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    Histórias de tortura, mutilação e estupro no avanço do Estado Islâmico

    CATHERINE JAMES
    DO "OBSERVER", EM MURSITPINAR

    12/10/2014 03h10

    Turquia envia tropas à fronteira mas se recusa a intervir para repelir o brutal avanço dos jihadistas contra cidade crucial; refugiados reportam atrocidades

    Militantes do Estado Islâmico (EI) estavam se aproximando da cidade sitiada de Kobani, na Síria, sábado, e a Turquia posicionou soldados na fronteira entre os dois países mas se recusou a intervir para repelir o avanço dos extremistas.

    Em um dia que costuma ser um dos mais felizes do calendário muçulmano, o do festival do Eid-al-Adha, centenas de turcos e refugiados curdos passaram a manhã na fronteira com a Síria, assistindo impotentemente aos disparos de artilharia contra a cidade que servia de lar a muitos deles.

    A polícia turca parecia inquieta diante do tamanho da multidão reunida perto da frágil cerca de fronteira, e disparou granadas de gás lacrimogêneo para dispersá-la, o que adicionou o estampido de pequenas explosões ao rugido mais grave do avanço do EI.

    Depo Photos-21.ago.2014/Xinhua
    Um grupo da minoria yazidi descansa após chegada no povoado de Roboski
    Um grupo da minoria yazidi descansa após chegada no povoado de Roboski

    Quando a multidão voltou a se concentrar perto da fronteira, transportes blindados de pessoal e veículos armados com canhões de água se aproximaram e a polícia de choque entrou de novo em ação. A cena era lacrimosamente surreal, com a batalha por Kobani servindo de pano de fundo ao impasse entre a polícia e os cidadãos reunidos.

    Mostafa Kader era um dos integrantes da multidão irrequieta, e estava lamentando um tio decapitado pelos militantes, e a jovem cunhada e sua filha que foram brutalmente estupradas e assassinadas.

    Kader fugiu 10 dias atrás, deixando sua aldeia, a 16 quilômetros do centro de Kobani, na calada da noite. Ele e a mulher levavam o filho de cinco anos do casal, o irmão ainda menor do menino e as poucas posses que conseguiam carregar.

    O tio de Kader planejava partir com eles mas no último minuto mudou de ideia, porque não conseguia aceitar a ideia de deixar a aldeia na qual vivia há mais de oito décadas. Os militantes o decapitaram, informaram refugiados chegados posteriormente, a Kader.

    "Ele tinha 85 anos - nem conseguia erguer uma arma", disse o jovem Kader, atônito diante da brutalidade. Ainda mais perturbadoras eram as histórias sobre a aldeia de sua mulher, onde a família em fuga encontrou os corpos de sua irmã e de sua sobrinha de oito anos, jazendo em poças de sangue.

    "Elas haviam sido estupradas, e seus corações foram arrancados de seus peitos e deixados sobre os cadáveres", ele contou, lutando para conter as lágrimas. "Eu mesmo as sepultei".

    Quatro anos de guerra civil e a extrema brutalidade do EI o levam ao desespero quanto ao futuro de seu país e de sua família. "Se eu tivesse sabido que era isso que o futuro nos reservava, jamais teria me casado. Teria sido melhor morrer [lutando] em Kobani", ele disse.

    Depois de ataques aéreos norte-americanos contra as posições do EI durante a noite da sexta-feira, a barragem de projéteis de artilharia se reduziu ligeiramente. Forças curdas anunciaram ter repelido um ataque ao coração da cidade. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos, uma organização sediada no Reino Unido, anunciou que a coalizão havia atacado pelo menos quatro áreas na noite de sexta-feira nas frentes de batalha ao sul e sudeste de Kobani, uma cidade também conhecida como Ain al-Arab.

    O grupo anunciou que os ataques destruíram algum material militar pertencente ao EI, que disparou dezenas de projéteis de morteiro contra a cidade na sexta-feira, depois de avançar até seus subúrbios.

