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    Diário de Paris - O arauto da direita descomplexada

    LUCAS NEVES

    02/11/2014 03h51

    A "rentrée littéraire", bimestre em que as editoras francesas lançam suas maiores apostas anuais, tem um protagonista inesperado. Não se trata de Patrick Modiano, recém-laureado com o Nobel, nem de Emmanuel Carrère, cujo "Le Royaume" (O reino), aclamado pela crítica, foi ignorado pelo júri do Goncourt, principal distinção das letras no país.

    O nome da hora é Éric Zemmour, escritor, jornalista e ensaísta de 56 anos que, em "Le Suicide Français" (O suicídio francês), sustenta que a França entrou num processo de decadência moral e identitária quando os ideais do Maio de 68 se tornaram moeda corrente. Para ele, o discurso libertário, igualitário e multiculturalista da esquerda arruinou instituições como a nação, o Estado e a família.

    Apesar das resenhas majoritariamente negativas, o livro (ed. Albin Michel) ocupa o topo do ranking da Amazon francesa e viu sua primeira tiragem, de 120 mil exemplares, se esgotar em uma semana.

    Arauto da "direita descomplexada", Zemmour já foi condenado por incitação ao ódio racial. Antes da final da Copa, disse que a Alemanha perderia para o Brasil graças a seu escrete farto em filhos de imigrantes e naturalizados.

    Em ensaios e entrevistas, ele também acusou uma "feminilização" galopante da sociedade, a saber, uma "castração" do homem que visaria mascarar sua natureza de predador sexual. Mais recentemente, afirmou que, na Segunda Guerra, o regime colaboracionista de Vichy "salvou" 95% dos judeus franceses ao entregar os estrangeiros aos nazistas. A declaração foi rechaçada por historiadores.

    ÁLBUM DE GUERRA

    Os mesmos historiadores receberão com mais entusiasmo a exposição que o Museu de Arte e de História do Judaísmo dedica ao fotógrafo judeu russo Roman Vishniac (1897-1990), até 25/1.

    Radicado em Berlim desde os anos 1920, ele capta a capital alemã em seu esplendor artístico, intelectual e científico. Ainda em fase amadora, arrisca experimentações com o quadro (com uma queda por janelas e pórticos) e a composição que o filiam ao modernismo.

    Com a instauração do Terceiro Reich, sua Rolleiflex e sua Leica flagram a infiltração do ideário nazista na paisagem. Também testemunham dispositivos de associações judaicas para remediar sanções impostas a esse segmento da população, como escolas, centros médicos e de capacitação técnica para os que desejassem emigrar.

    Ele segue na mesma chave após se mudar para os EUA, em 1941: assina séries encomendadas por instituições judaicas para propagandear atividades e angariar fundos.

    A força das imagens está em transcender o ranço institucional. Vishniac dá a ver a resiliência de quem foi tirado de sua casa, de seu continente. O filtro é o do humanismo, não o da vitimização afetada nem o da assepsia publicitária.

    SOL NAS TREVAS

    O Théâtre du Soleil de Ariane Mnouchkine completa meio século de atividade com uma montagem de "Macbeth". A encenação marca o reencontro da companhia com Shakespeare, visitado 30 anos atrás com resultados que a crítica coloca no panteão dos grandes momentos dos palcos franceses.

    Aqui, a tragédia é ornada com acenos a guerras do século 20 e à sociedade da imagem (os nobres são seguidos por jornalistas e fotógrafos). Em outra atualização, o protagonista se inteira da segunda profecia das bruxas pela internet.

    Pena que a repaginada beire a ingenuidade; apesar dos belos achados (como a cena em que o fantasma de Banquo surge para Hamlet num jantar em que as mesas giram), o Soleil não alcança as alturas (ou profundezas?) de "Os Náufragos da Louca Esperança", que aportou no Brasil em 2011.

    SOM E FÚRIA

    "Saint Laurent", cinebiografia do estilista (1936-2008) que a França escolheu para tentar uma vaga na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro, estreia no Brasil em 13/11. O filme de Bertrand Bonello se centra no período entre meados dos anos 1960 e fim dos 70, apogeu do mastodonte da moda e ápice hedonista do sujeito comum, regado a drogas, álcool e orgias.

    Pierre Bergé, parceiro de negócios e companheiro de Saint Laurent, não deu seu beneplácito ao roteiro, o que é sempre bom sinal -outra cinebiografia do estilista, lançada meses atrás, teve a aprovação dele e foi vista pela crítica como chapa-branca e pudica.

    Um certo voluntarismo de Bonello (falta ossatura para sustentar 2h30 de filme) e a composição maneirista do ator Gaspard Ulliel quase comprometem uma evocação pulsante do maior "enfant terrible" das passarelas francesas.

    LUCAS NEVES, 30, é jornalista.

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