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    Grandes personagens de Shakespeare são representados pelo sexo oposto

    SARAH HEMMING
    DO "FINANCIAL TIMES"

    14/09/2014 03h14

    Com um novo Hamlet e Henrique 4º prestes a chegar aos palcos na pele de atrizes, será que a escolha de atores do sexo oposto para representar alguns dos grandes papéis criados por Shakespeare é mais que um simples artifício para chamar a atenção?

    Quando Sarah Bernhardt representou Hamlet em Paris, no final dos anos 1890, sua performance provocou um duelo. É pouco provável que alguém se sinta motivado a pegar em armas em reação ao "Hamlet" que será encenado no Royal Exchange Theatre de Manchester, mas a produção com certeza vai causar espécie: o papel do príncipe dinamarquês é feito pela atriz Maxine Peake. E ela não é a única atriz que está representando um protagonista de Shakespeare. No Donmar Warehouse, em Londres, neste outono britânico, Harriet Walter fará Henrique 4º numa produção de elenco inteiramente feminino da peça. Em 2012, já houve uma produção de "Júlio César" representada apenas por mulheres.

    As peças de Shakespeare são cheias de cross-dressing e trocas de sexo. Duas de suas comédias mais belas, "Noite de Reis" e "Como Gostais", são baseadas nas confusões e revelações decorrentes de personagens femininas que se disfarçam de homens. Mas os maiores papéis -Hamlet, Rei Lear, Macbeth, Prospero, Ricardo 3º– são todos de homens. Com o passar dos anos, atrizes destacadas se rebelaram contra a convenção e os representaram. Vanessa Redgrave foi Prospero, Fiona Shaw e Cate Blanchett encarnaram Ricardo 2º, e Hamlet já foi representado por Asta Nielsen, Sarah Siddons, Angela Winkler e Frances de la Tour.

    Kathryn Hunter, que já fez os papéis de Lear e Ricardo 3º, recorda a emoção de lidar com a escala da jornada de Lear: "Lembro-me de ficar esperando nos bastidores e me sentir como se estivesse no ventre da baleia".
    Fiona Shaw fala na oportunidade de encarar alguns dos maiores versos poéticos dramáticos. "O prazer de poder proferir essas falas maravilhosamente poderosas é algo que muitas atrizes nunca chegam perto de sentir", ela revela.

    Mas ela também se recorda de ter ficado assustada. "Eu estava cercada por atores homens muito bons, que poderiam ter feito o papel de Ricardo. Você precisa justificar sua posição, dando o melhor de si. As coisas transmitem emoção quando têm veracidade. Se o teatro é aguçado pelo fato de os gêneros serem invertidos, fica mais instigante. Se perder algo com isso, é menos."

    É esse o risco, é claro. O teatro sempre depende da suspensão da descrença, mas a representação de papéis por atores do sexo oposto ainda tende a suscitar alguma reação. Bem utilizado, entretanto, o recurso pode ser profundamente revelador. Uma mulher que interpreta um personagem masculino pode chamar a atenção para características que associamos ao comportamento masculino. Quando Janet McTeer, representando um Petrúquio machão numa produção de elenco integralmente feminino de "A Megera Domada" no teatro Shakespeare's Globe, em 2003, adotou maneirismos masculinos paródicos (sentar-se com as pernas abertas, urinar contra uma coluna), a incongruidade foi ao mesmo tempo engraçada e chocante.

    E quando mulheres representam papéis de homens em posições de autoridade, o efeito pode ser revelador em escala mais ampla, política. A produção integralmente feminina de "Júlio César" dirigida por Phyllida Lloyd foi encenada no contexto de um presídio feminino, com as detentas representando a peça. Em parte, esse contexto racionalizou a escolha do elenco: não havia homens presentes para fazer os papéis. Mas também foi um jogo com a incongruidade de detentas mulheres -que estão entre os indivíduos menos poderosos da sociedade-encarnando papéis tradicionalmente masculinos de estadista e tático militar.

    Lloyd diz que quis "libertar algumas dessas atrizes fantásticas da esfera romântica e doméstica nos trabalhos clássicos". Mas também foi "um experimento para ver o que acontece quando você toca essas vozes muito antigas e conhecidas com instrumentos novos, e de repente ouve coisas novas".

