• Ilustríssima

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    O boxeador polaco

    EDUARDO HALFON
    tradução LUI FAGUNDES
    ilustração DEBORAH PAIVA

    07/09/2014 02h59

    SOBRE O TEXTO O trecho acima abre o quinto capítulo do romance "O Boxeador Polaco", de Eduardo Halfon. O livro do escritor guatemalteco radicado nos Estados Unidos será lançado em outubro pela editora
    Rocco, como parte da coleção Otra Língua.

    *

    69752. Que era seu número de telefone. Que o tinha tatuado ali, no seu antebraço esquerdo, para não esquecer. Isso me dizia meu avô. E nisso eu acreditei enquanto crescia. Nos anos setenta, os números telefônicos do país tinham cinco dígitos.

    Eu o chamava de Oitze, porque ele me chamava de Oitze, que em ídiche significa alguma coisa brega. Gostava de seu sotaque polaco. Gostava de molhar o mindinho (único traço físico que herdei dele: esse par de mindinhos cada dia mais tortos) em seu copinho de uísque. Gostava de pedir a ele que fizesse desenhos, ainda que na verdade só soubesse fazer um único desenho, traçado vertiginosamente, sempre idêntico, de um sinuoso e desfigurado chapéu. Gostava da cor de beterraba do molho ("jrein", em ídiche) que ele derramava sobre seu bolinho branco de peixe ("guefiltefish", em ídiche). Gostava de acompanhá-lo em suas caminhadas pelo bairro, esse mesmo bairro onde uma noite, no meio de um imenso terreno baldio, havia se espatifado um avião cheio de vacas. Mas acima de tudo gostava daquele número. Seu número.

    Deborah Paiva

    Não demorei muito, no entanto, a perceber a sua brincadeira telefônica, e a importância psicológica dessa brincadeira, e eventualmente, ainda que ninguém nunca admitisse, a origem histórica desse número. Então, quando caminhávamos juntos ou quando ele se punha a desenhar para mim uma série de chapéus, eu ficava vendo aqueles cinco dígitos e, estranhamente feliz, brincava de inventar a cena secreta de como ele os havia conseguido. Meu avô curvado de costas em uma cama de hospital enquanto, montado sobre ele, um imenso comandante alemão (vestido de couro negro) gritava número por número a uma anêmica enfermeira alemã (também vestida de couro negro) e ela então ia entregando-lhe, um por um, os ferros quentes. Ou meu avô sentado em um banquinho de madeira em frente a uma meia-lua de alemães em batas brancas e luvas brancas e luzes brancas amarradas ao redor de suas cabeças, como nas de mineiros, quando de repente um dos alemães balbuciava um número e entrava um palhaço de monociclo e todas as luzes brancas o iluminavam de branco enquanto o palhaço -com um grande marcador cuja mágica tinta verde jamais se apagava- escrevia esse número sobre o antebraço de meu avô, e todos os cientistas alemães aplaudiam. Ou meu avô, de pé na frente de uma bilheteria de cinema, enfiando o braço esquerdo através da redonda abertura no vidro por onde se entregam os bilhetes e, então, do outro lado do guichê, uma alemã gorda e peluda se punha a ajustar os cinco dígitos em um desses carimbos de data variável que os bancos usam (os mesmos carimbos que meu papai mantinha sobre a escrivaninha de seu escritório e com os quais eu tanto gostava de brincar) e, logo, como se fosse uma data importantíssima, estampava-a com ímpeto e para sempre no antebraço de meu avô.

    O Boxeador Polaco
    Eduardo Halfon
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    Assim brincava eu com seu número. Clandestinamente. Hipnotizado por aqueles cinco dígitos verdes e misteriosos que, muito mais que no antebraço, me parecia que ele levava tatuados em alguma parte da alma.

    Verdes e misteriosos até há pouco.

    À meia tarde, sentado no seu velho sofá de couro cor de manteiga, estava tomando um uísque com meu avô.

    Notei que o verde já não era verde, e sim um acinzentado diluído e pálido que me fez pensar em algo apodrecendo. O 7 quase havia se amalgamado com o 5. O 6 e o 9, irreconhecíveis, eram agora dois volumes sem substância, disformes, fora de foco. O 2, em plena fuga, dava a impressão de se haver separado uns quantos milímetros de todos os demais. Observei o rosto de meu avô e imediatamente me dei conta de que, naquele jogo de criança, em cada uma daquelas fantasias de criança, havia-o imaginado já velho, já avô. Como se tivesse nascido um avô ou como se tivesse envelhecido para sempre no momento mesmo que recebeu aquele número que eu agora examinava com tanta meticulosidade.

    Foi em Auschwitz.

    A princípio não estava seguro de tê-lo escutado. Ergui os olhos. Ele estava tapando o número com a mão direita. Uma chuvinha ronronava sobre as telhas.

    Isto, disse esfregando suavemente o antebraço. Foi em Auschwitz, disse. Foi com o boxeador, disse sem me olhar e sem emoção alguma e usando um sotaque que já não era o seu.

    Gostaria de ter perguntado a ele o que sentiu quando finalmente, depois de quase sessenta anos de silêncio, disse algo de verdadeiro sobre a origem do número. Perguntar por que havia dito para mim. Perguntar se soltar palavras armazenadas durante tanto tempo provoca algum efeito liberador. Perguntar se palavras armazenadas durante tanto tempo têm o mesmo gostinho ao deslizarem ásperas sobre a língua. Mas fiquei calado, impaciente, escutando a chuva, temendo algo, talvez a violenta transcendência do momento, talvez que já não me dissesse nada mais, talvez que a verdadeira história por trás desses cinco dígitos não fosse tão fantástica como todas as minhas versões de criança.

    EDUARDO HALFON, 43, é escritor; nascido na Guatemala, vive em Nebraska (EUA).

    LUI FAGUNDES, 53, é jornalista e tradutor.

    DEBORAH PAIVA, 64, é artista plástica.

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