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    Museu Aga Khan: um lar para a arte islâmica

    OLIVER WAINWRIGHT
    DO "GUARDIAN"

    21/09/2014 03h35

    Um playboy bilionário e dois dos arquitetos mais celebrados do planeta criaram um espaço cósmico para uma espetacular coleção de arte islâmica no subúrbio de Toronto

    Havia lustrosas cerâmicas, peças reluzentes de seda, marfim entalhado intrincadamente e todos os mais modernos instrumentos médicos. Em paradas luxuosas pelas ruas do Cairo, no século 10, os califas fatimidas usavam a exibição pública da abundância monárquica para ajudar a cimentar sua nova capital como o mais importante centro cultural do mundo islâmico. Mestres do teatro e do poder simbólico da arte, eles desenvolveram uma cultura de exibição pública de tesouros privados muito antes que surgissem os primeiros museus no Ocidente. Agora, passados mil anos, um de seus descendentes está perpetuando a tradição –em um polo empresarial no subúrbio de Toronto.

    Fred Thornhill - 12.set.2014/Reuters
    O primeiro-ministro canadense Stephen Harper e o imã Aga Khan à frente do museu
    O primeiro-ministro canadense Stephen Harper e o imã Aga Khan à frente do museu

    Com paredes brancas facetadas que reluzem ao sol da tarde e estranhos domos cristalinos se projetando por sobre as árvores, o novo Museu Aga Khan e o Ismaili Centre, um complexo de US$ 300 milhões, são um acréscimo incomum a esse canto da América do Norte suburbana, em um movimentado cruzamento de duas vias expressas de seis pistas. O museu é um pavilhão monolítico, suas paredes inclinadas conferindo ao edifício a aparência de uma gigantesca caixa de papelão que está sendo aberta, com visores de formato geométrico aguçado espalhados por sua pele de pedra calcária. Do outro lado de um pátio profusamente enfeitado por fontes, o Ismaili Centre é um conjunto de edificações baixas de arenito, das quais emerge um telhado piramidal translúcido, em rampa, como se apontado na direção das estrelas. Juntas, as construções formam um complexo enigmático, com cara de observatório astronômico ou talvez de uma misteriosa fortaleza lunar. Como o Ismaili Centre, de Hugh Casson, em South Kensington, o complexo é a um só tempo atemporal e futurista, um tanto extraterreno e, como seus predecessores na era fatimida, tem um ar de pesada fortificação.

    O projeto é adição especialmente exótica para o Don Valley, de Toronto, uma área até recentemente verde ao nordeste da cidade, por ser obra de dois dos maiores arquitetos asiáticos vivos. O japonês Fumihiko Maki, 86, ganhador do Prêmio Pritzker, respondeu pelo museu, enquanto o Ismaili Centre foi trabalho de Charles Correa, 84, o gigante do modernismo indiano. O patrono de ambos é igualmente venerável: o Aga Khan, príncipe Shah Karim Al Husseini (seus amigos o conhecem com o "K"), o 49º ímã hereditário de uma população estimada em 15 milhões de muçulmanos ismaelistas da seita nizari, um ramo do islamismo que atingiu seu pico durante o império fatimida. Os seguidores do Aga Khan o consideram como descendente direto do profeta Maomé. Entre as lojas de cerveja e os edifícios suburbanos de escritórios de Toronto, pousou algo de sagrado.

    Chegando ao local em companhia do primeiro-ministro canadense Stephen Harper, e flanqueado por substanciais forças de segurança, o Aga Khan, 77, parece mais empresário que líder espiritual. Trocou a corte de seus antepassados no Cairo por um chateau na França, e o séquito real por um estilo de vida digno de um playboy, com cavalos puro-sangue, iates de luxo, jatos particulares e belas mulheres. Magnata dos negócios, cidadão britânico educado na Suíça, o Aga Khan acumulou uma fortuna estimada em oito bilhões de libras –o que o torna um dos monarcas mais ricos do planeta, bem como um dos mais filantrópicos. O império de negócios de seu Fund for Economic Development varia de companhias de aviação e hotéis a empresas de alimentação e telecomunicação, com faturamento anual de1,4 bilhão de libras; os lucros dessas empresas são reinvestidos na Aga Khan Development Network, que emprega 80 mil pessoas para melhorar a saúde, a educação e o desenvolvimento econômico na África subsaariana. "Não temos o conceito de que o acúmulo de riqueza é um mal", ele diz, comentando sobre o dízimo de 10% de seus ganhos pagos a ele por todos os ismaelistas. "O que importa é como você usa essa riqueza'".

    O projeto de Toronto, que demorou quase 20 anos a ser finalizado, é obra do Aga Khan Trust for Culture, que, como uma mini-Unesco, opera um impressionante programa de conservação histórica da arquitetura islâmica em todo o mundo, e oferece um respeitado prêmio trienal de arquitetura. A edificação de 10 mil metros quadrados é o novo lar da espetacular coleção de arte islâmica do Aga Khan, com mais de mil artefatos provenientes de três continentes ao longo de mais de 10 séculos, e é o primeiro museu da América do Norte dedicado a esse tema.

