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    Arquivo Aberto - A carta de Mindlin

    VIVIEN LANDO

    26/10/2014 03h43

    São Paulo, 1999

    Conheci o senhor José na casa dele, quando fui lhe pedir que ajudasse na empreitada de montar um teatro de ópera de câmara de repertório em São Paulo. Ele e dona Guita me receberam como mais uma filha, com passeio à biblioteca e todo o carinho do mundo. Disse ao Mindlin que sua mulher se parecia com todas as mulheres da minha família, e ele confirmou: "São farinhas eslavas do mesmo saco".

    Humor e acolhimento foram as impressões da tarde. Qual não foi meu espanto quando, algum tempo depois, recebi uma carta, literalmente de próprio punho, datada de 30 de agosto de 1999.

    Joel Silva/Folhapress
    Carta enviada por Mindlin a Vivien Lando, de 30 de agosto de 1999
    Carta enviada por Mindlin a Vivien Lando, de 30 de agosto de 1999

    Nela falava não só do projeto do teatro mas comentava o livro "Balalaicas e Mandolinas" (Objetiva), sobre a minha estadia de quatro anos na Rússia -onde Mindlin tinha suas origens bem plantadas. Elogiava o livro, ressaltando "o senso de humor esfuziante e uma disposição para a aventura que acho extraordinária".

    O que mais eu poderia fazer senão emoldurar a carta? Sábia decisão. Pois, numa tarde quente, abrindo a porta do escritório, encontrei-o junto com o motorista tentando localizar o endereço de uma reunião. Aceitou o convite para um copo de água e aí foi minha vez de surpreendê-lo, quando viu sua carta pendurada como tela única acima da minha mesa de trabalho.

    Dali em diante alguns encontros só fizeram aumentar minha admiração por aquele senhor tão simpático, culto e bem-humorado, que levou ao pé da letra o princípio de tudo fazer com alegria. Assisti ao lado dele e de dona Guita a um concerto da Filarmônica de Berlim, regida por Claudio Abbado. Somadas a música, o maestro, a orquestra e a companhia, foi uma noite absolutamente mágica.

    Mais à frente, encontrei-me com ele na Sala São Paulo, sua visão já deixando a desejar. "Quem é?", perguntou, meio sem graça. Respondi em russo e ele identificou na hora -respondendo também em russo. Tornou-se o nosso código.

    Em 2004, no lançamento de "Uma Vida entre Livros" (Companhia das Letras), fui à noite de autógrafos. Um fotógrafo clicava o autor com os visitantes. No dia seguinte ele me ligou: "Você tem alguma foto de ontem?", indagou humildemente, "fiquei sem nenhuma". Enviei-lhe imediatamente.

    Quando dona Guita morreu, com a mesma doçura com que viveu 68 anos ao lado do marido, pensei em telefonar, mas não consegui. Passaram-se alguns meses e, numa noite, sonhei com aquela senhora tão delicada, sentada em uma cadeira numa festa e sorrindo, feliz. Liguei para o senhor José a fim de contar o sonho, já dando a interpretação: "Ela está bem!". Ele agradeceu, choroso, e lamentou: "Ainda não consegui sonhar com ela". Depois da viuvez, encontrei-me com ele somente uma vez, num evento. Elogiei a gravata colorida; ele sorriu, mas os olhos estavam outros.

    A filha caçula do casal, Sonia, me contou que, para poupá-los, ele nunca se queixava dessa enorme perda com os filhos. De seu sofrimento, só tinham notícia os amigos. Isso ela me revelou quando estávamos, em março de 2010, numa última homenagem a José Mindlin, que morrera havia duas semanas, em 28 de fevereiro. E onde o clima só poderia ser um: o da perda irreparável.

    Mas, para não perder o fio da nossa amizade russa, anos mais tarde soube que uma vizinha com quem eu mantinha ligações através de nossos gatos era neta do meu amigo. E também é a responsável por compilar um livro com mais de cem dedicatórias famosas dos livros que fazem parte da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

    Em 8 de setembro passado, Lucia postou em uma rede social duas lindas fotos dela com o avô. Nesse dia, o querido senhor José completaria cem anos.

    VIVIEN LANDO, 56, é escritora e diretora cênica de ópera.

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