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    Alfredo Sirkis entrevista Daniel Cohn-Bendit

    ALFREDO SIRKIS

    19/10/2014 02h36

    RESUMO O líder estudantil do Maio de 68 conhecido como Dany Le Rouge deixa seu cargo de deputado no Parlamento Europeu, pela França, país do qual foi expulso quando jovem, e quer escrever sobre sua identidade judaica. Em entrevista ao amigo brasileiro ele fala sobre crise da Ucrânia, antissemitismo e Estado Islâmico.

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    Daniel Cohn-Bendit nasceu pouco depois do final da Segunda Guerra, no interior da França, onde seus pais, judeus alemães, se refugiaram. Dany Le Rouge (Dany, o Vermelho), o líder estudantil que se tornou figura emblemática do Maio de 1968, foi expulso da França como "agitador alemão" após a rebelião jovem que abalou o governo do velho general De Gaulle.
    Mudou-se para Frankfurt, onde vive até hoje, e foi secretário municipal de assuntos multiculturais, tratando da integração dos imigrantes. Em seguida, foi eleito deputado do Parlamento Europeu, primeiro pelos verdes alemães e, depois, pelos franceses, quando pôde regressar ao país natal. Somos amigos há mais de 25 anos, desde que ele me entrevistou para seu livro sobre Maio de 68: "Nous qui Avons tant Aimé la Révolution" (Nós que amamos tanto a revolução).
    Eis que chegou a minha vez de retribuir a entrevista. Começamos a conversa ainda na Copa. Apaixonado por futebol, Cohn-Bendit esteve no Brasil para realizar um documentário para o canal de TV franco-alemão Arte. O foco foi nos torcedores brasileiros de variados pontos do país, suas opiniões e reações e, a partir daí, as dimensões políticas do evento. Continuamos depois por Skype.
    Aos 69 anos, Dany permanece agitado e agitador. Nesta entrevista ele fala sobre a crise europeia, o avanço da extrema-direita, a guerra na Ucrânia, o Estado Islâmico, o antissemitismo e também de sua identidade judaica, sobre a qual está escrevendo um livro.

    Acervo pessoal
    Daniel Cohn-Bendit e Alfredo Sirkis (ao fundo)
    Daniel Cohn-Bendit e Alfredo Sirkis (ao fundo)

    Folha - Na Europa, a social-democracia anda mal das pernas e, ao lado da direita civilizada, empurra com a barriga uma estagnação econômica e um mal-estar social. Os ecologistas perderam o fôlego, a extrema esquerda apenas vocifera. Só a extrema direita, xenófoba, parece ir de vento em popa, mobilizando cada vez mais eleitores. Isso não prenuncia um futuro assustador?
    Daniel Cohn-Bendit - Vivemos um movimento de ruptura e de reorientação histórica. A soberania nacional está sendo varrida pela globalização. A globalização e as crises dela resultantes angustiam no âmbito econômico, financeiro e ecológico. Nessa situação, ou bem vamos rumo a soluções que transcendam o quadro nacional ou a nossa angústia nos fará retroceder para tentar nos proteger no espaço nacional contra a globalização. Estou convencido de que esse recuo seria um erro.

    Há uma dificuldade na construção do espaço democrático europeu, mas não nos esqueçamos de que a construção da democracia, no âmbito nacional, foi um processo muito longo. Entre a Revolução Francesa e a consolidação da democracia na França, com o direito de voto das mulheres, foram longos 150 anos. Hoje, com altos e baixos, estamos no período de uma construção democrática no espaço europeu.

    Percebo que você não compartilha da crítica sem reservas da esquerda às políticas ditas de "austeridade".
    Nas discussões sobre a Grécia, por exemplo, eu sempre critiquei duramente as condições impostas pela Alemanha em relação ao tipo de reformas necessárias e de como chegar a elas. Mas há uma questão em relação à qual não devemos nos enganar: a dívida pública.

    Quando a Alemanha e os economistas dizem que é preciso reduzir o endividamento, penso que não estejam errados. Há quem diga que a dívida não é problema, se tivermos um pouco de inflação isso vai ajudar no crescimento. A França é um país que funcionou 40 anos na base do endividamento. De fato, se desperdiça muito dinheiro. Precisamos investir, mas precisamos também deter o desperdício.

