miller, a idosa dançarina em musicais que apenas pouco tempo antes tinha reaparecido na tela grande para fazer uma ponta como resquício estranho de glamour hollywoodiano em "Cidade dos Sonhos", de David Lynch.

    A morte, na semana passada, de Lauren Bacall, que contracenou com Humphrey Bogart em "Uma Aventura na Martinica", "À Beira do Abismo" e "Paixões em Fúria", levou muitos fãs a lamentar o fim dos últimos talentos realmente grandiosos de Hollywood. Alguns se perguntaram se algum dia haverá outra estrela como ela e como a Los Angeles vulgar e descarada de hoje poderá competir.

    Entre os que expressaram esses sentimentos está Sarah Churchwell, crítica cultural e professora americana de literatura na Universidade de East Anglia, para quem Bacall foi a derradeira de uma sequência de heroínas maduras e fortes. "As estrelas mais fortes da grande era do cinema não começaram em Hollywood -fizeram seus nomes na Broadway", ela disse no fim de semana. "A maioria delas tinha atuado no teatro de variedades. Essas atrizes tinham visto o mundo. Eram profissionais. A maioria delas foi a Hollywood porque era uma maneira de ganhar algum dinheiro atuando. Naquela época o cinema ainda era algo novo. Toda a noção do estrelato no cinema estava apenas começando."

    Churchwell argumenta que a época áurea de Hollywood, entre 1930 e 1950, "é mais notável no que diz respeito à representação das mulheres". Para ela, as mulheres são em grande medida infantilizadas no cinema de hoje. "Basta comparar as vozes das estrelas atuais com as de Bette Davis, Barbara Stanwyck ou Lauren Baccall. Aquelas mulheres eram contraltos -mulheres cultas, elegantes, dotadas de estilo."

    Fora das telas, elas muitas vezes tinham menos poder que as grandes estrelas femininas de 2014. Na tela, porém, representavam personagens combativas, plenamente formadas. "Não eram reduzidas a ser insípidas ou excêntricas", refletiu Churchwell. "Não importa como os diretores como Howard Hawks, Ernst Lubitsch, Billy Wilder ou Frank Capra tratassem as mulheres na vida real, em seus filmes eles criaram mulheres de espírito independente e parecem ter compreendido suas personagens."

    Reprodução
    A atriz Lauren Bacall
    A atriz Lauren Bacall

    Clássicos do cinema noir como "Farewell, My Lovely" ou "Pacto de Sangue" foram influenciados pelo pano de fundo sombrio da guerra na Europa e a depressão econômica. Para Churchwell, havia "um ambiente cultural escuro" que propiciou o surgimento de astros mais velhos e durões como Spencer Tracy, Edward G. Robinson, Clark Gable e Humphrey Bogart.

    Mike Kaplan, produtor de cinema que atuou em "O Jogador", de Robert Altman, acha que a vida das estrelas sempre foi difícil. Falando em Idaho no fim de semana, ele comentou: "Na era de ouro de Lauren Bacall, e na década antes e depois dela, a 'fama de estrela de cinema' era algo muito mais significativo, glamuroso e difícil de conquistar, porque o cinema era a forma de entretenimento dominante."

    Kaplan considera que a televisão e a internet diluíram irreversivelmente o impacto do cinema. "Hoje sabemos muito mais informações pessoais sobre as estrelas do que sabíamos na época em que essas informações eram reveladas a conta-gotas, mantidas em sigilo ou inventadas."

    É uma distinção assinalada nitidamente no novo filme de David Cronenberg, "Maps to the Stars". O filme, que vai estrear no Reino Unido no próximo mês, reflete impiedosamente as cicatrizes cosméticas e os detalhes feios da Hollywood moderna. John Cusack é Stanford Weiss, milionário autor de manuais de autoajuda cujo filho é um astro mirim de proporções grotescas. A irmã do pequeno astro, representada por Mia Wasikowa, é uma piromaníaca que trabalha para uma estrela de cinema em dificuldades representada por Julianne Moore. A personagem de Moore acaba dominando o filme com seu esforço de fazer um remake de um sucesso que tornou famosa sua mãe, já falecida, e tem um caso inapropriado com seu motorista (Robert Pattinson). O crítico do "Guardian" Peter Bradshaw descreveu o filme em Cannes como sendo "povoado por uma galeria macabra de viciados em Hollywood, almas perdidas de alto funcionamento que ocupam pontos diversos na escala de prestígio."

