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    Uma batalha judicial pelas obras de Vivian Maier

    RANDY KENNEDY
    DO "NEW YORK TIMES"

    12/09/2014 13h19

    A história da fotógrafa de rua Vivian Maier sempre foi complicada –ela trabalhou por boa parte de sua vida como babá, mantendo segredo sobre sua arte, e apenas depois de sua morte, aos 83 anos em 2009, sem família e vivendo quase na penúria, suas fotos passaram a ser consideradas como um dos mais notáveis legados fotográficos do século 20. Agora, um processo judicial em Chicago, com o objetivo de identificar um herdeiro até recentemente desconhecido, ameaça complicar a disposição de seu legado e pode tirar as obras de Maier de circulação por muitos anos.

    O processo foi aberto em junho por David Deal, antigo fotógrafo comercial e advogado que disse que se deixou fascinar pela vida de Maier quando estava estudando direito, e que por isso havia decidido localizar um herdeiro. Deal diz que o fez porque se indignou ao descobrir que imagens do trabalho de Maier –parte do acervo de mais de 100 mil negativos localizados em uma unidade de armazenagem e vendidos em leilão, e contendo imagens que hoje poderiam valer milhões de dólares– estavam sendo vendidas por pessoas que haviam adquirido negativos do trabalho da fotógrafa mas não eram parentes de Maier, que viveu na França durante a infância e trabalhava em Chicago, onde morreu.

    "Fui fotógrafo comercial freelancer por 20 anos, e depois me tornei advogado", diz Deal, que tem um escritório de advocacia em Orange, Virgínia. "E, como fotógrafo e advogado, a situação me incomoda, o que me levou a pesquisar sobre o assunto".

    O maior proprietário de imagens registradas por Maier é John Maloof, antigo corretor de imóveis em Chicago que comprou dezenas de milhares de negativos por menos de US$ 400, em 2007, e dedicou anos a manter e promover o trabalho da fotógrafa, por meio de galerias comerciais, exposições em museus, livros, e um recente documentário, "Finding Vivian Maier", que ele ajudou a dirigir. Maloof contratou especialistas em genealogia para procurar herdeiros de Maier na França, e posteriormente pagou uma quantia não revelada pelos direitos sobre as obras dela a um homem chamado Sylvain Jaussaud, que especialistas identificaram como seu parente mais próximo, um primo em segundo grau.

    Mas Deal também contratou especialistas em genealogia, e no ano passado viajou a Gap, uma cidade alpina no sudeste da França, o lar de Francis Baille, funcionário público aposentado que ele acredita também ser primo em segundo grau de Maier.

    Baille, que não fazia ideia de que Maier fosse sua parente, concordou em que Deal buscasse obter seu reconhecimento como herdeiro, nos termos da lei dos Estados Unidos. Contatado por telefone na França, sexta-feira, Baille declarou que "por enquanto não quero falar sobre isso". Mas seu advogado francês, Denis Compigne, disse que "a situação é extraordinária. Você decerto pode imaginar como é receber um telefonema sobre alguém que ele nunca conheceu, e já morreu, deixando esse precioso legado. Ele ficou muito, muito surpreso".

    O esforço para determinar se Baille é o parente mais próximo de Maier agora deflagrou um processo que, segundo as autoridades de Chicago, pode levar anos a ser resolvido e resultar na retirada do trabalho de Maier das galerias e museus, até que surja uma conclusão.

    O gabinete do administrador público do condado de Cook, em Chicago, que cuida de espólios até que parentes ou outros herdeiros sejam autorizados judicialmente a fazê-lo, criou um espólio para Maier em 1º de julho e enviou cartas a Maloof e outras pessoas que vendem os trabalhos dela –a preços de até US$ 2 mil por peça– alertando-os sobre possíveis processos quanto às propriedades de Maier. A Stephen Bulger Gallery, de Toronto, que oferece dezenas de imagens de Maier em seu site, recebeu uma carta em 19 de maio do escritório de advocacia Marshall, Gerstein & Borun, representante do espólio em Chicago, solicitando que a galeria preserve todos os documentos relacionados aos trabalhos de Maier e sua venda.

    "Estamos investigando o potencial uso indevido e violação de obras protegidas por direitos autorais detidos pelo espólio", afirmava a carta, acrescentando que o escritório antecipava "abrir processos contra as partes responsáveis, quando da conclusão de nossa investigação". Uma exposição com obras de Maier está em cartaz na galeria de Toronto.

