• Ilustríssima

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    Dois contos de Bioy Casares

    ADOLFO BIOY CASARES
    tradução SÉRGIO MOLINA
    ilustração MARTÍN KOVENSKY

    14/09/2014 03h24

    SOBRE OS TEXTOS Inéditos em português, "Na Torre" e "Orfeu" compuseram um pequeno livro, "As Vésperas de Fausto", editado de forma independente em 1949 e posteriormente incluído, com modificações, em "História Prodigiosa" (1956). Ambos os livros farão parte do primeiro tomo da "Obra Completa de Adolfo Bioy Casares", a sair em novembro pelo selo Biblioteca Azul, da Globo.

    Martin Kovensky

    ORFEU

    Com o coração dilacerado, Orfeu viu Eurídice desaparecer no abismo. Entretanto (conta Virgílio), ele percebeu a terrível importância desse momento e quis dizer muitas coisas: "multa volentem dicere". Outros autores recordam as palavras que teria pronunciado o herói; seriam estas: "Desde o instante em que deixamos de ver uma pessoa, ela entra no passado. Todo passado está igualmente longe. Se eu espiasse seus profundos corredores, antes de encontrar Eurídice, contemplaria talvez o rapsodo Anfião, que conseguiu verdadeiros prodígios com a lira, ou surpreenderia Mercúrio no processo de inventar a música, ou me deslumbraria com o sol da primeira manhã". Porque seu amor era muito grande, Orfeu não esmoreceu, e os deuses, que premiam a perseverança, deixaram-no chegar até as portas do passado. Para cruzá-la devia-se adivinhar uma fórmula. O herói exclamou: "Todo passado está igualmente perto". (Varões antigos lhe disseram que as coisas, como o deus Jano, têm duas faces e que o último termo é, em certo sentido, o primeiro). Empurrou a pesada porta. Abriu. Esperando-o estava Eurídice.

    Martin Kovensky

    NA TORRE

    Para esquecer miss Hinton (para esquecer o inesquecível), o velho poeta irlandês deixou a Inglaterra. Na impávida luz do camarote, no Byzantium, pensou a noite inteira na mulher amada: ela gostava bem pouco dele; nem sequer o conhecia seriamente; nem sequer tinha lido seus livros De manhã desembarcou em Dublin. "Acaso a procurei devidamente?", refletiu. "Acaso a encontrei?" No solitário trem, continuou a pensar: "Ninguém é um só. Sem dúvida nela existe a moça que está destinada a mim e que não encontrarei nesta vida". Depois o lago apareceu sob uma chuva tênue e opaca, e sobre a cabeça do poeta voaram trinta e sete cisnes. Bem avançado o dia, chegou à porta da torre. Um raio de sol, como uma pálida espada, atravessou as nuvens e ensaiou uma espécie de anacrônico amanhecer. A caseira lhe entregou um telegrama. O poeta o leu, deixou-o cair e, sem responder às perguntas da velha, abriu a porta e subiu correndo a interminável escada de caracol, e muitas vezes pensou que ia desfalecer. Com a vista enevoada, extenuado, enlevado, chegou ao topo da torre, onde miss Hinton o esperava tomando chá, no jardim de sua casa, em Westmorland, e também correndo descalça na areia, em uma tarde de outono, contra um céu de furiosas gaivotas, e cozinhando, na casa de umas amigas, o célebre Plum Pudding Hinton (receita de sua avó paterna), e dançando, encantadoramente fantasiada de lavadeira, em uma festa beneficente, e lendo risonhamente com sua amiga miss Farr um poema que ele lhe dedicara, e guardando (sozinha, horas depois), em um cofre de palha com forro de seda violeta, esse mesmo poema, e soprando bolhas de sabão, e fazendo exercícios respiratórios, e expirando e sorrindo, na companhia do piloto norte-americano Peter de Paola, ao volante de um automóvel, para uma fotografia publicitária, e tossindo, congestionada pelo esforço de nascer, e dando, ao filho da governanta, sua primeira laranjada com óleo de rícino, e assistindo, com um grupo de jovens da sociedade, à primeira exposição londrina de arte cubista, e jazendo em seu ataúde, e recebendo o segundo prêmio de "deck-tennis", a bordo do Berengaria, e gritando apavorada, na rua, de noite, enquanto um letreiro luminoso anunciava: "Florio's Café", e caminhando por uma alameda em Westmorland A caseira recolheu o papel, que um golpe de vento carregara até o maciço de agapantos. Leu: "Lamentamos informar que Barbara Hinton morreu ontem à noite".

    ADOLFO BIOY CASARES (1914-99) foi um escritor argentino. Sua obra-prima, "A Invenção de Morel" (1940), teve recente adaptação aos quadrinhos, pelo francês JP. Mourey, publicada no Brasil pela editora L&PM.

    SÉRGIO MOLINA, 50, é tradutor, nascido em Buenos Aires. Sua tradução para a primeira parte de "Dom Quixote" (ed. 34) foi reconhecida com o Prêmio Jabuti (menção honrosa) em 2004.

    MARTÍN KOVENSKY, 56, artista plástico argentino, é autor de "Terminaron las Clases" (Papelera Palermo).

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