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    Um fotógrafo japonês no rastro de Jack Kerouac

    texto e fotografia DAIDO MORIYAMA
    tradução LEIKO GOTODA

    02/11/2014 03h00

    RESUMO Neste texto, o fotógrafo japonês nascido em Ikeda, Osaka, descreve como sua descoberta de "Pé na Estrada", de Jack Kerouac, o levou a viajar por seu país. Ele fala de seu fascínio pela vida nômade, recorda paisagens, camas e refeições e reflete sobre como a compulsão por cruzar o arquipélago moldou seu olhar.

    *

    Cai a tarde em Manhattan e, enquanto contempla a impressionante multidão de vultos negros que, como uma torrente de água suja escorre aos borbotões pela escura boca do metrô aberta na calçada, bem no centro da aridez de neon da Times Square, um homem pensa em outro homem, de quem acaba de se despedir depois de juntos terem percorrido uma longa, longa estrada, e pensa em seus muitos outros amigos, pensa ainda na extensão estonteante da "estrada já percorrida" que, sinuosa e interminável, corta a imensidão do continente americano.

    "Quando o sol se põe na América, eu me sento no destroçado e velho cais fluvial e, contemplando o vasto céu de Nova Jersey, sinto todo o inacreditável volume de terra bruta que ondula até a Costa Oeste, todas aquelas estradas seguindo em frente, todas as pessoas sonhando nessa imensidão e, em Iowa, sei que a esta altura as crianças estão chorando lá na terra onde deixam crianças chorar, e esta noite haverá estrelas no céu [...] e ninguém, mas ninguém mesmo sabe o que vai acontecer com qualquer um a não ser a deprimente ruína do envelhecer, penso em Dean Moriarty, penso até no velho Dean Moriarty, o pai que nunca encontramos, penso em Dean Moriarty", murmura Sal Paradise, protagonista de "Pé na Estrada", de Jack Kerouac, o escritor errante, na última página do livro.

    Daido Moriyama Photo Foundation
    Fotografia da série "Caçador", de 1972
    Fotografia da série "Caçador", de 1972

    Li o romance "Pé na Estrada" tempos atrás, numa época em que, mal chegado à segunda metade da casa dos 20, sentia intenso prazer em disparar minha câmera na rápida sucessão de uma rajada de metralhadora. Fascinado pelos "olhos que viram a estrada" do personagem principal Sal Paradise, apaixonei-me por seu modo de viver e decidi de imediato conquistar o surrado Toyota de um amigo, pondo-me a percorrer as muitas rotas que cortam o Japão.

    Foi nessa época que tive a chance de me deparar com uma grande variedade de acontecimentos, pessoas e cidades, e foi também nesses dias que aprendi a andar de carona em carros e caminhões. De tanto manter os olhos sempre fixos na superfície da estrada, qual um par de faróis, nisso me viciei e me vi tanto física como espiritualmente incapaz de retornar a meu antigo cotidiano. O entusiasmo juvenil que me levava a
    disparar a câmera a torto e a direito ajustou-se perfeitamente ao ritmo da viagem no aspecto emocional e, trocando de parceiros o tempo todo, continuei ensandecido estrada afora, fotografando dia e noite sem parar.

    Agora me pergunto se eu, que desde criança sempre fora tímido e introvertido, não estava havia muito fascinado por essa espécie de vida e atividade: propenso a vagar e a não gostar da escola, eu era solitário e retraído, condição que talvez tenha naturalmente desenvolvido em mim a ânsia por um comportamento dessa natureza.

    As rodovias, que propiciam o cruzamento de inúmeros pontos sobre suas retas, e também as ruas, onde pipocam fenômenos de toda espécie, me aguardavam com tantas descobertas e emoções que registrá-las todas seria impossível.

