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    Experiências sem preço para os autenticamente ricos

    PETER ASPDEN
    DO "FINANCIAL TIMES"

    02/11/2014 03h29

    As leis da oferta e procura ditam que exista um sistema de turismo cultural em duas classes

    Os membros do Porsche Travel Club, surgiu a efusiva notícia esta semana, foram convidados a desfrutar da mais grandiosa das delícias culturais. Como parte de uma viagem de cinco dias a Roma ("no passado o centro do Império Romano"), eles foram convidados a assistir a um concerto no "elegante" ambiente da Capela Sistina, no Vaticano. Depois viria um jantar de gala, no qual os convidados comeriam "cercados por obras-primas" de Rafael e Michelangelo.

    Isso causou choque a muitos observadores. Ainda persiste uma crença, cada vez menos firme, em que determinados espaços culturais deveriam ser sacrossantos e escapar à dura realidade econômica do patrocínio corporativo. (A Porsche pagou quantia não declarada ao Vaticano pelo evento, e o montante foi doado a uma organização de caridade pelo Papa Francisco.) Alguns tabus continuam a vigorar: no Museu Britânico, por exemplo, os patrocinadores corporativos estão autorizados a entreter convidados em um espaço adjacente à galeria que abriga os controversos frisos do Partenon, mas não dentro dela.

    Como o conteúdo da galeria mencionada acima, a Capela Sistina é candidata plausível ao posto de obra de arte mais importante do planeta. Como todos os monumentos culturais de grande distinção, ela enfrenta problemas para manter o número de visitantes baixo o bastante para que seus tesouros inestimáveis não sejam danificados. Posso conceber um momento em que turistas comuns não mais serão autorizados a visitá-la, e serão encaminhados a uma reprodução construída ao lado, como já aconteceu no caso da tumba de Tutancâmon, em Luxor.

    Filippo Monteforte - 29.out.2014/AFP
    Jornalistas observam Capela Sistina com a nova iluminação inaugurada no último dia 29
    Jornalistas observam Capela Sistina com a nova iluminação inaugurada no último dia 29

    Caso isso viesse a acontecer, podemos ter certeza de que certos grupos de pessoas, talvez ainda mais prósperas que os membros do Porsche Travel Club, continuariam autorizadas a ver a coisa real. Porque é isso que as leis da oferta e procura ditam. Haveria um sistema de turismo cultural com duas classes, separando as pessoas que viram a réplica daquelas que podem bancar a experiência real.

    Já estamos começando a ver um começo desse sistema de apartheid de espectadores. Mesmo o mais democrático dos eventos culturais, o show de rock, desenvolveu uma brutal hierarquia em termos de qualidade da experiência. Pacotes VIP são comuns em quase todas as grandes turnês. Um exemplo é Kate Bush, que recentemente recebeu uma comenda e foi classificada como tesouro nacional britânico: seus recentes shows londrinos ofereciam um pacote VIP com ingressos a 424 libras, preço que incluía uma salada de camarão com cuscuz de pistache, e meia garrafa de vinho.

    Os ingressos mais caros para os shows dos Rolling Stones em sua turnê australiana custavam mais de 700 libras. Compare-os ao ingresso mais caro para ver Plácido Domingo em "I Due Foscari", na Royal Opera House no começo de outubro: 235 libras.

    Será que qualquer dessas coisas têm importância? Afinal, boa parte da arte do planeta foi produzida para os, e comprada pelos, mais ricos. No entanto, em contraste, muitas obras de arte, com sua ênfase no que a condição humana tem de comum a todos, oferecem mensagem essencialmente igualitária. Quem seria capaz de negar a universalidade implícita no Adão nu e forte de Michelangelo, que ganha vida e significado por obra do Deus em manto vermelho que o contempla? Ou dos riffs primordiais de Keith Richards em "Satisfaction", o atávico hino dos Rolling Stones ao desejo frustrado?

    Eis o paradoxo: hoje há mais cultura, e mais acessível para mais pessoas, do que em qualquer momento do passado. Mas isso, em si, frequentemente torna menos palatável a experiência cultural. Ela pode ser ruim para o visitante, e muito ruim para a obra de arte. O que explica os rarefeitos privilégios concedidos àqueles que podem pagar mais.

    Assim, o que justifica os comentários mordazes sobre a viagem da Porsche a Roma? Será a incongruência entre dirigir um carro esporte e a solene contemplação de obras-primas da arte? As duas coisas são experiências enriquecedoras: esses críticos chatos jamais assistiram a "Um Golpe à Italiana"? Será que é porque existe algo de errado em comer, beber e ouvir música diante das maiores obras de arte da cristandade? Mas a arte não existe em separado das demais atividades humanas, e o mesmo se pode dizer sobre a religião cristã.

    Na pior das hipóteses, atividades comerciais como essa nos transmitem uma mensagem contraditória: a cultura é para todos, mas o seu maior desfrute será sempre reservado a alguns poucos. Ironicamente, foi a democratização da cultura nas últimas décadas que destacou seu valor para as elites endinheiradas, capazes de pagar para mergulhar em sua forma mais refinada.

    Isso pode não ser justo, mas e daí? O fato é que, diante das maiores obras de arte já produzidas, todos aqueles luxos de valor adicionado –uma taça de Prosecco, um cuscuz de pistache– não valem mais que um prato de feijões romanos. Quando você contempla a arte da Capela Sistina, e olha com atenção, o resto do mundo ao seu redor simplesmente desaparece. É um sentimento que não tem preço.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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