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    Lula não tem o monopólio da simpatia dos pobres, diz cientista político

    FERNANDA PERRIN
    DA EDITORIA DE TREINAMENTO

    05/10/2014 03h21

    O americano Ronald Inglehart vê Marina como sinal de uma nova fase política no Brasil, mas aponta contradições

    Ronald Inglehart foi o primeiro a usar o termo "pós-materialismo" para se referir a um novo tipo de comportamento político em sociedades modernas. Sua teoria defende que, com o desenvolvimento econômico, a sobrevivência física deixa de ser uma preocupação para as novas gerações, que passam a valorizar novos temas, como o meio ambiente e os direitos LGBT. Chamados de "pós-materialistas", esses jovens buscam novos meios de participar da política fora dos partidos e para além do voto.

    O cientista político é professor na Universidade de Michigan e diretor do World Values Survey -uma rede global que, desde os anos 1980, faz pesquisas de opinião em mais de 90 países. Em 2011, recebeu o prêmio Johan Skytte de Ciência Política, considerado o Nobel da área. Sua teoria sobre o pós-materialismo teve grande repercussão, principalmente nos estudos sobre a relação entre valores, crenças e democracia.

    Universidade do Michigan/Divulgação
    O pesquisador e professor Ronald Inglehart
    O pesquisador e professor Ronald Inglehart

    Inglehart falou por telefone e e-mail com a Folha sobre as eleições brasileira e francesa. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

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    Folha - Os filhos da chamada "nova classe C" seriam um exemplo da passagem do materialismo para o pós-materialismo no Brasil?

    Ronald Inglehart - Sim. Eu tenho dados sobre o Brasil e outros países latino-americanos que mostram que muitos deles estão vivendo uma crescente prosperidade nas últimas décadas, acompanhada por uma forte mudança de valores materialistas para pós-materialistas. Na verdade, a América Latina vive uma das maiores mudanças intergeracionais do mundo. Parece-me que a candidatura de Marina Silva [do PSB] é uma expressão do pós-materialismo.

    Fala-se em uma crescente indiferença dos jovens pela política e, nas manifestações de junho de 2013, houve um grande rechaço aos partidos. Mas, segundo sua tese, as novas gerações seriam mais politicamente ativas que seus pais. Como o sr. explica essa aparente contradição?

    Esta é uma consequência profunda desta mudança. Os pós-materialistas enxergam os partidos políticos como distantes, corruptos, representantes de questões do passado que não respondem aos seus anseios. Não se trata de serem apolíticos, mas sim de estarem insatisfeitos com a política estabelecida.

    Como o sr. vê essas manifestações?

    Elas não foram especificamente pós-materialistas, mas provavelmente tiveram a participação de um número desproporcional de pós-materialistas, por que eles são mais politicamente ativos do que a maioria das pessoas.

    Mas ainda não se vê de modo geral estas gerações buscando outros meios de participação. Estaríamos vivendo uma fase de transição no Brasil?

    Acredito que sim. A participação política não acontece simplesmente porque os valores mudaram. É necessária uma questão relevante com a qual as pessoas se importem o suficiente para se mobilizarem, por que a maioria normalmente é apolítica e isto em todos os países, não apenas no Brasil. O que eu acho que está acontecendo é que Marina está sendo vista pela primeira vez como representante de um novo tipo de candidatura. Ela não tem a biografia de um político típico, é ambientalista e parece ser uma pessoa genuinamente engajada na luta pela justiça e na superação de obstáculos. Acho que estes fatores estão encontrando ressonância entre pós-materialistas. Contudo, isto é tão recente que eu não espero ver movimentos neste sentido ainda, mas é interessante que esteja acontecendo a ponto de Marina talvez ser eleita presidente.

    Mas Marina também é vista como uma pessoa religiosa, o que tem gerado resistência a ela entre movimentos tipicamente pós-materialistas como o LGBT que não parece apoiá-la por sua posição mais conservadora em relação ao casamento gay.

    A questão do casamento gay seria uma séria lacuna no discurso pós-materialista, por que é uma parte importante desta agenda política. Se ela se opõe ao casamento gay, isto parece uma anomalia. Acho que seu passado de pobreza talvez faça com que ela tenha visões religiosas tradicionais. Mas Marina não é uma pessoa religiosa típica.

    Você acredita que Marina está mais próxima das gerações mais velhas ou mais novas?

    Eu acredito que ela está entre elas. Ela não é a típica pós-materialista, mas ainda assim Marina é capaz de atrair este eleitorado. Acho que este é definitivamente um potencial para ela. Marina não cresceu em segurança econômica, o que é em geral uma característica dos pós-materialistas, mas de certo modo isto é uma vantagem. Ela pode ser uma espécie de conciliação por que isto não faz com que ela pareça uma extremista.

    Esta vantagem deve-se à realidade heterogênea do país, de regiões mais desenvolvidas do que outras?

