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    Marinas de T. S. Eliot e Shakespeare

    T.S. ELIOT
    tradução MARIO SERGIO CONTI
    ilustração MARINA SALEME

    05/10/2014 03h37

    SOBRE O TEXTO No poema de T. S. Eliot, que data de 1930, quem fala é o protagonista da peça de Shakespeare "Péricles, Príncipe de Tiro" (c. 1608), que acredita estar morta sua filha. A epígrafe em latim é um fragmento da peça "Hércules Furioso", de Sêneca, na qual o personagem mítico se pergunta o que fez ao despertar de um transe -e percebe que matara a sua prole. Para a tradução do "Epitáfio de Marina" usou-se a edição New Cambridge; a versão da Oxford, tão bem traduzida por José Roberto O'Shea (Iluminuras, 2012), registra apenas os quatro primeiros versos do epitáfio. (MARIO SERGIO CONTI)

    Marina

    Quis hic locus, quae regio, quae mundi plaga?

    Que mares que praias que pedras pretas e que ilhas
    Que água alisa a quilha
    E perfume de pinho e o sabiá canta na neblina
    Que imagens retornam
    Ó minha filha.

    Aqueles que afiam os caninos do cão, significando
    Morte
    Aqueles que se ufanam do afã do bem-te-vi, significando
    Morte
    Aqueles que se abancam na satisfação, significando
    Morte
    Aqueles que usufruem do êxtase das feras, significando
    Morte

    Ficaram sem substância, dissipados pelo vento,
    Um sopro de pinho, e a bruma da canção acre
    Dissolveu-se no ar abençoado pela graça.

    Que rosto é esse, menos claro e mais claro ainda
    O pulso no braço, menos forte e mais forte ainda:
    Dado ou tomado? Para lá dos astros e bem perto do olho
    Sorrisos e sussurros entre folhas e passos apressados
    Sob o sono, onde toda água deságua.

    O casco trincado pelo gelo e o convés trincado pelo sol.
    Eu fiz isso, eu esqueci
    E me lembro.
    Cordas frouxas e velas podres pendendo do mastro
    Entre um junho e outro setembro.
    Fiz isso ao léu, meio dormindo, alheio a mim, sem meios.
    A carcaça faz água e as juntas carecem de rejunte.
    Esta forma, esta face, esta vida.
    Vida vivida num mundo de tempo além de mim; que eu
    Renuncie minha vida a essa vida, minha fala ao que se cala,
    O desperto, os lábios abertos, a esperança, os novos navios.

    Que mares que praias que proa contra o granito das ilhas
    E o sabiá sibila na neblina
    Minha filha

    Marina Saleme

    WILLIAM SHAKESPEARE

    Epitáfio de Marina

    Aqui jaz a flor mais bela, a mais suave e austera,
    Que se foi assim que saiu da mãe, na primavera.
    Nascida no mar, era filha do príncipe de Tiro,
    E a morte a massacrou no seu primeiro suspiro.
    A linda menina marinha se chamava Marina,
    E foi por isso que Tétis, madrinha da pequenina,
    Ao ver que ela nasceu no mar, parte da terra aterrou.
    E a terra, aterrorizada totalmente, tolamente enviou
    A afilhada de Tétis se assentar num trono no céu,
    E desde então o mar se irrita com ira e escarcéu,
    E se atira em fúria contra os picos de rocha dura,
    Dia a dia, em ondas e estrondos de espantosa altura.

    T.S. ELIOT (1888-1965), poeta, dramaturgo e crítico britânico, Prêmio Nobel de literatura em 1948.

    WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616), poeta, dramaturgo e ator inglês.

    MARIO SERGIO CONTI, 59, colunista da Folha e do "Globo", é apresentador do programa "Diálogos", da GloboNews.

    MARINA SALEME, 56, artista plástica, participa da mostra "O Agora, o Antes", em cartaz no MAC USP Ibirapuera até 30/12.

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