    O título desse pesadelo hollywoodiano distorcido de Cronenberg ("mapas das estrelas") é um trocadilho que faz referência tanto à astrologia new age quando aos mapas turísticos distribuídos em Beverly Hills no passado, identificando as casas dos atores mais famosos. Ônibus de turismo se aproximavam de Pickfair, a famosa mansão de Mary Pickford e Douglas Fairbanks, ou passavam devagar diante da casa de Jimmy Stewart, na esperança de vislumbrar algum sinal de presença estelar. Ainda são promovidos passeios turísticos desse tipo, mas -além do fato de que muitos astros do cinema hoje vivem em Orange County ou Malibu, não em Beverly Hills-quem os turistas poderiam querer vislumbrar hoje? Vale lembrar que, como foi observado no fim de semana, com a morte de Lauren Bacall os grandes nomes citados por Madonna em sua canção "Vogue" todos já morreram.

    Entre a tribo dos grandes astros que ainda vivem, o principal é Kirk Douglas, que está com 97 anos e, sendo pai de Michael, é o fundador de uma quase dinastia. Cronenberg disseca esse tipo de legado familiar em seu filme, não apenas com a caracterização feita por Julianne Moore mas com uma aparição (representando ela própria) da atriz Carrie Fisher, filha de Debbie Reynolds, 82, que contracenou com O'Connor e Gene Kelly em "Cantando na Chuva". Entre as protagonistas de Hollywood ainda sobreviventes estão a favorita de Hitchcock, Tippi Hedren (84), mãe de Melanie Griffiths; Olivia De Havilland, 98 (que, desde o ano passado, sobrevive a sua irmã mais jovem, Joan Fontaine), e Doris Day, que completou 90 em abril. Maureen O'Hara, a ruiva e nascida em Dublin estrela de "Como era verde o meu vale", "Depois do vendaval" e "Rio Grande", entre muitos outros filmes, está com 94 anos.

    Conversando com O'Hara recentemente, Kaplan pôde avaliar se as atrizes de sua era eram mais glamurosas que suas colegas contemporâneas. "Eu estava com os nervos à flor da pele", revelou neste fim de semana, "porque quando era adolescente, era louco por ela. Maureen O'Hara tinha uma qualidade vibrante que era singular e que conferiu intensidade adicional a uma multidão de personagens em dramas, comédias, romances e filmes capa-e-espada. Falamos sobre John Wayne, John Ford e John Garfield e ela recriou a presença deles na sala. Em abril do ano passado ela fez uma aparição rara num festival de cinema em Los Angeles, e a fila de pessoas que esperaram para vê-la foi a mais longa de todos os eventos."

    Churchwell reconhece que era mais fácil para as estrelas do passado manter sua imagem pública imaculada, porque suas carreiras eram administradas rigidamente pelos estúdios. "Elas eram protegidas, mas o sistema também as deglutia e cuspia fora se elas não tivessem os resultados esperados. Havia segurança para os astros que estavam no topo, de modo que um homem gay, como Rock Hudson, podia viver uma vida normal no âmbito privado, mas o sistema foi duríssimo com muitas mulheres jovens, como Veronica Lake e Frances Farmer."

    Quando, com apenas 19 anos, Bacall -na realidade Betty Perske, de Nova York-foi convidada a ir a Hollywood por Hawks para estrelar "Uma Aventura na Martinica", estava tão nervosa que se recordou de ver o cigarro tremer em sua mão sobre o set. Hawks não demorou a descobrir o caso que ela teve com Bogart, que era casado, e a ameaçar acabar com sua carreira. "Você está jogando fora uma chance pela qual qualquer pessoa daria seu braço direito. Não vou tolerar isso", ele lhe teria dito, segundo Bacall. Ele a avisou que um escândalo a levaria a ser relegada a filmes baratos em estúdios Monogram de baixo nível.

    Muitos escândalos de fato arruinaram carreiras e vidas. O astro do cinema mudo Roscoe "Fatty" Arbuckle foi julgado três vezes em 1921 e 1922 pelo estupro e homicídio culposo de uma jovem antes de ser absolvido, mas sua reputação foi reduzida a farrapos.

    Os melhores filmes sobre Hollywood, como "Crepúsculo dos Deuses", de Billy Wilder, sempre refletiram o lado decadente e ilusório da cidade. Mas o brilho do estrelato foi realmente escurecido pela recente sucessão de revelações sobre as vidas áridas ou marcadas por dependências químicas de astros mortos como Philip Seymour Hoffman, River Phoenix, Heath Ledger, Robin Williams e Brittany Murphy.

    Churchwell observa que nos Estados Unidos os astros do cinema funcionam -ou melhor, "desfuncionam"-como uma versão da família real britânica. Independentemente de seu nível de talento, são observados e admirados implacavelmente.

    Talvez o trabalho de ser estrela, então e agora, tenha sido melhor resumido por Lauren Bacall, com modéstia típica. "O estrelato não é uma carreira", ela disse, "é um acidente."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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