    Eu já não me adaptava à minha casa, para onde, exausto, retornava como um trapo depois de encadear diversos percursos de longa distância, e acabei preferindo a cama dura de um motel à minha própria, ou o arroz ao curry e bifes à milanesa de "drive-ins" à comida caseira de minha mulher. E antes que o apelo das ruas arrefecesse, eu me apressava a outra vez pôr o pé na estrada. Sem nenhuma razão particular. A vontade de ver o mar do Japão, por exemplo, já era suficiente. Depois de continuar nessa vida por cerca de três anos, certos motivos me levaram a tirar o pé da estrada e voltar para casa. E então comecei a me fechar em mim mesmo mais uma vez.

    Enquanto corria estrada afora, com frequência me acontecia experimentar indizível irritação contra o fato de me apegar irremediavelmente a tudo o que, após um brevíssimo encontro, voava para longe de mim. Em especial o perfil de um rosto pálido de mulher que resvalou pelo canto do para-brisa em certo entardecer e de pronto se dissipou numa esquina, ou ainda o olhar do garoto em pé no meio da lavoura em pleno dia estão para sempre gravados em minha retina de maneira vívida como as imagens de um filme a que assisti certa vez. Quero manter num filme todas essas infindáveis coisas amadas que, apenas vislumbradas, resvalam por mim e desaparecem e que, por mais que as fotografe, escorrem quase todas como água por malhas de uma rede e se vão, restando-me nas mãos apenas precários fragmentos de imagens que nada capturaram, algo entre imagem residual e latente que submerge em meu íntimo compondo uma grossa camada de sedimentos estratificados.

    De fato, são incontáveis as imagens que nos fogem enquanto avançamos a toda por uma sucessão infinita de cenários. A sensação de resvalo nos chega vagamente no instante em que tais imagens passam por nós. E resta apenas uma sensação acumulativa de tê-las perdido. Contudo os incontáveis cenários que me escaparam são capazes de se transformar num outro em meu íntimo e, certo dia, ressurgir de maneira repentina. Transcendem tempo e espaço e renascem como num sopro em meu consciente, completamente desvinculados da visão. Por exemplo, numa esquina movimentada da cidade de Tóquio, na parede de um bar quando a noite já vai alta, ou no líquido revelador de um quarto escuro com iluminação avermelhada.

    Nos últimos tempos, e depois que comecei a publicar a série "Memórias de um Cão", voltei a percorrer estradas. Não da maneira incessante de antes, mas certas noites, ao me ver sozinho, sinto uma insistente saudade daquela vida e me ponho a folhear um mapa rodoviário e a seguir com o olhar qualquer rota nela impressa. A isso se alia o ímpeto de viajar e, desde o verão passado, venho revisitando as estradas.

    E então a quase esquecida emoção de estar nelas renasce em mim sem que eu disso me dê conta. A essa altura, os mais variados fragmentos de antigas imagens vistas pelos caminhos aos poucos surgem de maneira mais definida, compondo paisagens reais nessas viagens feitas sobre o papel dos mapas.

    É como montar um quebra-cabeça: ao reunir fragmentos incertos, de súbito visualizo a imagem inteira. Diante de meus olhos, a estrada emerge como uma longa reta acinzentada que se estende a perder de vista e, para além dela, projetadas no espaço em sucessivas visões, uma esbranquiçada cena de verão ao longo de uma rota, campos e montanhas em vívidas cores de começo de outono, a cena sombria de um estreito no rigor do inverno e, finalmente, a paisagem noturna de luzes se acendendo numa cidade desconhecida. Ao perseguir as imagens na imaginação, percebo o pulsar do arquipélago japonês em contínuas ocorrências e sinto momentânea irritação. Pergunto-me então quem estaria onde e fazendo o quê nesse exato momento ou, ainda, o que acontece e o que estaria por acontecer.

    Para mim, percorrer uma linha longa e cinzenta corresponde ao ato de ler no mínimo algumas dezenas de livros de todos os tipos, ou quem sabe escrever. Enquanto corro por uma rodovia disparando a câmera e decifrando o que lhe vai nas margens, sou por vezes poeta, cientista, artista, filósofo ou mesmo um político. E, ao mobilizar todas as recordações para reagir ao fluxo de tempo e espaço, a impressão de que algum dia encontrarei uma viçosa imagem regenerada me acomete em ondas alternadas de esperança e excitação.