    É preciso dizer aos alemães: estabilidade não significa apenas austeridade. Veja a dificuldade que temos na França para introduzir uma tributação ecológica. Com ela, poderíamos reduzir impostos sobre os salários. Mas isso significa uma mudança de paradigma, e ainda estamos num momento histórico no qual a noção de tributar mais a "pegada ecológica" e menos a produção e o trabalho ainda não se afirmou.

    O que muda na Europa com o conflito da Ucrânia?
    O projeto de Putin de decepar a Ucrânia parece estar tendo sucesso. É a mesma estratégia que ele utilizou na Geórgia: criar um território "tampão" sob influência russa. A curto prazo, não vejo muita coisa que a União Europeia e a Otan possam fazer. Mesmo que as sanções econômicas atinjam a Rússia, aparentemente isso não tem efeito sobre Putin, que parece disposto a sacrificar a população em nome dos interesses da "Grande Rússia".

    E como vê a venda de armamentos franceses a Putin, os porta-helicópteros Mistral?
    A França não deveria entregar à Rússia esses navios de guerra que o [ex-presidente Nicolas] Sarkozy lhes vendeu. A Rússia de Putin virou um pesadelo. Curioso: quando estive no Brasil, durante a Copa, encontrei gente reclamando da repressão no Brasil, mas torcendo para Putin. Valeria a pena irem a Moscou para o ver grau de repressão por lá, contra a oposição, as ONGs, os homossexuais.

    Moscou no passado foi referência da esquerda pró-soviética. Hoje, virou meca da extrema direita antieuropeia. Le Pen apoia Putin. Mas, no Brasil, é parte da esquerda que apoia Putin. Vi deputados do PT e do PC do B exaltando-o contra os "nazistas" de Kiev.
    Parte da esquerda latino-americana acredita que todos os que sejam contra os EUA são amigos. Se Putin é contra os americanos, então ele tem de ser bom. É patético. Naturalmente é preciso um debate muito duro com os americanos -toda essa história da NSA, de espionar o governo da Alemanha, do Brasil. Sua grandiloquência de donos do mundo é muito perigosa. Mas a sociedade norte-americana é livre. Quando confrontamos a democracia nos EUA com o regime na Rússia, não há comparação possível. Os EUA são uma sociedade muito contraditória, mas que tem uma sustança democrática.

    Você nasceu na França, em 1945, filho de judeus alemães escondidos em Montauban. Deportado em 1968, assumiu cidadania alemã. Foi deputado europeu pela Alemanha e pela França. Para quem você torceu, nas quartas de final, Alemanha ou França?
    Torci para a França. Tem mais: torci pelo Brasil contra a Alemanha e pela Argentina contra a Alemanha. A maior parte do tempo tenho torcido contra a Alemanha.

    A explicação é complicada. Minha infância no futebol foi na França. Em 1954, eu era muito novo, tinha nove anos, mas me lembro de ter torcido pela Hungria contra a Alemanha, na final. Achava que era a melhor equipe. Digamos que foi uma forma precoce de manifestar como, para mim, a história alemã era algo difícil de digerir. Não era algo totalmente consciente. É certamente injusto, porque a Alemanha é um dos países que mais trabalharam para superar sua terrível história.

    Você roteirizou seu documentário na expectativa de um grande movimento contrário à Copa?
    Não, desde o início fui muito cético em relação a essas mobilizações contra a Copa. O fato de terem acontecido no ano passado -coisa que ninguém havia previsto- não assegurava a repetição. Ao contrário. Essas coisas são quase sempre inesperadas quando acontecem. Algumas semanas antes do Maio de 68, o "Le Monde" registrava: "A França é tédio, nada acontece".

