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    Leia três poemas inéditos de Felipe Fortuna

    19/10/2014 03h56

    Os três poemas abaixo fazem parte do livro "O Mundo à Solta" (Topbooks) que o poeta e diplomata carioca Felipe Fortuna lança no fim do mês. O volume tem apresentação de Silviano Santiago.

    O TERRORISTA EM SEU JARDIM

    Como se pensa na flor
    seu pistilo ornado, arquitetônico
    no fundo carmim iridescente
    e pequenos estames feito fagulhas,
    logo se pensa no terrorista
    seu corpo encapsulado e sólido
    a antera pronta para explodir
    e o cinturão de fios e caixas pretas
    para estilhaçar os ossos torácicos
    e arrancar os braços em torno
    na estação de metrô, no entra e sai
    de quem precisava chegar.

    Então se pensa no jardim
    de nenhuma flor, de plantas apenas
    que fazem cair pelas paredes serosas
    com pelos para baixo, impossíveis de escalar,
    ou plantas viscosas que tornam lentos
    os batimentos e os passos,
    ou ainda as que súbito sugam
    e passam a digerir.
    O terrorista renasce aqui
    sem estátua, sem saudação
    a imaginar o paraíso ou a vitória,
    suas mãos dormentes, encarniçadas.

    *

    SAMIR

    Aquele garoto que vê
    o mercado ficar cheio
    se chama Samir. Ele crê
    em Deus de todas as maneiras:
    como pássaro brilhante, como água
    fresca entre pedras, como o assobio
    do vento deserto.
    Mas agora desmembrado
    e a cabeça confundida aos estilhaços
    Samir não vê.
    Sobre o mercado
    a bomba apontou o inimigo
    e levou quem mais podia:
    desenrolou-se um tapete até o meio
    subitamente a conversa cessou
    e os órgãos vitais se espalharam
    no bazar já tão repleto,
    algumas peças em liquidação.
    A mãe de Samir entra
    entre ruínas e vê.
    Vê fumaça, vê escombros
    o apocalipse ali, louvado Alá,
    aos gritos ela vê, e vê
    que os corpos são dos outros
    não são pedaços de Samir.

    A perna de Samir
    pode estar sob duas colunas
    e a mãe não vê e grita
    por isso também.
    O filho
    que corria no mercado
    entre algibeiras guitarras narguilés
    frutas panos jóias e sedas
    paralisou os negócios,
    morreu junto com os outros
    sem demanda e sem oferta
    sem saber, em meio à guerra,
    como e por que barganhar.

    *

    ILHA NA ILHA

    Sei que o prisioneiro lentamente passa
    perto das cercas.
    Não sei bem se ele caminha:
    daqui, parece que vai empurrado
    sob o sol mais forte, mais aparente
    do que o seu uniforme.
    Não importa: está vendado.
    Sei que está
    aguilhoado, as pernas se tocam
    mal se abrem
    passo a passo.
    Sei que está manietado
    também, e os braços se juntam
    com som de galhos secos.

    Sei muito do que está acontecendo.

    Mas não sei se há visões piores
    dentro do sono ou durante o dia
    sobre o que sei.
    Pois enquanto queimo petróleo e desmato
    e enxoto o ar para chegar noutra cidade,
    existe Guantánamo, à beira
    da praia paralítica.
    Posso estar
    dirigindo, fumando ou exagerando
    algumas proezas muito antigas
    (as mais recentes são milagres a explicar)
    e Guantánamo aguarda
    com susto.

    Nenhuma rotina adormece, e nem cabe
    reclamar das dores faveladas
    e dos acidentes.
    Derrama-se a tinta
    sobre um dia melhor, e sei
    que Guantánamo escorre em todas as direções.

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