    Jack Kerouac, o autor de "Pé na Estrada", diz na homenagem a "Os Americanos" -esta, uma coletânea de fotos de seu amigo e fotógrafo Robert Frank-, a respeito das jukeboxes que repetidamente surgem na referida obra: "Jukebox é essencialmente o esquife da América".

    Tomo aqui de empréstimo sua alusão para também dizer que os postos de gasolina automatizados que se multiplicam à beira das estradas japonesas começam a me parecer verdadeiros cemitérios rodoviários. Em suas áreas de alimentação -às quais chegamos a altas horas, exaustos de percorrer um longo caminho- não se vê vivalma e, sob a ofuscante luz incandescente, as geladas fileiras de astutas máquinas de venda automática estão envoltas numa atmosfera sinistra que de algum modo nos lembra a morte.

    Por outro lado, chega-nos também invariavelmente um período de total inação enquanto cobrimos longas distâncias. Pode até ser definido como um momentâneo bolsão de ar pouco antes do amanhecer. Acontece nos momentos em que a escuridão é mais densa e provoca a estranha impressão de que o carro não está correndo, ele está, isto sim, sendo levado de roldão por uma vala escura. Certo desconforto e apreensão reinam dentro do carro enquanto, mudos, os companheiros de viagem fixam atentamente o breu externo, cada qual imerso em seus próprios pensamentos. Visíveis são apenas a luz projetada pelos faróis e a iluminação do painel de controle.

    Nessas ocasiões, sinto que, bem no fundo do ser humano, seus nervos e suas células, embora temerosos da natureza e da civilização, estão em alguma medida procurando confrontá-las. Em outras palavras, sou levado a imaginar se esse não seria o momento em que o homem de algum modo entra em sintonia com a memória ancestral.

    Logo, o céu começa a clarear aos poucos no horizonte distante, e a madrugada rompe no espelho retrovisor. A música flui do gravador cassete, e todos os isqueiros são acionados simultaneamente. A fumaça paira no ar, a animação retorna ao interior do carro, e todos se libertam de suas respectivas ansiedades. As manhãs nas rodovias são de um azul transparente a perder de vista, mas, em algumas horas, sobre o asfalto eclodirá a escaramuça diária que em tudo lembra uma batalha campal. A questão não é "aonde iremos hoje", mas sim "que acontecimentos nos aguardam hoje?".

    Sal Paradise, o personagem central de "Pé na Estrada", é o próprio autor da obra, Jack Kerouac. Enquanto vagava pelo continente americano com o amigo Neal Cassady, dizem que o escritor, em sua juventude, batia nas teclas de sua máquina de escrever mastigando hambúrgueres e tortas de maçã ao som de suingues e bebop. E também eu, nos meus velhos tempos, espiava pelo visor de minha máquina fotográfica mastigando lámen e arroz ao curry ao som de melodias do passado e canções populares enquanto percorria sem descanso o arquipélago japonês.

    Talvez se possa dizer que ambos persistíamos em nossas jornadas de descobertas e conhecimento tendo nossas próprias memórias como radar. Jack Kerouac nos legou "Pé na Estrada", um poema épico de louvor à juventude. Também eu, embora sem nenhuma intenção de estabelecer comparações, publiquei a coletânea de fotos "O Caçador" ("Karyūdo"), baseado em meus próprios "olhos que viram a estrada".

    Nota: publicado pela primeira vez em 1983, na revista japonesa "Asahi Camera", este texto está no número 7 da "Zum", do Instituto Moreira Salles, à venda a partir desta semana.

    DAIDO MORIYAMA, 76, é fotógrafo japonês.

    LEIKO GOTODA, tradutora, responde pelo texto de edições brasileiras de autores japoneses como Haruki Murakami e Kenzaburo Oe.

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