    Uma descoberta surpreendente foi que existem muitas prioridades em comum entre Roma antiga e os corredores de um presídio feminino: coisas como honra, amizade e lealdade. E uma produção que apresentasse mulheres em papéis masculinos com a finalidade exclusiva de contestar o patriarcado talvez fosse limitada. São igualmente instigantes as descobertas inesperadas sobre premissas sociais, as revelações sobre onde as distinções de gênero se confundem ou desmontam, e a redescoberta da universalidade dos grandes personagens de Shakespeare. Assistindo ao Brutus pálido e tenso representado por Harriet Walter, houve trechos em que o espectador esquecia que ela era mulher ou detenta e via apenas uma representação exímia de um personagem complexo e perturbado.

    "Desta vez [nos ensaios de 'Henrique 4º'], é interessante perceber que passamos muito pouco tempo falando sobre sermos homens", diz Lloyd. "Estamos muito mais preocupadas em representar os personagens que em tentar ser homens. Esse fato é destacado de repente sempre que uma personagem feminina sobe ao palco."

    E a atuação em papéis do sexo oposto pode mergulhar muito fundo na própria natureza do gênero e da identidade. Sendo uma mulher de físico pequeno e delicado, Kathryn Hunter, num primeiro momento, sentiu-se intimidada com a perspectiva de representar o rei Lear.

    "Na minha cabeça, Lear era uma figura enorme, gigantesca", ela recorda. "Foi apenas quando vi um idoso muito frágil no supermercado que pensei: 'Se as pessoas em volta abrissem caminho para ele e ele estivesse de coroa, por que não poderia ser Lear?'."

    E, a partir do ponto em que Lear perdeu sua autoridade, a estatura baixa de Hunter passou a ser um trunfo, captando, como observou um crítico, "a androginia da velhice". Talvez seja quando a inversão de gêneros capta ambiguidades no papel que ela é mais fértil -e perturbadora. Ela pode destacar o mal-estar de um personagem diante das expectativas a seu respeito, como homem. No papel de Ricardo 2º, um homem que não vivenciava bem seu papel de rei, Fiona Shaw foi uma figura intranquila, andrógina.

    "Eu apenas representei Ricardo 2º", ela recorda. "Mas representar Ricardo 2º em um elenco em que todos os outros atores eram do gênero certo significava que havia algo muito peculiar no meio da peça. Mas Ricardo 2º era muito peculiar no meio de seu mundo... Como uma irritação que produz uma pérola."

    Como, então, essa "irritação" poderia funcionar com Hamlet, personagem que tem dificuldade com muitas das expectativas que existem a seu respeito, como homem e como príncipe? Sarah Frankcom, diretora do "Hamlet" encenado no Royal Exchange Theatre, tem confiança em sua atriz principal: "Maxine não tem medo", explicou. "Ela é capaz de trabalhar numa tela maior."

    "Quisemos investigar se podíamos fazer sentido do que enxergávamos no personagem -um misto realmente complexo do feminino e do masculino–, colocando uma mulher nesse papel. Vivemos em um mundo em que o gênero é um espectro, não algo que é atribuído rigidamente. E achamos que essa seria uma maneira interessante de abordar Hamlet."

    Esbelto, pálido e de cabelos curtos, o Hamlet de Maxine Peake poderia ser homem ou mulher: uma figura mutável e ambígua no cerne de uma peça crivada de dúvidas. Este Hamlet será tratado como "ele", mas vai "ultrapassar os gêneros". É uma abordagem que pode intensificar as questões sobre identidade, conduta e escolha na peça e deslocar o tom dos grandes confrontos de Hamlet com Ofélia e Gertrude para algo mais urgentemente persuasivo sobre o comportamento delas. Mas será que a escolha do elenco pode lançar sombra sobre outros aspectos da peça?

    "Quando decidimos fazer assim, não tínhamos a certeza de que fosse funcionar", Frankcom admite. "Foi um conjunto de instintos: Hamlet é volúvel, Hamlet desempenha vários papéis, Hamlet é provavelmente o mais feminino dos protagonistas homens de Shakespeare. Com todas as peças, é importante desafiar as expectativas. Acho que temos que fazer algo em que acreditamos e ver como as pessoas o sentem."

    "Hamlet" no Royal Exchange, em Manchester, a partir de 11 de setembro; royalexchange.co.uk . "Henrique 4º" no Donmar Warehouse, em Londres, a partir de 3 de outubro; donmarwarehouse.com.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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