    "Já estamos combatendo hás 20 dias. O EI jurou que celebraria esse Eid na mesquita de Kobani, mas nós impedimos que o fizessem", disse Ismat Sheik Hasan, comandante de uma unidade da YPG, a milícia curda que está defendendo Kobani. "Um dos ataques aéreos norte-americanos ontem danificou a metralhadora deles, e outro destruiu um canhão. Não sabemos se eles atingiram ou não os seus tanques".

    A despeito do sucesso de sua defesa noturna da cidade e da assistência, ainda que limitada, oferecida pelos ataques aéreos norte-americanos, Hasan alertou que o destino de Kobani ainda estava indefinido. Seus comandados estão sofrendo de escassez de suprimentos, e a assistência prometida não chegou.

    "Apelamos ao governo turco por armas e ajuda. Eles disseram que não permitiriam que o EI controlasse Kobani, mas até agora não os vimos fazer coisa alguma", ele disse.

    A Turquia até o momento optou uma atitude contida, com relação aos esforços para enfrentar o EI na Síria, em parte porque dezenas de diplomatas capturados em Mosul eram reféns do grupo. A recente libertação dos diplomatas pode liberar Ancara para um papel mais ativo na coalizão de combate ao Estado Islâmico liderada pelos Estados Unidos, mas o governo ainda não fez qualquer anúncio formal sobre seus planos.

    Na quinta-feira, o Legislativo da Turquia votou para autorizar o uso de forças na Síria e Iraque em combate ao EI. Ancara também alertou que não hesitaria em atacar os jihadistas do EI se eles agissem contra as tropas turcas na Síria, estacionadas em um enclave para proteger a tumba de Suleyman Shah.

    As forças curdas há muito afirmam que sua mais urgente necessidade é mais munição, para que possam explorar as vantagens que os ataques aéreos lhes conferem, mas a munição está demorando a chegar.

    "Não temos armas pesadas e não temos munição suficiente", disse um porta-voz. "Não posso dizer quantas armas temos - isso é segredo - mas posso afirmar que o número é insuficiente. Talvez eles penetrem em Kobani, e se o fizerem será um massacre".

    Rami Abdelrahman, que dirige o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, disse à agência de notícias Reuters que diversas centenas de pessoas haviam sido mortas, dos dois lados, desde o início do ataque a Kobani, duas semanas atrás.

    Mas há muitas mais que estariam em risco se o EI tomar a cidade. "Em Kobani, há talvez 200 mil pessoas, mas não sei exatamente. Algumas deixam a cidade de noite e vão à fronteira, e retornam mais tarde", disse Hasan, do YPG.

    Milhares de sírios que fugiram para a fronteira esperaram por muitos dias junto à cerca, determinados a adiar pelo maior tempo possível sua transição à condição oficial de refugiados. Mais e mais deles estão voltando à cidade, agora.

    Entre aqueles que finalmente decidiram que Kobani estava próxima da queda está Mukdad Bozan, que encontrei em companhia de sua mulher, um bebê chorando e três outras crianças maltrapilhas. Eles fugiram de sua aldeia mais de duas semanas atrás, pouco depois que o ataque contra Kobani começou, e escaparam por pouco.

    "Vi alguns soldados em seus carros na estrada, mas escapamos antes que chegassem à minha aldeia", disse Bozan.

    Ainda assim, eles tinham a esperança de que os militantes fossem forçados a recuar, e passaram dias dormindo no carro, na fronteira, na expectativa de que pudessem voltar logo para casa. Agora, não fazem ideia do que o futuro lhes reserva.

    O último jornalista estrangeiro a deixar Kobani no sábado foi o sueco Joakim Medin, e ele disse que as forças do EI estavam a poucos minutos de carro do centro, e que os moradores que escolheram ficar, tanto homens quanto mulheres, estavam preparando quaisquer armas que tivessem.

    "Quando fui evacuado, por volta da hora do almoço de hoje, vi diversos civis armados de Kalashnikovs e quaisquer armas leves que pudessem encontrar", disse Medin à BBC. "Estavam protegendo suas casas e bairros".

    "As pessoas na verdade não sabiam o que esperar. Estávamos tomando café com uma família, algumas horas atrás... e os veículos do EI estavam visíveis a apenas dois quilômetros. E obviamente isso significa que eles estão muito, muito perto de Kobani".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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