    Maier de alguma forma conseguiu levar adiante seu trabalho fotográfico com zelo obstinado, enquanto tomava conta de crianças de famílias ricas, a partir dos anos 50. Ela trabalhava nas ruas de Chicago e Nova York com uma câmera Rolleiflex de formato médio. Quando morreu, boa parte de suas imagens não haviam sido reproduzidas em cópias fotográficas, mas a divulgação realizada por Maloof e outros levou os críticos a começar a comparar seu olhar compassivo, divertido e ocasionalmente incandescente aos trabalhos de Robert Frank, Lee Friedlander e Weegee. Roberta Smith, no "New York Times", disse que as fotos dela "podem expandir a história da fotografia de rua do século 20 ao resumi-la com meticulosidade quase enciclopédica".

    Em entrevista por telefone, Maloof disse que ele e as pessoas com quem colabora para vender os trabalhos de Maier –um pequeno batalhão incluindo produtores de cópias fotográficas e a Howard Greenberg Gallery, de Nova York– agora estão no limbo, esperando por conselhos de seus advogados sobre continuar ou não as vendas e o fornecimento de imagens a museus e a editoras. Este ano, houve mais de uma dúzia de mostras do trabalho de Maier em museus e galerias comerciais nos Estados Unidos e na Europa.

    Sob as leis federais de direitos autorais dos Estados Unidos, ser dono do negativo ou de uma cópia do trabalho de um fotógrafo é distinto de ser dono do direito autoral sobre a obra. O detentor dos direitos autorais controla a reprodução e venda das imagens.

    Maloof disse que estava trabalhando há mais de um ano para registrar direitos autorais sobre as imagens nos negativos que controla, com base em seu acordo com o homem que considera ser o legítimo herdeiro de Maier, mas que as solicitações de direitos autorais que fez ainda estão pendentes. (Em suas pesquisas, ele disse que também encontrou o nome de Baille, mas que chegou à conclusão, com base na opinião de seus consultores genealógicos e advogados, de que Jaussaud era o herdeiro mais próximo, em termos judiciais.)

    "Minha obsessão desde o começo era tentar descobrir quem era Vivian Maier e se ela tinha herdeiros", disse Maloof. "Sempre tentei agir da maneira ética e legal mais lisa que pudesse".

    Quanto à possibilidade de que o processo judicial tire o trabalho de Maier de circulação, ele disse que "é meio triste. Tenho forte apego emocional ao trabalho dela, e me sinto muito protetor quanto a ele. Jamais permiti que nada fosse feito com ele sem que fosse da mais alta qualidade".

    Maloof diz que só havia começado a ganhar dinheiro com o arquivo este ano, depois de anos investindo seu capital na preservação, digitalização e promoção das obras.

    Deal disse que em sua opinião era "profundamente injusto" que Maloof e outros detentores de obras de Maier lucrassem com as peças, e não os herdeiros da fotógrafa. (O outro grande proprietário de obras de Maier, Jeffrey Goldstein, de Chicago, tem 17,5 mil negativos. Goldstein declarou na sexta-feira que tinha cancelado os acordos com as galerias que vendem peças que ele controla, e que as vendas seriam suspensas até o final da sexta-feira.)

    "Nenhum desses caras têm direitos autorais", acrescentou Deal. "O que eles estão fazendo representa uma violação das leis federais".

    Quanto ao que Baille espera ganhar com o processo judicial, disse Deal, "o interesse dele é apenas ser remunerado da maneira que tem direito legal a ser".

    Perguntado sobre se ele tinha um acordo com Baille quanto a um possível papel na gestão do espólio, ou se pretendia lucrar com o espólio, Deal disse que "reduzi dramaticamente meus honorários habituais, para defender esse cliente, e coloquei muito dinheiro meu no trabalho. Se eu sair da história sem perder dinheiro, já seria aceitável para mim, porque acredito que esse será o caso judicial mais interessante de minha carreira".

    Joanne Zlotek, diretora jurídica do gabinete de administração pública de Chicago, disse que casos de espólios como o de Maier, especialmente os complicados por possíveis descendentes que não são cidadãos dos Estados Unidos, podem levar anos para ser resolvidos. As cartas de notificação às galerias e demais envolvidos "são apenas uma precaução, para que todos saibam qual é a situação e que agora existe um espólio de Vivian Maier".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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