    A crítica que faço à extrema esquerda na Europa vale também para o Brasil. A violência black bloc evidentemente esvaziou aquele movimento. As pessoas deixam de comparecer. Na Europa também a violência isola movimentos sociais. O movimento no Brasil, no ano passado, tinha uma aura positiva, mas, a partir do momento em que uma minoria passou a agir com capacetes, máscaras, porretes, algo quase paramilitar, o restante refluiu. É preciso, porém, tomar muito cuidado e não se esquecer de que as reivindicações que suscitaram a mobilização são totalmente justas. Quando se vê a situação de mobilidade das cidades, todas engarrafadas, a impressão é de que o Brasil vai sufocar debaixo dos carros.

    Você deixou recentemente o Parlamento Europeu. Quais são seus planos agora?
    Preciso terminar de montar o filme que fiz sobre a Copa. Faço todas as manhãs um programa na radio Europe 1 com um 1,3 milhão de ouvintes e quero escrever um livro sobre a identidade judaica.

    Sempre tive essa posição: sou judeu enquanto existir antissemitismo. É uma postura sartriana que significa que são os outros que me fazem judeu. Mas, discutindo com minha mulher, que é alemã não judia -somos ambos ateus-, me dei conta de que é uma formulação demasiado simplista. Tenho em mim essa coisa difícil de descrever, essa angústia de pensar o que teria acontecido comigo se tivesse nascido dez anos antes. Auschwitz teria sido meu destino. Essa angústia profunda molda minha identidade.

    Vejo minha própria identidade judaica como herança, referência cultural e afetiva. Sou não sionista, o que não é a mesma coisa que ser antissionista, pois respeito as razões e circunstâncias históricas do movimento que criou Israel. Mas minha identidade nacional é brasileira. Aqui podemos viver um projeto plural de nação, uma "geleia geral" que é fascinante em comparação ao "de sangue" das velhas nações da Europa.
    Concordo. Costumo dizer que não sou sionista nem antissionista, sou assionista. Então, afinal, o que é para mim ser judeu? Não é Israel, que representa o fim do judaísmo da diáspora. É uma identidade nacional com religião judaica. Sou essencialmente um judeu da diáspora. O que é isso? É o Bundt (movimento socialista judaico do início do século 20, na Polônia e Rússia), é Marek Edelman (o líder da revolta do gueto de Varsóvia). Não digo que todos os judeus têm que ser assim. Justamente quero escrever sobre o que são as plurais identidades judaicas e o que significa essa que escolhi e por quê. Sempre quero ultrapassar as identidades nacionais e penso que isso está ligado ao meu cosmopolitismo judaico.

    Há de fato uma escalada de antissemitismo na França? Há mais antissemitas ou os que já havia tornaram-se mais vociferantes?
    Há um antissemitismo novo, proveniente de segmentos sociais muçulmanos, que não é simplesmente um antissionismo. Não gostam mesmo dos judeus, de nenhum judeu. Ao lado deles temos aquele velho europeu tradicional tipo "os judeus assassinos de Cristo". É preciso lutar contra ambos sem, no entanto, pretender que, para enfrentá-los, seja preciso apoiar a política de Israel.

    Vivemos uma era que espreita um novo medievalismo: Estados nacionais falidos, senhores de guerra, narcobaronatos. Agora uma milícia radical retroage ideologicamente aos primórdios dos anos 1.000, cortando cabeças e vendendo mulheres como escravas. Que fazer com o Estado Islâmico?
    É preciso fazer a guerra ao califado, que é a barbárie dos dias de hoje por excelência. Chegamos a uma nova situação em que temos os Estados Unidos, o Líbano, a Turquia, Israel e o Irã com um objetivo comum: enfrentá-lo.

    Uma coisa é realizar ataques aéreos táticos para proteger os curdos e liberar localidades ameaçadas, outra vai ser reocupar as cidades iraquianas e sírias que agora eles controlam, algumas bem grandes, como Mossul. Quem vai pendurar o guizo no pescoço do gato?
    Vai ter que ser uma coalizão, soldados iranianos, norte-americanos, turcos, jordanianos.

    Obama já disse que a Otan não vai colocar tropas terrestres. Para tomar uma cidade populosa como Mossul, vão precisar de uma força militar terrestre sunita.
    Concordo. Nesse momento, de fato não vejo tropas terrestres dos países da Otan. Mas veremos. É uma crise muito dinâmica.

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