    O projeto foi originalmente planejado para Londres, em um terreno nobre diante do Parlamento e ao lado do hospital St Thomas, mas o terreno acabou em posse do Serviço Nacional de Saúde britânico depois de uma vitriólica campanha que terminou com acusações de suborno e trapaça –e com o monarca e ímã levando seu tesouro para outro país. O Ismaili Centre, de Correa, por sua vez, havia sido planejado desde sempre para o terreno de Toronto, e a venda de um lote adjacente, em 2002, serviu como solução conveniente para o museu –apesar de a localização não ser ideal, distando cerca de 20 minutos de carro das principais atrações culturais no centro da cidade.

    Julio César Rivas - 10.set.2014/Efe
    O artista paquistanês Imran Qureshi terminando uma obra diante do Museu Aga Khan
    O artista paquistanês Imran Qureshi terminando uma obra diante do Museu Aga Khan

    A evolução interrompida do projeto fica evidente; projetadas com quase uma década de distância, as duas edificações parecem desconfortáveis em companhia uma da outra. Elas se encaram através do pátio –cuja escala de 100 metros de largura se inspira na da Grande Mesquita de Isfahan–, e o museu de Maki tenta estabelecer um arranjo axial, com um grandioso portal elevado, acompanhado por uma cobertura inclinável, o que cria uma espécie de entrada de nave espacial. Mas a resposta a isso é a fachada cega do grande salão circular de oração de Correa. Para entrar, é preciso subir alguns degraus e dobrar uma esquina.

    Essas discordâncias estéticas no plano térreo importarão pouco no Canadá, onde a maioria dos visitantes deve chegar de carro e ingressar no complexo pelo estacionamento subterrâneo com 800 vagas. De lá, o majestoso átrio de pé direito triplo do museu circunda um pátio cúbico vitrificado, e conduz a uma série de galerias projetadas por Adrien Gardère, o designer da exposição Louvre Lens, como um passeio espaçoso pela prolífica produção dos omeíadas, abássidas, fatimidas e mamelucos. "Queríamos evitar a abordagem comum, de caixinha de joias, com penumbra e objetos iluminados, e aquela sensação de lotação excessiva que se vê em muitas galerias", diz Gardère. Há grande disponibilidade de espaço, mas tudo parece um tanto vazio, como um terminal de aeroporto cavernoso e tomado por ecos - completo como uma sala de espera VIP no pavimento acima.

    A coleção nem chega perto dos vastos acervos islâmicos do Museu Britânico e do Victoria & Albert, ou do Louvre e Museu Metropolitano de Arte de Nova York. Mas como diz o diretor do museu, Henry Kim, que acaba de comandar a renovação do Museu Ahshmolean em Oxford, "é uma coleção para conhecedores. Pode não haver muitas peças, mas elas estão entre as melhores".

    O acervo varia do mais antigo manuscrito do "Cânone da Medicina", de Avicena, texto que manteve vivo o pensamento da antiguidade grega enquanto o Ocidente vivia sua era das trevas, a um astrolábio andaluz do século 14, inscrito em árabe, latino e hebraico, e a requintadas pinturas do Livro Persa dos Reis, do século 16. Há tecidos e miniaturas, lajotas e instrumentos musicais, e peças de cerâmica moralistas iranianas do século 10, entre as quais um prato com inscrição caligráfica que diz "cuidado com o imbecil: não conviva com ele". Um restaurante adjacente oferece oportunidade de socializar. A decoração, vinda de uma mesquita de Damasco, fica incomodamente suspensa do teto, o que confere às peças mais cara de Starbucks do que de coleção museológica preciosa.

    Enquanto o glacial museu de Maki fala de peso institucional, o Ismaili Centre de Correa tem um clima mais caloroso, municipal, com o salão de oração e salas de reunião unidos pelo que o arquiteto define como "um espaço fluido que conecta funções religiosas, sociais e comunitárias, sem divisão", e oferece também um terraço no topo com "uma bancada em estilo Mussolini da qual Sua Alteza possa falar". A intenção era construir o centro com concreto bruto, o material com que Correa trabalha melhor, mas ele não foi considerado suficientemente nobre. A pedra bege que surgiu como solução de compromisso, revestida de bordo nas superfícies internas e acompanhada por tapetes vermelhos, parece um tanto insípida.

    Quais, portanto, são as fontes para a construção de uma identidade arquitetônica ismaelista, voltada a uma diáspora sem país próprio? "Não existe arquitetura ismaelista", diz Luis Monreal, historiador da arte e diretor do Aga Khan Trust for Culture. "A história da arquitetura islâmica, a partir do século 9, sempre envolveu um processo de absorver e copiar o contexto local, criando diferenças regionais". As edificações de Toronto parecem extrair alguma inspiração dos galpões rurais norte-americanos (com inflexões cósmicas), e será interessante descobrir o que emergirá no centro de Londres. Ainda que as ambições do Aga Khan no Reino Unido possam ter sido bloqueadas no passado, há planos para um complexo cultural em King's Cross, que compreenderá um centro cultural islâmico de nove mil metros quadrados e uma nova sede para a Universidade Aga Khan –dois projetos de Maki– bem como um alojamento para estudantes com 200 leitos. Os detalhes, diz Monreal, são confidenciais. "Mas posso dizer que não teremos um estilo neomameluco. Nossos arquitetos estão proibidos de fazer referência ao passado".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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