    Com certeza. O Brasil é um país tremendamente diverso. É interessante como Marina vem de uma região pobre e conseguiu ascender. De certo modo, ela parece fazer uma ponte entre o Brasil pobre e o rico.

    Mas o ex-presidente Lula também possui uma biografia similar a de Marina.

    Sim, isso ajudou Lula –e talvez ajude Marina. Lula não tem monopólio da simpatia dos pobres.

    A campanha da presidente Dilma Rousseff (PT) tem usado esta polarização entre pobres e ricos na disputa eleitoral, na tentativa de associar Marina aos "ricos". O sr. acredita que esta estratégia ainda será eficaz nos próximos anos?

    É muito difícil prever o futuro, mas acho que é uma estratégia esperta. Em razão da profunda divisão entre pobres e ricos no Brasil, isto tende a funcionar. Mas Marina obviamente não é uma candidata vinda dos ricos, então não acho que seja garantido que esta abordagem funcione.

    A tentativa de associar Marina aos "ricos" deve-se ao fato de pessoas próximas a ela estarem ligadas a grandes bancos privados, como o Itaú.

    O fato dela possuir apoiadores ricos não me surpreende. Na política moderna, você precisa ter dinheiro para vencer.

    O sr. também coloca as igrejas entre as instituições que, como os partidos políticos, perdem força com o pós-materialismo. Contudo, a chamada "bancada evangélica" cresce a cada nova eleição. Como o sr. interpreta este fenômeno?

    De certa forma, isto reflete a erosão das igrejas tradicionais. O Brasil costumava ser totalmente católico. A insatisfação com a Igreja abriu caminho para os evangélicos que são mais abertos a mudanças, apesar de obviamente existirem setores na Igreja Católica que estão se modernizando.

    Mas isto pode ser visto como uma mudança no sentido do pós-materialismo ainda que setores evangélicos por vezes tenham um discurso resistente a bandeiras típicas do pós-materialismo, como direitos gays e aborto?

    Não. Eu acredito que o fracasso em modernizar a Igreja abriu caminho para o crescimento evangélico. A maioria das pessoas que estão se tornando evangélicas não são pós-materialistas, mas o enfraquecimento das instituições tradicionais abre caminho para muitas coisas –inclusive para uma religião que pode ser bastante conservadora em certas questões culturais. Este é um problema em potencial para Marina. Eu diria que sua estratégia seria aceitar o casamento gay por que para conquistar o eleitorado pós-materialista ela precisa ser aberta a mudanças culturais.

    Outro tema central do programa de Marina é a independência do Banco Central, uma proposta alinhada com o pensamento neoliberal. Isto também seria reflexo de uma postura pós-materialista?

    É uma boa ideia, mas não é uma posição especificamente pós-materialista. A maioria dos economistas considera que a independência do banco central conduz a um melhor gerenciamento da economia –e isto é algo que tanto materialistas quanto pós-materialistas seriam a favor.

    Pesquisa recente mostrou a candidata Marine Le Pen, do partido de extrema-direita Frente Nacional, em primeiro lugar nas eleições presidenciais francesas. Como isto se encaixa no esquema pós-materialista?

    Le Pen reflete o oposto do pós-materialismo: uma reação xenófoba de pessoas inseguras contra mudanças. [Para] a teoria do pós-materialismo, estes valores não crescem automaticamente. Insegurança física e econômica levam a reações autoritárias que [por exemplo] rejeitam imigrantes como perigosos competidores por recursos escassos. Recentemente, a França vem mostrando uma economia relativamente estagnada, o que piorou com a crise de 2008-2012, e uma imigração em larga escala, majoritariamente islâmica, de países africanos. A ascensão da Frente Nacional tem desagradáveis semelhanças com o que aconteceu com movimentos xenófobos anteriores –o caso extremo sendo o nazismo na Alemanha.

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    Entenda: o pós-materialismo

    Nos anos 1970, Inglehart identificou nos Estados Unidos e na Europa Ocidental um número crescente de pessoas preocupadas com o meio ambiente e os direitos individuais, como o casamento gay. Para avançar estas bandeiras, eles buscavam caminhos diferentes dos partidos tradicionais - por exemplo, através de ONGs. As gerações mais velhas, por outro lado, continuavam centradas em questões econômicas de sobrevivência ("materialistas"), e participando da política de modo tradicional - pelo voto e pela filiação partidária.

    Segundo a tese, esta mudança aconteceu por que os jovens cresceram em um ambiente de segurança econômica, enquanto seus pais não raro passaram fome. Essa diferença de experiências na infância influenciou os valores de cada geração, e portanto sua visão política quando adultos: se para os pais, a divisão partidária entre esquerda e direita e bandeiras coletivas como o salário mínimo são prioritárias, para os filhos esta lógica já não faz mais sentido. Os direitos individuais e a intervenção direta na política são as marcas das novas gerações, por isso chamadas de "pós-materialistas". Inglehart aponta os países nórdicos como exemplo deste processo.

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