• Ilustríssima

    Friday, 03-May-2024 12:19:22 -03

    Leia trecho de "À Sombra do Meu Irmão", de Uwe Timm

    UWE TIMM
    tradução GERSON ROBERTO NEUMANN E WILLIAN RADÜNZ
    ilustração JAN LIMPENS

    26/10/2014 03h03

    SOBRE O TEXTO O trecho acima abre o romance autobiográfico do escritor alemão, autor de mais de 25 livros, traduzidos para 30 idiomas. A obra, publicada com o subtítulo "As Marcas do Nazismo e do Pós-Guerra na História de uma Família Alemã", terá a primeira edição no Brasil lançada pela Dublinense no mês que vem.

    *

    Ser levantado ao ar -risos, júbilo, uma alegria irrestrita-, essa sensação que acompanha a lembrança de uma vivência, de uma imagem, a primeira a me causar uma impressão marcante; com ela começa o meu autoconhecimento, a minha memória: estou vindo do jardim para a cozinha, onde estão os adultos, minha mãe, meu pai, minha irmã. Eles estão ali parados e olham para mim. Devem ter dito algo, que não me lembro, talvez dê uma olhada, ou devem ter perguntado consegue ver alguma coisa? E devem ter olhado para o armário branco, um armário de vassouras, como fiquei sabendo mais tarde. Lá, sobre o armário -e isso me marcou como uma imagem-, havia cabelos à vista, cabelos loiros. Atrás, alguém se escondia -e, então, meu irmão apareceu e me levantou alto. Não consigo me lembrar do seu rosto, nem do que ele vestia, provavelmente uniforme, mas esta situação revela-se muito claramente: a forma como todos estavam me olhando, como eu descobri os cabelos loiros atrás do armário e, então, esse sentimento de ser levantado -eu flutuando no ar.

    Essa é a única lembrança do meu irmão dezesseis anos mais velho, que, alguns meses mais tarde, no fim de setembro, seria gravemente ferido na Ucrânia.

    30.9.1943
    Meu querido pai,
    No dia 19 infelizmente fui gravemente ferido por uma artilharia antitanque nas duas pernas, que agora tiveram que ser amputadas. A perna direita foi amputada abaixo do joelho e a perna esquerda acima da coxa Não sinto mais dores fortes Por favor, dê consolo pra mãe Em breve tudo vai terminar e em algumas semanas vou estar na Alemanha, daí você poderá me visitar Eu não fui imprudente.
    Por enquanto é isso.
    Um abraço pra você, pra mãe, pro Uwe e pra todos.
    Kurdel.

    No dia 16 de outubro de 1943, às oito horas da noite, ele morreu no hospital de campanha 623.

    Jan Limpens

    Ele me acompanhou durante a minha infância, ausente e mesmo assim presente no luto da mãe, nas dúvidas do pai, nas insinuações feitas entre eles. Falavam sobre ele, relatando pequenas situações sempre semelhantes, que o apresentavam como alguém corajoso e honesto. Mesmo quando a conversa não era sobre ele, ele estava presente, mais presente que outros mortos, através das histórias, fotos e comparações do meu pai que incluíam eu, o filho mais novo, o temporão.

    Várias vezes tentei escrever sobre meu irmão, mas nunca passei das tentativas. Eu lia a sua correspondência escrita no front e o seu diário, que ele manteve durante o tempo em que serviu na Rússia. Um pequeno caderno de capa em cinza-claro com a inscrição Notas.

    Eu queria comparar os registros do meu irmão com os diários de guerra da sua divisão, a Divisão SS Totenkopf, para saber com mais precisão algo sobre ele e, talvez, mais informações com suas anotações. Mas toda a vez que eu começava a ler as cartas ou o diário, interrompia a leitura logo em seguida.

    Um recuo temeroso, que eu já conhecia desde criança em um conto de fadas; a história do Cavaleiro Barba Azul. À noite, minha mãe lia os contos de fadas dos irmãos Grimm, muitos deles diversas vezes, entre eles o conto do Barba Azul, o único do qual eu nunca quis ouvir o fim. Era muito assustador quando a mulher de Barba Azul deseja entrar no quarto trancado, apesar da proibição, depois do seu marido ter partido. Nessa parte, eu pedia para minha mãe que não lesse mais. Foi somente anos depois, quando já era adulto, que li o conto até o final.

    Ao abrir a porta, naquele instante, veio ao seu encontro uma corrente de sangue e pelas paredes viu as esposas mortas; de algumas restava somente o esqueleto. Assustou-se tanto que, de um golpe, fechou a porta, mas a chave se desprendeu e caiu no sangue. Pegou-a logo e quis limpar o sangue, mas era em vão, pois, quando havia limpado um lado, o sangue aparecia no outro.1

    Um outro motivo era a mãe. Enquanto ela vivesse, era impossível para mim escrever sobre o meu irmão. Eu sabia antecipadamente o que ela teria respondido às minhas perguntas. Os mortos devem ser deixados em paz. Foi somente quando minha irmã faleceu, a última que o conhecera, que estive livre para escrever sobre meu irmão, podendo fazer todas as perguntas sem precisar dar satisfação a ninguém.

    De vez em quando, sonho com meu irmão. Na maioria das vezes, são apenas fragmentos de sonhos, algumas imagens, situações ou palavras. Um desses sonhos deixou em mim uma impressão marcante.

    Alguém quer entrar em casa. Um vulto está lá fora, escuro, sujo, enlameado. Eu quero pressionar a porta para mantê-la fechada. O vulto, que não tem rosto, tenta forçar a sua entrada. Com toda a força, eu me recosto contra a porta, empurro de volta esse homem sem rosto que, tenho certeza, é o meu irmão. Finalmente consigo fechar a porta e trancá-la. Mas seguro nas mãos, para o meu pavor, um áspero e esfarrapado casaco.

    Meu irmão e eu.

    1. Optou-se por fazer a própria tradução do trecho citado do conto "Barba Azul", de Charles Perrault (nota dos tradutores).

    UWE TIMM, 74, escritor alemão, é autor de, entre outros, "Penumbras" (Record).

    GERSON ROBERTO NEUMANN, 42, é professor de literatura e língua alemã na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    WILLIAN RADÜNZ, 25, é tradutor.

    JAN LIMPENS, 44, é ilustrador e quadrinista (limpens.com).

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